domingo, 31 de março de 2013

RESPEITO CAIPIRA



Ah! Que beleza era uma cantoria de caiçaras e caipiras no serão!  (Arquivo  Kilza Setti)


Eu tenho uma amiga caipira de muito tempo. A Alzira é de Natividade da Serra, mas não consegue ficar muito tempo sem passear por Ubatuba. Quando a gente se encontra é para se informar das famílias, do trabalho, de como vai a saúde etc.
O trabalho da Alzira e de seu marido Zé é cuidar de um pequeno sítio. Também ganham algum dinheiro fazendo  breves trabalhos para terceiros. O único filho que tiveram foi-lhes roubado há quase trinta anos, lá na roça mesmo. Alguém chegou de carro, fez um agrado para a criança que estava perto da cerca e a levou. Nunca mais ninguém a viu. De lá pra cá, mesmo passando o sofrimento inicial que quase enlouqueceu o casal, não tem como esquecer a infelicidade. Basta ficar mais de quinze minutos com eles para que a veia da tragédia se levante na carne dos dois.
Num dia desses estava eu andando pela Rua Conceição; de longe avistei os dois e fui ao encontro deles. Que simpáticos! 
Tem um gesto que eu acho lindo no Zé: em toda ocasião, ao me cumprimentar, ele tira o chapéu e permanece com ele na mão por todo o tempo que durar a nossa conversa. Só após a despedida a indumentária retorna à cabeça. É um ritual de respeito caipira. Quem me explicou isso num tempo distante foi o vovô Armiro: “É uma saudação, uma acolhida ao outro, como se dissesse  que você merece ser reverenciado, a sua amizade é muito importante para mim”.
O vovô era de uma geração de grande afeição pelos caipiras, sobretudo da Vargem Grande e das Palmeiras. Era “gente de serra acima”, conforme diziam. Até por volta de 1960, era comum o comércio entre caiçaras e caipiras. De um lado vinha queijo, farinha de milho e carne seca; de outro era peixe seco, farinha de mandioca e pinga. Alguns desses caipiras  trabalhavam como diaristas nos bananais e nas roças de mandioca. Muitos nunca mais voltaram pros lados da serra acima. Exemplos: Donária, Toninho “Caipira”, Dito Máximo etc...

quarta-feira, 27 de março de 2013

ERA ASSIM MESMO


Olha aí a mardita, a branquinha cobiçada! (Arquivo JRS)


    Num dia desses, em conversa com o meu pai bem cedinho, num café regado com farinha e abacate, perguntei das suas lembranças a respeito da Fazenda Velha, dos Irmãos Chiéus, onde fabricava a pinga Ubatubana. Ah! Ele divagou em sua infância distante! Ficou emocionado. Afinal...

  “A primeira vez que eu passei por aquele caminho faz muito tempo. Devia ser o ano de 1945; foi junto com o papai. Ainda morávamos na Praia do Pulso. Eu tinha oito ou nove anos, se não me engano. Saímos antes do dia amanhecer, com uma carga de quarenta alqueires (vinte e cinco quilos) de farinha de mandioca. A distância de lá até o centro da cidade é de 27 quilômetros. Era uma quantidade produzida a mais para vender em algum armazém, acho que do Teixeira Leite. O dinheiro sempre voltava em forma de mercadorias que a gente precisava naquele tempo (sal, querosene, arroz, óleo, fósforo...).
 Você imagina essa distância, com uma carga de farinha? Para a viagem, ainda me lembro muito bem, na  véspera, à noite, a mamãe preparou uma comida. A mistura foi ouriço assado. A nossa parada para comer foi ali na descida do Morro da Berta, no Poço da Onça. Ainda tem lá aquela água gostosa! Depois, descendo um pouco mais, já era a Fazenda dos Irmãos Chiéus, onde todo mundo parava para conversar um pouco, tomar um gole de pinga e terminar o trecho até a cidade. A cachaça era cortesia deles; um agrado para os caminhantes.
 Na cidade, fizemos o que era preciso fazer. Já era na metade da tarde e eu estava muito cansado. Era criança, né? Então fomos para a Estufa, na casa da tia Sebastiana, onde dormimos e descansamos bem para fazer, no dia seguinte, o mesmo caminho de volta. Novamente o papai levava uma carga de compra. Era tudo a pé. Só quando o mar estava manso é que era possível fazer um pedaço dessa distância de canoa. A gente vinha remando desde o Pulso até o canto de cá da Lagoinha. Era dificultoso? Se era! Mas quando não se tem facilidade, a dificuldade é coisa normal, quase não se sente”.

