terça-feira, 30 de junho de 2015

CULTURAS E CULTURAS: SÓ ISSO É RIQUEZA


 
Primeira inscrição na Colônia Z-10 - Ubatuba        (Arquivo Patural)
                    Bem-vinda ao blog, Eny Proença!
                   
             Na noite passada, durante a Festa de São Pedro, padroeiro dos pescadores, pensei no finado Jean Pierre Patural que, conforme o documento atesta, foi quem fez, em 1956, o primeiro registro na nossa Z-10, a Colônia dos Pescadores. 
             Para aqueles que, dentro da Colônia dos Pescadores, não acreditam no potencial cultural de uma festa assim (com procissão marítima, barracas, danças típicas, comidas...) para alavancar a suas atividades, eu escrevi este texto reflexivo. Aos demais que fizeram bonito, principalmente no prato típico da tainha, os meus sinceros parabéns.

        Em qualquer país é complicado defender uma pureza cultural. É coisa de atraso na evolução do intelecto. Ou de fanatismo. Chega a ser doença. Enfim, nunca será saudável e muito menos coerente, sobretudo em tempos de globalização, ver ou buscar difamar aquele que não é da nossa cultura. Quem sabe definir tal cultura? Em se tratando de Brasil, de qualquer rincão ou da moderna capital federal, incluindo aí o nosso município, quem procede assim é mais incoerente ainda! Afinal, vejamos um exemplo local: até mesmo os indígenas facilmente encontrados na feira, no mercado de peixe, fazendo compras no supermercado... são provenientes de outra região. Só estão aqui porque o saudoso Lacerda, na década de 1970, executou uma estratégia de guerrilheiro indigenista. E os tupinambás? Ah! Os tupinambás, que aqui habitavam na época da chegada dos portugueses, foram condenados à morte na famosa “Paz de Iperoig”, há mais de trezentos anos. Até mesmo a cultura caiçara é questionada na atualidade em que os migrantes constituem a maioria absoluta da população e os jovens naturais daqui sentem vergonha de seus poucos traços culturais, desconhecem a sua história, etc.
      Já publiquei um trabalho, realizado no final do século passado, sobre o pioneirismo de Jean Pierre Patural e sua esposa, dona Silvia. Para quem ainda não leu, posso adiantar que eles tiveram muita coragem para iniciar a vida matrimonial e empreendedora no sertão da Sesmaria do Ubatumirim, no início da década de 1950, quando sequer se sonhava com a rodovia Rio-Santos, sendo Ubatuba, conforme dizer do finado Odócio, “uma casca de saquaritá no cisqueiro lá de casa”, coisa que poucos viam ou valorizavam. Um desses poucos foi Félix Guisard, da Companhia Taubaté Industrial, que teve a iniciativa de apresentar ao jovem casal de franceses o quanto este pedaço de Brasil tinha de promissor, mesmo estando tão isolado, com os caiçaras que só tinham o “de comê”. Naquele tempo quem queria ver dinheiro migrava para a labuta nos bananais da Baixada Santista, ou ia morar em Caraguatatuba e trabalhar na fazenda dos ingleses.
Infelizmente o promissor agrônomo que entendia de tudo um pouco morreu cedo, quando o bananal começava o ciclo de exportação e seu filho Jean Pierre acabava de nascer no território caiçara. A Serra do Mar engoliu, junto com o monomotor montado num quintal de Taubaté, um jovem idealista repleto de sonhos. O tempo deu um fim ao trator, ao primeiro barco motorizado, e àquele que ocupa a inscrição número um na nossa Colônia dos Pescadores.
  

