quinta-feira, 15 de março de 2018

AVOA JACUTINGA

Tio Chico Félix e o mano Mingo (Arquivo JRS)

Um tranquilo lagarto (Arquivo JRS)


               O título acima, de uma música sertaneja, cujo autor é Zequinha Torres, me fez recordar das manhãs na casa do vovô Armiro,  onde um rádio na parede nos despertava em suas toadas com letras muito próximas do nosso universo, com temas que conhecíamos bem ou que imaginávamos em seus detalhes, conforme o canto transcorria. A minha escolha se deu porque no meio dessa música tem uma parte que sempre me chamou a atenção. Diz assim:

     “Cada dedo uma memória/ Cada memória um retrato/ 
     Avoa  jacutinga/ Na divisa botou um ovo/ 
    Quem me dera estar agora/  Avoa jacutinga”.

            No tempo da minha infância, as caçadas tinham tempo certo, todos respeitavam a "época de crias" dos bichos e das aves. Nas serras, os ranchos ficavam sempre dispostos aos caçadores.  Era "Rancho de caçador". Caçar era atividade tradicional, fazia parte da nossa dieta. Não era atividade comercial. Os caiçaras, conhecedores das matas com seus carreiros e fruteiras, armavam seus mundéus, esparrelas, fojos, laços e outras armadilhas da tradição. E lá vinha paca, tatu, porco do mato, jacutinga, quati, jacu. Depois... os rituais, as regras para a perfeita higiene do animal, da ave abatida. Creio que a nossa fauna não era ameaçada de extinção porque as formas de sobrevivência variavam muito. Agora caçar é proibido por lei. Até acho bom, sobretudo porque os que não são originários deste espaço, “lugar sacrossanto” no dizer do finado Antônio Maior, não respeitam os ciclos, as épocas de crias. Os caiçaras novos nem sabem se virar no mato, sobretudo quando é noite. E os mais velhos, em seus desejos contidos... Assim observou o professor Diegues, “alguns caiçaras até têm um discurso contra a caça, mas o que nos parece é quase uma boa vontade de acreditar nisso sem necessariamente acreditar”.

               Avoa jacutinga! Sabe onde é o Morro da Jacutinga? É logo ali, depois de horas morro acima no Sertão do Patrício, na praia da Lagoinha. Provavelmente lá está ainda a Árvore do Tio Chico: trata-se de um pé de bicuíba, onde ele, num período de abstinência, passou dois dias e duas noites sofrendo porque não resistia ao poder da “mardita branquinha”. “Aos pés da velha bicuíba, me sustentei com folha de mato, meu filho!”. Não, não era um Buda em espera de iluminação, mas o resultado foi quase o mesmo.

               Cada memória um retrato... Do Tio Chico Félix em seus traços indígenas, dos meus antigos saindo na madrugada atrás de peixes, ou deixando a casa no serão, após um dia de trabalho, em busca do que caçar. E o que dizer do papai, após cada caçada, nos enviando com as porções de carne para os vizinhos mais próximos? Avoa jacutinga!

2 comentários:

  1. Olá Zé Ronaldo. Simbiose deve ser a melhor definição. Uma conclusão também do Prof. Diegues, sobre a qual tive confirmação de diversos Caiçaras é que as roças tradicionais, aquelas que aproveitam as clareiras da mata, atraiam muita caça. Essas roças alimentavam os bichos do mato e em "troca" havia muita caça disponível. Hoje nos locais onde essas roças foram proibidas, a biodiversidade diminui muito, sumiram os bichos. Essa é uma das evidências sobre O Mito Moderno da Natureza Intocada, elaborado pelo Prof. Diegues.

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  2. É bem isso, amigo Peter! Grande abraço. Até.

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