segunda-feira, 25 de março de 2013

A VIDA NA FAZENDA VELHA



Umberto Chiéus continua na batalha.  (Arquivo JRS)
“A vida aqui na fazenda era muito boa. Tinha bastante trabalho, mas também dava tempo de sair para umas caçadas. Aos domingos, nessa época de abril a junho, sempre foi tempo de passarinhar, de ir em busca de paca, tatu, cotia e outros bichos para a nossa alimentação. Segunda-feira, na minha casa, o almoço quase sempre tinha uma saborosa passarinhada ou carne de caça preparada pela minha mãe. Depois desse tempo, quando terminava junho, a gente pendurava a espingarda na parede porque é quando todo bicho está criando, desde os passarinhos até as grandes antas.  Todo mundo respeitava esse tempo.
      À praia a gente ía de vez em quando. Lógico que a preferida daquele tempo era a do Perequê-açu, perto do Rancho do Galo!”. 
Assim continuei por algumas horas papeando com o Umberto Chiéus, o “Nenê”. Como é bom escutar as suas histórias!
O “Nenê” tem muito assunto; de tudo ele fala um pouco. Outro tema que o deixou muito emocionado foi das paradas que os caiçaras faziam na fazenda antes de se dirigirem à cidade: “Ali, no terreiro da casa da entrada, tinha uma pedra redonda e achatada. Bem ali passava a trilha por onde todo mundo, dos bairros e praias mais distantes, passavam ao irem resolver seus negócios na cidade. Também havia muita movimentação em tempo de festas. A parada era obrigatória. Tomavam uma pinguinha, comiam alguma coisa do que traziam. Agradeciam muito, novamente tomavam suas cargas e lá se iam. Todo mundo era muito pobre naquele tempo. A gente conhecia todo mundo dessas bandas mais distantes: Fortaleza, Caçandoca, Lagoinha, Bonete...”.

sábado, 23 de março de 2013

FAZENDA VELHA

Thomaz Cancer já fabricava uma boa pinga no início do século XX. (Arquivo JRS)

                         Seja bem-vinda, Mônica Inácio!