        A terra da família Patural que se transformava numa referência econômica antes do advento do turismo foi grilada. Hoje, após a morte da dona Silvia, seus filhos (Patrícia está na área da educação e Jean Pierre no setor pesqueiro) continuam como munícipes em Ubatuba. Assim se fizeram e continuam fazendo pelo Brasil e ao nosso município: através do trabalho e da evolução intelectual. Todo o resto pode ser classificado como perversidade, atraso da humanidade.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

MEU COMPADRE CHICO

O  Chico é como borboleta curiosa (Arquivo Marly Lopes)

                Tia Tereza Lopes, natural da Praia do Pulso, foi uma mulher lutadora. Maria, Aurora, Chico, Nini e Anastácio são seus filhos.
                Chico Lopes, meu compadre, se fez carpinteiro depois de cortar pedras e de passar por muitos ofícios. Na luta pela sobrevivência ele continua fazendo a sua parte, mas deduzo que, caso tivesse outras condições, ele iria pelos estudos no caminho da Antropologia.
                Como bom caiçara, agora morando no Ubatumirim, não longe da Praia da Justa, junto com a comadre Marly, o Chico sempre está atento a tudo, sobretudo aos aspectos da exuberante natureza, da Mata Atlântica. De repente, com um olhar azul inconfundível, parece estudar cada detalhe de um cipó, cada aroma que nota entre folhagens. “Tá sentindo esse cheiro, compadre? É embirana. Deve vir de uma folha partida e está bem perto. Será que foi algum bicho que passou desesperado entre a ramagem?”.
                Quantas vezes eu não vi o Chico, sem certeza em relação a uma planta, partir para provar frutos, cheirar folhas, quebrar um galho para apreciar alguns detalhes internos !?! “Tá vendo essa planta, compadre? Além das folhas miúdas, quebrando o galho e reparando na cor dá pra dizer que é cabreuva”. Ah! Então tá bom: o Chico seria botânico! É, pode ser mesmo. “É sujeito treinado em distinguir coisa que a gente nem enxerga” – dizia o papai – “Antigamente todo a nossa gente era assim". Quanto o mundo não ganharia se aos conhecimentos médicos se ajuntassem a sabedoria dos antigos em raízes, folhas, cipós e tantas outras coisas que nos acudiam nas necessidades? O Velho Machado de Assis, creio que nessa direção, assim expressou: “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo temos os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”. 
                Mas voltando ao início deste texto, ainda identifico o Chico com antropólogo. É que em muitas ocasiões, convivendo em outras comunidades, eu tive o prazer de observá-lo na interação total, sem reservas. Visitava tal como uma borboleta curiosa os ambientes de roçados, de pescaria e das prosas. Mais tarde tecia seus valiosos comentários. Como eu adorava esses momentos!

                Na verdade, ele mantinha uma “observação exaustiva” de tudo na comunidade em que era hóspede. “Você conhece semente de pacová, né compadre? Aprendi que ela é usada pela gente daqui como remédio para o coração”. 

terça-feira, 23 de junho de 2015

DIÁSPORA CAIÇARA

Arquivo JRS

Arquivo JRS

               Já disse que o amigo Júlio, um dos caiçaras que mais entende de topografia, esteve fazendo um levantamento na região do Saco das Bananas, terra do Dominguinho, e que agora até os americanos estão cobiçando seus préstimos lá na Flórida? Pois é! Durante o tempo em que esteve convivendo com o Dominguinho, o nosso topógrafo comeu muitas bananas, frutas-do-conde e, inevitavelmente, fez ótimos registros fotográficos. Certamente que escutou ótimas histórias dos caiçaras que nasceram naquela área.
               Olhando umas fotografias da última caminhada que fiz por ali, prestando atenção na imagem da escola abandonada e da jaqueira carregada, lembrei-me da didática da Professora Valda: “Hoje é dia de composição a partir de uma gravura”. A propósito, foi essa mestra quem mais  me incentivou à leitura.
               Naquele tempo, iniciando a década de 1970, todos os sábados, na escola da Praia do Perequê-mirim, o tempo era reservado para a leitura. É isso mesmo! Nessa época só tínhamos os domingos de folga escolar! Foi essa mestra quem nos apresentou Maria Clara Machado, José de Alencar, Monteiro Lobato e tantos outros nomes da literatura nacional. Mas... retornando ao principal,  preciso apresentar o Dominguinho, do ramo da família Antunes de Sá, descendente do Velho Izídio, que deixou a Fazenda dos Morcegos como herança a esse pessoal. É um lugar lindo,  na beira da costeira.
               Em 1980, realizando o censo naquelas paragens, encontrei o Dominguinho e demais parentes. Todos moravam por ali mesmo, entre roças de mandioca e bananais. Somente o Ditinho tinha a casa sobre as ruínas da antiga sede da fazenda. Naquele tempo – e até recentemente! – o nosso personagem (Dominguinho) era funcionário da prefeitura, recebia mensalmente para manter em boas condições aquele Caminho de Servidão, por onde se deslocavam os moradores carregando suas cargas, indo para a escola, se visitando, acompanhando a Folia do Divino etc.  Afinal, desde o Saco dos Morcegos até o Alto do Simão morava muita gente. Por isso, além da sala de aula na Praia do Simão, na casa do Luiz Januário, havia a escola da Praia do Saco das Bananas, bem perto de onde morava o Gregório Crispim. Ali ficou até meados de 1985 quando, na administração do prefeito Pedro Paulo, foi transferida da beira da praia para um ponto mais no alto do morro. O local da antiga escola ficou para a casa do “tubarão” que comprou a posse do Gregório. “O Bassim agora é dono de tudo”. A terceira escola, bem distante dali, na Praia da Caçandoca, conforme o depoimento do papai, “funcionava onde era, há muito tempo, a casa e armazém do Tio José Félix”.

