Thomaz Cancer já fabricava uma boa pinga no início do século XX. (Arquivo JRS) |
Seja bem-vinda, Mônica Inácio!
A
minha vó Martinha foi menina de engenho. “Eu trabalhava, ainda novinha, no
engenho de pinga do vovô Chico Cabral”, costumava relembrar de vez em quando.
“Tinham outros que também faziam pinga, mas eu não conheci. O vovô contava de
um engenho admirado por ele, onde tinha uma cachaça muito bem falada. Era perto da
cidade, depois do Sertão das Cotias e do Morro da Berta. O dono era um tal de
Tomás ”. Passou tempo. A Praia do Pulso, onde vivera o nhonhô Chico Cabral,
também foi tomada por casarões. Vovó findou seus dias no bairro da Estufa.
Na
adolescência, quando comecei trabalhar num bar, “topei” com a “mardita”
Ubatubana, a substituta daquela produzida por Thomaz Cancer. Quem revendia o
produto, em dúzia de litros acondicionados em engradados de madeira, era o Zezé
da Antárctica, irmão do Ditinho Jati. Era cheirosa a danada! O rótulo estampava
uma embarcação puxada numa prainha, tendo ao fundo uma ponta sobre o mar e
morros verdejantes. Essa pinga cheirosa da nossa terra se apresentava como
“branquinha” ou “amarelinha”. Os turistas faziam questão de comprar litros e litros.
Diziam: “Essa é da boa!” Depois, com a
chegada das aguardentes industrializadas (Riopedrense, 51, Tatuzinho etc.),
foi-se a famosa Ubatubana.
Demorou
tempo para que eu conhecesse melhor alguns dos Chiéus, os fabricantes desse
produto que, desde 1978, deixou de ser produzido ali perto da ponte da estrada
do Monte Valério, na Fazenda Velha. Então, passei a alimentar um desejo: saber
mais coisa, ouvir a história desse pessoal e do engenho de pinga que faz parte
da memória de Ubatuba (e dos ubatubanos!). Finalmente me encontrei com o
Umberto Chiéus, o “Nenê”. Era sábado. Conforme me garantiu o Arnaldo, seu
filho: “Todos os dias, a partir das sete horas, ele já está no mato. É a rotina
dele. Ele vai gostar de conversar com você a respeito da fazenda”. Assim, com
uma boa disposição, quase completando os oitenta e três anos, ele contou:
O
meu pai era Domingos Chiéus, italiano que morava em Piracicaba. Por indicação
de Alexandre Malfatti, irmão da famosa Anita, ele veio trabalhar nesta fazenda
em 1928. A proprietária na época era a Francisca. O primeiro dono tinha sido o
Thomaz Cancer, seu filho. [Neste momento ele mostrou a chapa de cobre vazada,
usada na identificação do fabricante nos barris]. Depois, tudo passou à Rafaela
(que também era filha da dona Francisca).
Éramos
seis irmãos: Roberto, Augusto, Domingos, Gilberto, Umberto e Antônio. Só eu e o
Antônio nascemos em Ubatuba. Somos caiçaras! Após a morte de nosso pai,
estávamos resolvidos a deixar esta cidade porque apresentava uma mínima possibilidade de crescimento econômico. Foi quando a dona Rafaela quis vender
as terras (aproximadamente duzentos hectares) para nós. A fazenda fazia parte
da gente. Nós a compramos. Desde 1952 ela nos pertence.
A
área de plantação de cana ocupava cerca de vinte e cinco hectares. Equivale aos
terrenos do Jardim Carolina e do Jardim Samambaia. A produção era boa. Chegamos
a ter até dez trabalhadores nos bons tempos de produção, por volta de 1970. A
pinga produzida aqui tinha uma boa aceitação na cidade, mas a gente também
vendia para fora (São Luiz do Paraitinga, Taubaté...). No tempo da safra, às
quatro horas da madrugada nós já vínhamos para o engenho. A produção girava em
torno de mil litros por dia. A capacidade de depósito era para mais de cento e
vinte mil litros. Você imagina isso?
A
entrega era feita pelo próprio engenho. O lugar mais longe, ainda lembro bem,
era no armazém do Maciel, na Enseada. Duas pessoas a cavalo saíam no amanhecer.
A carga seguia de cargueiro: dois burros, abarrotados de litros entre palhas,
seguiam a “Trilha da Ferrovia” até o Itaguá. Depois atravessavam a Praia Grande
e a Toninhas, sempre pelo lagamar. Então subiam o morrão e desciam a estrada
para a praia, onde ficava o maior armazém daquele tempo. Diziam que o Maciel
tinha os melhores preços. Só sei dizer que, por volta das duas horas da tarde o
pessoal estava de volta, na fazenda.
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