          A minha vó Martinha foi menina de engenho. “Eu trabalhava, ainda novinha, no engenho de pinga do vovô Chico Cabral”, costumava relembrar de vez em quando. “Tinham outros que também faziam pinga, mas eu não conheci. O vovô contava de um engenho admirado por ele, onde tinha uma cachaça muito bem falada. Era perto da cidade, depois do Sertão das Cotias e do Morro da Berta. O dono era um tal de Tomás ”.   Passou tempo. A Praia do Pulso, onde vivera o nhonhô Chico Cabral, também foi tomada por casarões. Vovó findou seus dias no bairro da Estufa.
             Na adolescência, quando comecei trabalhar num bar, “topei” com a “mardita” Ubatubana, a substituta daquela  produzida por Thomaz Cancer. Quem revendia o produto, em dúzia de litros acondicionados em engradados de madeira, era o Zezé da Antárctica, irmão do Ditinho Jati. Era cheirosa a danada! O rótulo estampava uma embarcação puxada numa prainha, tendo ao fundo uma ponta sobre o mar e morros verdejantes. Essa pinga cheirosa da nossa terra se apresentava como “branquinha” ou “amarelinha”. Os turistas faziam questão de comprar litros e litros. Diziam: “Essa é da boa!”  Depois, com a chegada das aguardentes industrializadas (Riopedrense, 51, Tatuzinho etc.), foi-se a famosa Ubatubana.
                Demorou tempo para que eu conhecesse melhor alguns dos Chiéus, os fabricantes desse produto que, desde 1978, deixou de ser produzido ali perto da ponte da estrada do Monte Valério, na Fazenda Velha. Então, passei a alimentar um desejo: saber mais coisa, ouvir a história desse pessoal e do engenho de pinga que faz parte da memória de Ubatuba (e dos ubatubanos!). Finalmente me encontrei com o Umberto Chiéus, o “Nenê”. Era sábado. Conforme me garantiu o Arnaldo, seu filho: “Todos os dias, a partir das sete horas, ele já está no mato. É a rotina dele. Ele vai gostar de conversar com você a respeito da fazenda”. Assim, com uma boa disposição, quase completando os oitenta e três anos, ele contou:
                O meu pai era Domingos Chiéus, italiano que morava em Piracicaba. Por indicação de Alexandre Malfatti, irmão da famosa Anita, ele veio trabalhar nesta fazenda em 1928. A proprietária na época era a Francisca. O primeiro dono tinha sido o Thomaz Cancer, seu filho. [Neste momento ele mostrou a chapa de cobre vazada, usada na identificação do fabricante nos barris]. Depois, tudo passou à Rafaela (que também era filha da dona Francisca).
                Éramos seis irmãos: Roberto, Augusto, Domingos, Gilberto, Umberto e Antônio. Só eu e o Antônio nascemos em Ubatuba. Somos caiçaras! Após a morte de nosso pai, estávamos resolvidos a deixar esta cidade porque apresentava uma mínima possibilidade de crescimento econômico. Foi quando a dona Rafaela quis vender as terras (aproximadamente duzentos hectares) para nós. A fazenda fazia parte da gente. Nós a compramos.  Desde 1952 ela nos pertence.
                A área de plantação de cana ocupava cerca de vinte e cinco hectares. Equivale aos terrenos do Jardim Carolina e do Jardim Samambaia. A produção era boa. Chegamos a ter até dez trabalhadores nos bons tempos de produção, por volta de 1970. A pinga produzida aqui tinha uma boa aceitação na cidade, mas a gente também vendia para fora (São Luiz do Paraitinga, Taubaté...). No tempo da safra, às quatro horas da madrugada nós já vínhamos para o engenho. A produção girava em torno de mil litros por dia. A capacidade de depósito era para mais de cento e vinte mil litros. Você imagina isso?
                A entrega era feita pelo próprio engenho. O lugar mais longe, ainda lembro bem, era no armazém do Maciel, na Enseada. Duas pessoas a cavalo saíam no amanhecer. A carga seguia de cargueiro: dois burros, abarrotados de litros entre palhas, seguiam a “Trilha da Ferrovia” até o Itaguá. Depois atravessavam a Praia Grande e a Toninhas, sempre pelo lagamar. Então subiam o morrão e desciam a estrada para a praia, onde ficava o maior armazém daquele tempo. Diziam que o Maciel tinha os melhores preços. Só sei dizer que, por volta das duas horas da tarde o pessoal estava de volta, na fazenda. 

quinta-feira, 21 de março de 2013

AS CICATRIZES

Olá, Maritudan0!  Que tal saber mais dos caiçaras?


Dando continuidade ao texto do Mingo, apresento um depoimento que permite “notar as cicatrizes espaciais e sociais provocadas pelo choque entre a sociedade de produção industrial e a sociedade da lavoura e da pesca artesanal”. Acha pouco olhar para o jundu e não ver nenhum rancho de canoa? E o que dizer dos morros agora tendo somente mansões, nos lugares dos antigos roçados? Ai! Tantas festas e tradições estão indo para o esquecimento!!!