               Por estes dias, visitando a região de tantas andanças, me sentei debaixo da sombra de uma bonita guaratã e me pus a relembrar de tantas pessoas queridas: Neide, Juventina, Valdemar, Elídio, Gregório, Helena, João Araújo, Odócia, Dirce... Tanta gente que se foi buscando melhores condições de vida, querendo dar aos filhos mais estudos. Agora, a escola de tantos caiçaras do Saco das Bananas está em ruínas, a casa do Luiz Januário (que abrigou a sala de aula no Simão) foi demolida pelos jagunços em 1991, a escola da Caçandoca há duas décadas está fechada... Porém, quantos amigos e parentes, a partir desses pontos, deixaram de ser analfabetos e se apaixonaram pelo conhecimento?!?

segunda-feira, 22 de junho de 2015

A INICIAÇÃO NA ARTE DA PESCA

Garateia (Arquivo Canoa Caiçara)

           Achei legal este relato do amigo Peter a respeito dos primeiros anos junto aos caiçaras da Praia da Enseada. Foi tudo isso que resultou no pesquisador que ele se revela a cada dia. Parabéns mesmo! Quer mais? Veja http://canoadepau.blogspot.com.br


Durante 11 anos (2000 a 2011) convivi diariamente com as comunidades caiçaras locais, da Enseada do Flamengo, em Ubatuba, São Paulo. Nesse tempo, diretamente atuei como pescador profissional e aquicultor (maricultor) junto aos pescadores tradicionais locais, compartilhando diariamente durante a intensa faina pesqueira seus saberes, artes, anseios, dificuldades, sofrimentos e alegrias.


