Caladinho não tinha este nome.
Passou a ser chamado assim depois de ter batido a cabeça durante um plantão
noturno num hospital, enquanto carregava uma carga de roupas para lavagem e
desinfecção. Só foi encontrado quando o dia amanheceu, estava desmaiado entre
panos contaminados além do máximo que ousamos imaginar. Depois disso, após um
longo período em recuperação, foi despedido do serviço. Também a mulher o
despediu. A solução foi voltar para a casa da mãe. Dois filhos o seguiram. E
agora? Nenhuma empresa, até o presente momento, deu a mínima atenção ao seu
currículo. Por isso, Caladinho vende sorvetes pelas ruas, na avenida da praia.
Vai vivendo, vai tocando a vida miserável. Está magro de fazer dó. É um coitado
sempre espreitado pelos oportunistas que o enganam regularmente.
Há pouco tempo passei a conversar
mais com Caladinho. Parece que agora está se encantando com uma moça bem
humilde. Os dois deram um jeito de se encontrar sempre: ir à escola e na
igreja. Boa estratégia, né? Quanto à escola, acho uma boa mesmo. Ela faz o
papel de inclusão nesse caso. Em relação
à igreja, tenho minhas dúvidas, principalmente agora que ele me disse que a
orientação do pastor é que todos votem no candidato que faz apologia à violência
contra as minorias. No culto ele falou assim, segundo Caladinho: “Quem vota no candidato indicado por mim
levanta a mão. Aleluia, Glória a Deus”. Eu já esperava isso, pois li que o
líder máximo da sua religião, fundador de filiais da sua igreja em tantos
países, empresário forte no ramo da fé, pediu isso aos seus contribuintes. O
coitado ficou sem jeito de me contar que votou na chapa distribuída aos fiéis.
“É irmão da igreja. Ele é cristão, a
favor da família, sem esse negócio de banheiro para homem e mulher que não é
uma coisa nem outra. O pastor falou que é alguém novo, diferente”. Ôôôô, coitado! Político de carreira
com quase trinta anos sem um projeto de destaque, só vivendo assim, é novidade
capaz de dar esperança aos pobres?
Então,
eu fui conversando com muito jeito com cidadão, expliquei o que é racismo e
homofobia, coloquei-o a pensar sobre o
perigo de mais armas facilitadas à população, pedi que dissesse a sua posição a
respeito das mulheres, dos direitos indígenas e dos portadores de deficiências.
Por fim, fiz a pergunta:
Você se identifica com tudo isso que
esse candidato defende? A resposta dele foi: “Não! Deus me livre, Zé! Eu só
quero estudar, ser feliz com essa outra mulher e ter saúde!”.
Pois é! Acho que nem tudo está
contaminado na decência do Caladinho. No fundo, ele e tantas outras pessoas não
escondem em si um racista, um homofóbico, um ser violento. O que tenho notado é
a existência de pessoas inescrupulosas se aproveitando deste quadro cultural
brasileiro, onde os analfabetos funcionais e os analfabetos somam quase a
metade da população.
É isso, Caladinho! E saiu empurrando
o seu carrinho de sorvete. Ainda pude ouvi-lo gritando ardentemente: “Não entre nessa gelada! Gelado só o
sorvete!”.
Em
tempo: a favor da barbárie do candidato da extrema esquerda, contra os mais
desfavorecidos, estão o Zólhudo da Praia, o Bonecão, o Pirangueiro, o Barrigudo
da Prancha, o Negão da Cachoeira, o Marisqueiro, a Advogadinha e outros tantos
que era de se esperar e de não se esperar. “Ah!
Quantos cristãos!”. Estão avisados:
já estão deletados de qualquer confraternização comigo.
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