O primeiro entrevistado foi o Benedito Gabriel, natural da Praia da Raposa. Na época ele vivia em Vicente de Carvalho, quase Guarujá. A palavra é dele:

Quando meu pai veio como  escravo ele era pequeno, o patrão tratava dele muito bem. Ele veio de São João Marcos... Ele não trabalhava, os outros todos trabalhavam... Ele era só pra fazer viagens pro patrão, serviços de casa...
As canoas de voga faziam o transporte de Ubatuba para Santos, a remo e a vela... Embarcavam lá naqueles engenhos lá... Do Antônio Madalena, Zé  Marcolino, Chico Cabral... Enchiam aquelas canoas de voga com até dez ou quinze barris de cachaça de cem litros... Canoa pequena tinha três remos, canoa grande tinha até seis remos grandes, com duas velas... Uma vela traquete adiante e outra atrás... Quando o vento dava, suspendiam os remos e usavam só a vela... Quando não tinha vento era só no remo... Gastavam dois, três dias para pegar a boca da barra em Bertioga... Quando o tempo estava ruim, num portinho melhor se encostavam... Traziam suas comidas dentro da canoa... E ajuntavam no remo... Tinha ocasião, quem ia embarcar cachaça pro Zé Marcolino, pro Antônio Madalena, falavam que tinha vento que corria só com a (vela de) mezena, não precisava da traquete... Tinha ocasião que pegavam cada leste, que vinham até aqui na boca da barra (Barra de Bertioga)... Eles padeciam muito, também, ô se padeciam... Remar de Ubatuba até aqui!
A canoa era feita de uma madeira só, de jequitibá, de dois metros de boca... Tem jequitibá muito grande... A madeira maior que tem pra fazer canoa é o jequitibá... Existia muita canoa grande... Chegavam ali na Prainha do Pulso pra pegar a Pinga do Chico Cabral... A canoa de voga não chegava em terra não... Pegavam os quintos de cachaça em canoas pequenas pra jogar dentro da outra canoa, que ficava fundeada fora, igual a um barco, a mesma coisa... Havia um pessoal dos remos e um só pro leme... Onde pegava mais pinga era no Chico Cabral, ocupava todo o espaço e só deixava lugar pros remadores...
Se plantava milho, feijão, arroz, batata, tudo quanto era planta miúda, banana...
Quando a planta não dava bem (má colheita), passava necessidades... Eu passei muito...Eu não vou dizer que a gente na roça passava bem... A pessoa na roça não passava bem... Ninguém passava bem... A situação era ruim... Pro pessoal que trabalhava em roça, naquele tempo, a situação era ruim... Mas também eram aqueles pais pra criar quatro ou cinco filhos, tudo da roça... Era difícil, meu filho... Meu pai não trabalhava, era velhinho, só fazia viagem pra um, viagem pra outro... 
O que eu fazia? Eu roçava, queimava, plantava e deixava pra eles cuidarem e vinha pra cá ganhar dinheiro pra mandar pra lá.
Aqui eu trabalhava em bananal, roçar bananal dos outros. O meu pai morreu no dia 7 de setembro de 1926...Dia 15 de outubro de 1926 viajei para Santos, moleque ainda, os meus irmãos que me trouxeram... Meus irmãos já eram casados.
Em Ubatuba, a venda de bananas era só pra despesa com o negociante... Alguns cortavam cinco, seis, dez, quinze dúzias de cachos de bananas... Naquela época quase não existia dinheiro... Quando saí de lá em 1966...a dúzia de banana que tava vendendo pro Natanael era mil e quinhentos a dúzia de cachos de bananas...O pessoal naquele tempo entregava a mercadoria da roça e pegava compra. Quando vendia algum cacho a bordo, ainda dava...Mas quando entregava pra ele revender a bordo, não sobrava nada.
Não tinha preço...café, farinha... nós cansava de fazer carreto de farinha de lá da Caçandoca pra Cocanha, pra vender o alqueire, 40 litros, a dois, três mil... É, a vida era triste... Plantava milho, plantava feijão... Milho, então, não tinha valor... Fazia carreto de milho, pra chegar lá e entregar o alqueire de milho a mile quinhentos... Não dava, tudo era barato... Por isso a gente fazia a roça, deixava pras mulheres cuidar e tinha que sair fora e vir pra cá pra recuperar um dinheirinho pra poder cobrir as despesas.