Durante esse período em que me transformei em pescador, enquanto absorvia diretamente através da vivência real, os costumes e saberes locais relacionados ao universo pesqueiro tradicional, nunca me foi possível abandonar o olhar crítico, que, internamente e à todo instante, não cessava de tecer questionamentos e comparações entre, aquele modo de vida por mim escolhido e toda a bagagem cultural típica de um citadino de classe média, cuja noção de sobrevivência provinha de uma doutrina urbana que me havia impregnado desde os tempos de criança. Estudar, escolher uma profissão, formar-se na faculdade, arrumar emprego em uma boa empresa, casar, ter filhos e aposentar-se, essa era a cantilena.  Não poderia existir vida ou outra forma de sobrevivência que não fosse através desse caminho urbano-industrial.
Quando resolvi romper com esse sistema à mim imposto goela abaixo, e decidi “largar tudo” para ir viver literalmente na beira praia, por muito tempo ainda acompanhou-me a incerteza e o sentimento de culpa, pois, como poderia eu sobreviver naquele lugar novo, onde tudo o que eu havia estudado e aprendido na “escola” de nada servia para assegurar minha subsistência. Enquanto essas dúvidas me corroíam, todos os dias eu ia cada vez mais me aproximando e ganhando a confiança dos pescadores que se reuniam em frente à minha casa para conversarem, remendarem suas redes, consertarem seus barcos e canoas.
Certo dia correu a notícia de que uma “pegadeira de lula” estava acontecendo no Parcelzinho. Perguntei onde era e me disseram: “virando o canal”. Perguntei como se pescava a lula, “cum zagarelho, é tipo uma garateia de pescar espada, mas não precisa de isca, a lula pega sozinha”.
Até aquele momento, nunca nenhum pescador me havia convidado para ir pescar, e mesmo com minha demonstração de interesse pela pescaria de lula, naquela manhã ninguém me convidou para ir pescar no Parcelzinho. Pensei, vou pegar minha canoazinha e ir até esse Parcelzinho, já que “virando o canal” não deve ser tão longe. Peguei a minha garateia de pescar espada, linha, chumbada, arrumei uma corda bem comprida e uma poita para ancorar a canoa. Levei água, faca e uma cuia pra tirar a água (alguns conselhos eu já tinha escutado) e saí remando rumo ao canal da Ilha Anchieta, o temido Boqueirão. Uma hora e pouco remando, cheguei ao Boqueirão, fiz a travessia contornando para fora, virei e... ninguém! Remei mais um pouco para fora, para ter a visão total da costeira e vi ninguém. Comecei então a olhar para todos os lados, procurando, procurando, então vislumbrei bem longe, lá pras bandas do Ilhote das Cabras, bem rente à costeira da Ilha Anchieta, um monte de barcos juntos. Firmei os olhos e reconheci os barcos do Ico e do Jaime, dois pescadores com os quais havia conversado naquela manhã. Estavam muito longe, eu teria que atravessar todo o largo da Ilha Anchieta, atravessando todo o temido Boqueirão, ficando exposto ao vento e à correnteza, e nem ao menos sabia quanto tempo eu iria levar para chegar lá remando minha canoazinha, que era de um tamanho suficiente só para brincar na beira da praia.
Levei uns 5 minutos para decidir o que fazer, resolvi arriscar.
Remei, remei, remei, remei e quase três horas depois cheguei entre os barcos escutando a turma falar: “olha o Alemão aí!”. Achei um local à uma certa distância e joguei minha poita. Arrumei a linha com a garateia de espada e comecei a pescar. Todos os outros pescadores pegavam lulas, uma atrás da outra, e na minha linha, nada. Coloquei uma chumbada, e, nada. De repente armou uma tempestade vindo de sudoeste, cobrindo a Ilha toda, era uma trovoada com nuvens cinzas enormes que avançavam muito rápido trazendo vento e chuva grossa, uma típica chuva de verão. Não desisti, fingi não estar com medo pois todos ali estavam de olho em mim, soltei mais um pouco de corda, pois o vento já estava forte e não queria que a canoa fosse arrastada, e quando a chuva caiu eu deitei quietinho no fundo da canoa e esperei a trovoada passar. Para minha sorte, a chuva de verão é forte, mas passageira, e perto de 30 minutos depois a tempestade já havia passado e o sol da tarde voltava a brilhar. Tirei a água de chuva da canoa com a cuia, e tentei uma última vez pescar, mas nenhuma lula mordia meu anzol, pensei: que mistério será esse... porque só eu não consigo pescar? 
Percebi então que era perto de 4 horas da tarde e pelo tempo que tinha demorado para remar até o Parcelzinho, na volta, eu iria chegar só de noite na Praia da Enseada porque não pretendia pedir uma carona de volta, pois tinha que "dar uma de machão" já que ninguém tinha me convidado para estar ali pescando.
Recolhi a poita, ajeitei as tralhas e rumei naquele lindo entardecer para o Boqueirão, aproveitando para atravessá-lo enquanto ainda o dia estivesse claro, por segurança. Cheguei em casa já com a noite fechada, sem lula alguma mas com uma aventura fantástica gravada para sempre na minha alma.
No outro dia, reencontrando a turma de pescadores na praia, ao invés de me chamarem de Alemão, todos brincavam: “ó o matadô de lula aí!”. Por toda aquela semana eu me tornei o “matador de lula”, embora nenhuma delas eu tenha capturado. E a causa desse insucesso logo eu descobri, já que o zagarelho, na verdade não é igual à uma garateia de espada como eu havia erroneamente entendido, na verdade, ele é uma isca artificial especialmente projetada para pescar lulas, então só com muita, mas muita sorte mesmo eu teria conseguido pescar uma lula com a minha garateia.
O resultado dessa epopeia toda foi que imediatamente, todos os pescadores passaram a me chamar para pescar em seus barcos e começaram a me ensinar as técnicas de pesca. Assim, um universo novo e riquíssimo começou a se materializar diante dos meus olhos. Fui iniciado nas artes de pesca e toda a paisagem, os objetos, as ferramentas, os animais, o mar e os peixes, adquiriram novos e surpreendentes significados. Tudo o que eu já tinha visto e experimentado sofreu uma transformação radical tanto na forma como no modo que minha percepção interpretava o ambiente natural. Uma outra dimensão, um outro mundo possível se descortinou e nesse processo eu mesmo me transmutei de maneira irremediável e irreversível.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