terça-feira, 19 de março de 2013

NÃO SE TORNOU LIVRO...

Raul Quedas, seja bem-vindo!  Eis a Prainha do Tapiá. (Arquivo  JRS)

Mas bem que poderia! Me refiro ao trabalho do mano Mingo [Domingos Fábio dos Santos], apresentado ao Departamento de Geografia (USP - 1993),  cujo tema é Plantando na terra, colhendo no mar. A partir de hoje, me proponho a apresentá-lo, em algumas partes, para que os leitores do blog saibam do conteúdo. Afinal, foi o principal trabalho utilizado para sustentar toda a movimentação na área da Caçandoca, na demarcação de “território quilombola”. Vamos em frente!


Sendo uma região marítima, Ubatuba, desde cedo foi colonizada, sendo palco de escaramuças entre portugueses, franceses e índios tupinambás.
Após a supremacia lusitana, quando aquele trecho do litoral entre Santos e Rio de Janeiro, se tornou uma das regiões mais dinâmicas do Brasil colonial, Ubatuba também se destacou economicamente, seja como porto escoadouro dos produtos do Vale do Paraíba, seja pela própria produção pesqueira e agrícola. Até finais do século XIX, haviam fazendas por todo o Município, sempre com o modo de produção baseado no escravismo.
A decadência se dará com o fim do regime escravocrata e com o desvio dos fluxos de circulação de mercadorias para os portos de Santos e do Rio de Janeiro.
Entre o crepúsculo do século XIX e meados do século XX, aquele trecho do litoral, isolado pelas muralhas cratônicas na retaguarda e pelo Oceano Atlântico à frente, se viu esquecido pelo restante do país.
Para entendermos a espoliação praticada contra os caiçaras, há que se analisar as estruturas econômico-sociais vigentes, os padrões culturais e costumes da população praieira. a grosso modo, pode-se dizer que Ubatuba manteve as características novecentistas até  meados do século vinte, ocasião da abertura e melhoria das vias de acesso do Vale do Paraíba com o Litoral Norte. Isso vai se verificar na religiosidade, na ingenuidade de visão do mundo e das pessoas, na produção econômica, nas festas etc. A apropriação da terra até esses anos, vai ser semelhante aos anos do período colonial, que no dizer de Maria L. Marcílio (1986): “A terra só tinha valor comercial quando explorada e em produção. A noção de propriedade da terra no sentido do completo usus e abusus, tinha pouca consistência dentro desse sistema de cultivo e agricultura itinerante. É por essa razão que poucas foram as sesmarias solicitadas no município até início do século XIX. E poucos eram os lavradores preocupados em oficializar sua posse ou os títulos de sua propriedade individual”.
Depois do breve período cafeeiro, por volta de 1850-60, Ubatuba sofreu uma gradativa diminuição e estagnação de sua população, que perdurou até meados do século XX.
         Para entender melhor, os ritmos populacionais deste território variavam muito. Em 1771, o município só contava 1.338 almas, entre livres e escravos. No final do século já conseguira dobrar em números (2.652 habitantes em 1799). Trinta nos depois ela duplica seus habitantes, mais uma vez. Em suma, num período de 60 anos (1771-1830) a população do município cresceu 418 por cento.  No recenseamento geral de 1872, eram ainda tão-somente 7.565 pessoas. Em 1940, quando o turismo ainda não havia descoberto Ubatuba, sua população havia regredido para os níveis do final do século XVIII: ou seja, 3.227 no total. Nessa época, Ubatuba conservava-se, ainda, como uma coletividade de roceiros-pescadores, que plantavam para o gasto. Trinta anos depois, já se processava o implacável movimento de destruição da economia caiçara e da expulsão dos posseiros tradicionais, numa ação consertada pelo grande capital paulista de especuladores e das transnacionais do turismo. juntando-se a isso o controle em massa das epidemias e endemias do litoral, a queda brusca da mortalidade, ocorre um crescimento acelerado da população. Em 1970, o município já contém uma população, de fato, contada em 15.203 habitantes.  A partir de então, a estrutura e posse da terra deixam de ser aquelas típicas de uma economia camponesa, do sistema de queimada e da roça de alimentos, desmanteladas cruelmente pelo capitalismo selvagem.
A especulação desenfreada e o turismo anárquico e desgovernado expulsaram os velhos caiçaras de suas terras e, em seu lugar, implantaram a destruição ecológica,  avidez fundiária e o vazio humano das casas de fim de semana.

sábado, 16 de março de 2013

O ARMAZÉM DO MACIEL



O armazém do Maciel - (Arquivo JRS)


Hoje, ao fazer a trilha para alcançar as praias da Pixirica e do Tapiá, fiz questão de descer pela Rua do Maciel, a antiga estrada que ligava as praias da Enseada e Toninhas, onde o teimoso Argemiro me garantiu: “É certo, por essa luz que ilumina, eu vi, não sei quantas vezes, o lobisomem”. Continua lá o prédio onde funcionou o mais importante armazém de meados de 1900. A inscrição ainda indica Armazém Ilha da Vitória. Infelizmente, aquela figura conversadeira de uns tempos atrás, a Ivete Maciel, faleceu. Mais tempo faz que o seu irmão, o Altino, também se foi. Na última vez que estive por ali, ela estava arrancando uns matinhos do quintal, “se distraindo porque não posso fazer muita coisa que gostaria”. Foi quando me mostrou algumas lindas canoas que o espaço abrigava. O seu filho era quem estava colecionando algumas das nossas maravilhosas embarcações.

Muitos dos velhos caiçaras, dentre eles o meu avô José Armiro, vendiam farinha de mandioca para o “velho Macié” que não era de Ubatuba, mas sim, caraguatatubense. Era ele que também mediava os produtos destinados ao Presídio [da Ilha Anchieta]. Assim me disse um dia o Silvério Sabá: “Trabalhei muito descarregando produtos dos barcos de cabotagem. Eram sacas e sacas, de tudo um pouco. Até peças de fazenda era negociado pelo Macié. Eu ia  morro acima arfando a cada carga”.
Mais uma vez insisto que estamos perdendo muito em não resgatar esses pontos que resistiram ao tempo. Eles fazem parte da nossa história. Podem ser atrativos de um turismo cultural. Se eu fosse um mecenas, desde o jundu até o alto do morro, faria um calçamento especial, de pedras, como seria viável naqueles idos. Após restauração, daria um destaque ao prédio. Nas cercanias instalaria simpáticas pousadas e outros pontos comerciais no mesmo estilo arquitetônico. Proporia ao Newton Cirillo, de onde se avista toda a beleza do mar, a reformulação do espaço dançante: renasceria A Caverna. Um destaque poderia ser o museu com canoas e outras peças de outros tempos caiçaras. A culinária também se adequaria aos pratos e produtos da terra, à sustentabilidade que valoriza a aptidão dos moradores tradicionais. Do mar viriam os mexilhões e peixes, da mata os palmitos e cocos, da costeira todos os seus frutos. A cachaça seria especial, do engenho recuperado da Prainha do canto do Góis. Algumas trariam o sabor complementar de cambucás, bacuparis, araticuns e grumixamas. A melhor de todas contagiaria os “amantes da branquinha" com o cheiro milagroso do guaco. Passeios de canoas e trilhas monitoradas seriam as atrações principais. O pessoal do Paru forneceria as frutas, inclusive as compotas de jaca. Garanto que, ao agir assim, conseguiríamos recuperar um turismo de qualidade, de pessoas capazes de amar e preservar a nossa maravilhosa natureza, de respeitar a cultura que se fez entre a serra e o mar.