A CASA DA VOVÓ

               
Alguns dos meus azulejos (Arquivo JRS)
           Ruth Previati; seja bem-vinda ao coisasdecaicara!

           A casa da vovó era imensa porque eu era pequeno. Naquele tempo quarto era chamado de camarinha, com seus varais onde peças de roupas eram dispostas. Na camarinha maior, perto da cama da Tia Maria, as paredes eram repletas de fotografias em páginas de revistas: eram atores, atrizes, cantoras e cantores que faziam sucesso na época. “Todos tão lindos!”. Na camarinha pequena dormia o Tio João, mas de lá migrou depois da morte do Tio Clemente. “Coitado dele! Ficou muito impressionado! Agora tem medo de dormir sozinho!”. Na terceira camarinha dormia vovô e vovó, em camas separadas de acordo com o costume dos mouros (vovô era de cepa Mesquita). O único guarda roupas da casa, que tinha até espelho na porta, ficava nessa camarinha.
                Na cozinha tudo era maravilhoso: o fogão ornamentado  pelos fiapos de picumã desde as ripas de jiçara, a barrica de farinha de mandioca, a gamela de peixe sapresado, os balaios de peixe seco, a caixa de sal grosso, o caldeirão pendurado no caibro para ficar bem longe das formigas, a grande mesa e seus bancos que nos reunia a cada refeição ou nos momentos da faina da vovó (torrando café, escolhendo feijão na peneira, preparando doce de mamão...), o pilão que sempre transformava milho em pixé, as prateleiras onde, entre poucas peças, tinha destaque as canecas de ágata e dois ou três tigelões de louça, um socador de feijão etc.
                Entre a cozinha e a sala ficava um corredor, onde estavam de pé, encostadas, as esteiras de taboa. Ali também ficavam as roupas de trabalho, as botas de borracha, algumas ferramentas, os balaios de café seco que eram transformados em pó no decorrer do ano. Era um bom lugar para nós brincarmos de esconde-esconde.

                “Que sala tão grande, né mãe?”. Que fantástica aquela sala! Era o único cômodo de piso cimentado; os demais era chão batido. Existia um lampião que tinha camisa acendida por pouco tempo a cada anoitecer. Outra coisa fantástica era um grande rádio de pilha que somente o vovô ligava. Nas madrugadas acordávamos embalado pelas músicas sertanejas de raiz.  Também fazíamos silêncio nos momentos dos noticiários. Na verdade, esse aparelho era bem dizer reverenciado. A antena, capaz de captar até mensagens da Rússia e do Japão pelas ondas curtas, se assemelhava a um varal de arame sobre a cumeeira da casa. Foi naquela época que eu percebi, alertado pelo Tio Marcelino, uns sinais diferentes durante as programações. De acordo com esse tio que apenas passava um mês conosco, porque era funcionário da COSIPA (Companhia Siderúrgica Paulista), na Baixada Santista, aqueles estalos de intensidades diferentes faziam parte de uma mensagem. Era um tal de código Morse. Numa noite ele até decifrou a possível mensagem: “chegando costeira maré seca japonês saquinho manso pescando”.  Eu só pude dizer: “Que maravilha, né titio? Essa gente do estrangeiro inventa cada coisa!”

domingo, 7 de junho de 2015

TARANCÓN E O MAR

Grupo Tarancón (Arquivo internet)

                Está no final a 2ª Semana do Mar, em Ubatuba. De repente, a programação diz: Grupo Tarancón se apresenta no sábado, às 20:00 horas, no Projeto Tamar. Não tenho dúvida: vamos lá!