quinta-feira, 14 de março de 2013

A SEREIA DO JOAQUIM

Tio Dico, o balseiro do Puruba, indicando o "lugar onde boto vem namorar". (Arquivo JRS)



Num dia desses alguém me perguntou sobre botos, sereias e outros bichos estranhos que, conforme contam, se apaixonam de vez em quando pelos seres humanos. Até o tio Dico do Puruba já comentou de fulano ou sicrano que era filho de boto, tem parte com sereia e outras coisas mais. “Eu não posso afirmar, mas os mais antigos diziam!".
        O finado Mané Bento, parente nosso da praia da Fortaleza que detestava o Artelino Flor, ao ser provocado para dizer se o inimigo era filho de relação semelhante, com tais seres, respondia: “Que nada! Aquele só pode ter sido parido pelo Coisa Ruim!”. Era uma risadaria só.
Só do Joaquim Silvino, homem bravo do Canto da Pegada, é que eu ouvi “à boca de siri” umas histórias estranhas. Murmuravam das madrugadas, ou melhor, das suas saidas na canoa nas altas noites de Lua cheia, quando tomava o rumo da Ponta da Fortaleza e lá ficava horas e horas antes do clarão do dia despontar pela borda da Ilha dos Porcos, no Largo das Caçoas, onde tudo cheirava à arroto de melancia. O finado tio João Batista, numa noite de insônia, contou isto: “O Joaquim, quando sai remando em noite enluarada, assim que quebra a linha da Ponta, toca a canoa até o Saco do Zacarias e apoita bem perto da Pedra da Carmelina. Não demora muito para uma sereia, linda de morrer, se encostar no lajedo. Ali eles proseiam, proseiam, proseiam... Tem gente que jura até pela própria mãe que os dois se enlaçam parecendo uma coisa só. Eu não duvido não!”.
Estou contando a respeito desse assunto só agora porque o homem bravo, capaz de se enamorar por um ser que explicam como metade mulher e metade peixe, já é morto. Em cima do seu chão tão querido agora tem um hotel por nome de Refúgio do Corsário, em cujo folheto de propaganda, dizem, até mencionam o Joaquim como possível descendente do destemido Cavendish, um famoso aventureiro e bandido do mar que se amoitava por ali e deixou as primeiras marcas de pegadas no canto rochoso. “Tá valendo!”, conforme expressão do Fernandes Barreto, ao defender a “propaganda como alma do negócio”. Ah! Também, ao ler no meu tempo de ginásio o livro O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, o que se contava a respeito desse caiçara bravo me veio à mente. Tem lá uma passagem onde o coronel Ponciano se atraca com uma sereia e até propõe que fiquem juntos, morando como marido e mulher. Acho, apesar de tanto tempo, que é mais ou menos isso. Agora me pergunto se o respeitado homem, da cepa dos Silvino (?), não chegou a esse extremo. Quem sabe se a amargura notória em seus últimos dias não teria como motivo umas escamas que atrapalhavam o meio do caminho. Quem sabe?

terça-feira, 12 de março de 2013

O SEGREDO DE JOÃO ALEGRE

Dizia o João Alegre: "Um dia eu trabalhei para os ingleses, na fazenda"



          Não tinha como o mano Mingo deixar de homenagear o "Cantador de Ubatuba", o saudoso João Alegre que adorava cantar tantas coisas da nossa terra, sem nunca esquecer a "Menina da Picinguaba".
          Eu conheci o João por volta de 1972, quando ele acompanhava o Altamiro, também já falecido, nos ensaios de Dança de Quadrilha, na escola do Perequê-mirim.  Estava sempre vestido como achava que se vestia um cantor de música country, um caipira americano. Era assim, ué! Gostou da imagem e a adotou.