                Na minha juventude, eu pertencia a um grupo de jovens que enxergava as coisas de outra forma. Assim, influenciados por todo um contexto histórico, pelas notícias da ditadura chilena matando Victor Jara, pela poesia de Violeta Parra e pela música de Mercedes Sosa, conhecemos o grupo que difundia ritmos brasileiros, andinos e outros que não era costume aparecer na mídia. Diziam que o nome derivava de uma mina de carvão nas Astúrias que, desabando, matou onze trabalhadores. Mas...enfim... nós nos apaixonamos pelo pessoal. Por isso, fiquei contente pela oportunidade de toda a minha família poder ter desfrutado, ontem, do espetáculo na sede do Projeto Tamar.
                Da formação inicial, logo reconheci o Emílio fazendo o melhor de si nas flautas. Que beleza o som da zampoña!  Outro destaque continua sendo o charango na sua melodia estridente, tal como o cavaquinho. Ah! Brincaram o Estevan e o Régis: “O nome daquele cavaquinho é charango”.
                Na hora me recordei de Victor Jara percorrendo o Chile e resgatando os ritmos dos povos andinos e transmitindo para o mundo todo esse vigor. Por isso foi fuzilado no estádio de futebol pelos militares que governaram esse país latinoamericano. Vale a pena ler mais a respeito desse pessoal que, através da arte, promoveu a conscientização de tanta gente. Num determinado momento, quando ouvíamos a música de Mercedes Sosa, as lágrimas vieram com a lembrança da Tia São que tanto a amava.

                Tarancón – Já se passaram trinta e cinco anos desde o nosso primeiro contato!

sexta-feira, 5 de junho de 2015

CHIRUNGO

Aí tem tatu! (Arquivo JRS)
Chirungo (Estevan)

               - Tio Neco, com é mesmo o nome daquela armadilha de caçar tatu?
               - É chirungo, Zé.
               Assim comecei umas das prosas de sábado com o Tio Neco. E ele se embalou nos detalhes:
               - Perto de nossa casa, no Sapê, tinha o tatu da vargem e o tatu do morro. O tatu da vargem é preto; o do morro é vermelho. Dos dois a gente pegava no chirungo. Era assim: ao encontrar uma toca de tatu, a gente cortava um monte de varetas com mais de metro de tamanho. Ia fincando em círculo, deixando o buraco do bicho bem no meio. No alto das pontas, com um cipó resistente, era feita uma amarração, formando uma espécie de funil de cabeça pra baixo. Depois, entre as varetas, a gente enchia de terra até em cima. Ficava lá. Ao sair, o tatu ia cavando para cima até chegar ao ponto máximo, no funil. Aí, sem espaço de manobra, ele ficava encurralado, preso.   Depois, para a nossa alegria esfomeada, bastava levar para a mamãe preparar a refeição.
                     - E ouriço, Tio? Eu me lembro pouco das vezes que vi a vovó preparando esse bicho.
               - A gente comia muito ouriço também. Ele tem pele caruguenta  (enrugada); deve ser pelado (passado no fogo) como gambá.  Assim que queima as pontas dos espinhos, eles caem porque a vida deles está na ponta. É por isso que eles andam pelos corpos que espetam.
                  - Tinha tanto ouriço assim, Tio?
               - Tinha sim. Tinha de dois tipos: o cacheiro que é mais escuro, grande, de espinhos amarelados; e o cachimbo que é pequeno, peludo, branco. Seus espinhos ficam escondidos entre os pelos compridos.
                    - Eu não conheci o ouriço cachimbo, Tio.

               - Não? Antigamente era fácil de encontrar deles pelos caminhos, nas árvores. Eu me lembro de uma ocasião quando eu e o Dito, ao levarmos a comida para o Girdo e o padrinho Antônio que trabalhavam no engenho de pinga da Maranduba, avistamos um ouriço cachimbo no galho de ingá-feijão, que tinha muito na beira do rio. Largamos o caldeirão de comida no chão e partimos para a caçada. Depois de muitas tentativas, derrubamos e matamos o bicho. Na volta, recolhemos o coitado e levamos para a mamãe. Eu tinha oito anos e o Dito dez. A gente ficava todo orgulhoso em levar uma caça para casa, em contribuir com a alimentação de todos. 

quarta-feira, 3 de junho de 2015

O RABEQUEIRO


Ricardo, o rabequeiro do Ubatumirim (Arquivo  A Semana)
Tio Maneco e sua rabeca (Arquivo Kilza Setti)
Ricardo e as crianças  (Arquivo Kilza Setti)

                   Ao ler ou ouvir a respeito do Ricardo, logo me recordo dos nossos encontros, quando os herdeiros do Nunes Pereira se reuniam para lutar pelas terras do Ubatumirim. Eu cavava os momentos para prosear com ele a respeito da sua arte e da correria dos últimos tempos, quando se deslocava colhendo ostras para se garantir honestamente. Também não posso deixar de citar os vários momentos que presenciei de muita amizade entre esse grande rabequeiro e o meu Tio Maneco Armiro, um grande rabequista, ambos autodidatas do mundo caiçara. Desde já, agradeço a Eli Ana pela contribuição ao texto original.

Personagens caiçaras que marcaram época.


           O som da sabedoria caiçara “O verdadeiro rabequeiro de toda região foi de Ubatuba. Autodidata, o caiçara da praia do Ubatumirim aprendeu apenas no olhar a confeccionar as mais belas rabecas que os olhos já viram. O instrumento de um tronco, valorizado como objeto de arte pela população que pouco tem contato com as danças tradicionais como a Folia de Reis, isto só é possível porque existiu as mãos... do sr. Ricardo Nunes Pereira”
         Filho das terras do Ubatumirim, região norte de Ubatuba. Toda sua família sempre foi daquela localidade: Seu bisavô Cabral foi o primeiro proprietário de todas aquelas terras. Com o passar do tempo, as coisas mudaram e a dificuldade econômica reinou no lugar. Sua mãe, faleceu com seus 105 anos, nunca conheceu outro bairro ou praia. O Sr Ricardo teve com Dª Francelina Maria Pereira nove filhos e este foi um dos principais motivos que tanto trabalhou. Para o sustento, ele fez de tudo um pouco: pescaria, limpeza de roça, venda de ostras na praia da Enseada e Almada, fez artesanato de madeira e taquara e deu aula nos últimos anos de vida do ofício que mais se orgulhava e trouxe experiência de toda uma vida: a arte de fazer rabecas. Este instrumento é uma espécie de violino de som fanhoso. O Sr Ricardo escolhia carinhosamente a madeira que sua experiência lhe permitia e afirmava que as melhores eram a guairana e o cedro e as esculpia cuidadosamente, trabalhando primeiramente sua forma exterior e depois interior. Sua rabeca tinha uma durabilidade infinita, ele as afinava e pronto: já estava pronta para o próximo rabequeiro, o admirador do instrumento.
               O Sr Ricardo dizia que aprendeu apenas olhando a Folia na roça. “Quando o violinista ia andando, saía de uma casa e entrava na outra, ele ia olhando na rabeca dele. Aí, ele ia embora e ele entrava na mata, cortava uma madeira e fazia uma. Com dez anos de idade ele começou a fazer rabeca; ninguém ensinou, ele olhava o violinista da folia e recortava a madeira e fazia”, dizia ele.
         Suas rabecas foram até para o exterior (França e Portugal) adquiridas como obras de arte. Ele foi único rabequeiro oficial de Ubatuba que se teve notícias, ensinou está a arte para as crianças da fundação “O Menino e o Mar” e adultos na Fundart. Ele dizia que quando era convidado a estar nas danças folclóricas como a Xiba, São Gonçalo e Folia de Reis sempre participava tocando uma de suas rabecas, mas tocar não era seu forte.
          Sr Ricardo era muito querido na cidade de Ubatuba, deixou aqui muitas saudades para todos que o conheceram.
Nos deixou no ano de 2010.

FONTE:Jornal a Semana
Adaptação para data atual : Eli Ana De Oliveira Figueiró da Silva