O segredo pra fazer música bonita

é sair de casa e andejar

pra ver e ouvir as obras de Deus

e dos homens:

o pescador que retorna da pescaria,

um carinho de namorada,

um sol que se anuncia

no vermelho da alvorada

e mais um monte

de lições de rejuvenescer.

domingo, 10 de março de 2013

IMPERTINÊNCIA?

Canto do Acarau  (Arquivo JRS)


Ao completar quatorze anos eu fui registrado no meu primeiro emprego, no Perequê-mirim. Era um bar e restaurante (Bar Orly), cujo proprietário era um potiguar (Severino) que se engraçou pela caiçara Nilséa pelo período que lhe foi conveniente. Depois tomou outros rumos.
Durante quatro anos, trabalhando mais de dez horas por dia, eu fiz o que pude para atender bem a todos, desde o mais simples, “pingalhada de cada dia”, até os “ desconhecidos bem compostos” que apareciam na temporada. 
Dos frequentadores assíduos, marcaram aqueles anos:  Ricardo “Caninha”, Antonio “Bicudo”, José “Barrigudo”, Odilon “Satanás”, Antonio “Araxá”, Nelson “Pinguinha”, Anísio “Nolasco”, Bartolomeu “Bráz”, Arcelino “Carioca”, Rosa “Louca” e tantos outros. Eram os primeiros migrantes, sobretudo do Nordeste e do Norte de Minas Gerais. Trabalhavam nas obras, nas primeiras mansões de nossas praias.
O Toninho, mineiro de Araxá, aparecia todos os dias, depois das 18:00 horas, vindo do serviço, ainda com manchas de cal pelos braços. Depois de algumas doses, punha-se a elogiar a sua terra distante. Quase sempre só ia embora depois de torrar a paciência de alguém.
Bom mineiro...Cheio de saudade! De vez em quando era até impertinente ao teimar por coisas tão sem importância, com pessoas que nem estavam dispostas a se aventurar em “prosa de umbigo no balcão”. Sem contar que, naquele ambiente, por mais que houvesse a preocupação com a limpeza, sempre imperava um cheiro azedo de fermentação (pinga, cerveja etc.). Assim, num serão, quando já escurecia, ao passar para comprar o seu maço de cigarro (da marca Carlton, se não me falha a memória) de cada dia, o doutor Manuel Casalderrey, um advogado que era vizinho do amigo Nicolau, sem querer caiu na “teia do Toninho”. O tema era a quilometragem da estrada.
Segundo a teoria do Toninho, se a distância daquele lugar até a capital paulista era de 252 quilômetros, ele conseguiria reduzir 10 quilômetros disso. Na hora o doutor ficou interessado no rumo da argumentação do simples pedreiro, especialista na aplicação de massa fina, conforme testemunhava o Edílio Barreto. Ali se reteve por mais alguns minutos, cheio de atenção à prosa.
De acordo com o Toninho, a quilometragem sempre é feita pelo centro da pista. Porém, a estrada (SP 51) é muito sinuosa. Nisto mora o segredo! Ao fazer cada curva bem junto ao mato, o veículo economiza alguns metros. “O doutor vai somando, vai somando, vai somando... Depois de centenas de curvas, ao chegar em São Paulo, é só conferir no cronômetro. Tenho certeza que vai estar marcando 10 quilômetros a menos, ou seja, 241 quilômetros. Duvida disso?”.
O doutor não era bobo para alongar essa conversa. Só restou deixar pago mais uma cerveja para o impertinente mineiro e se despedir discretamente. 

sábado, 9 de março de 2013

AH, A MINHA ILHA!

Você já  brincou de "virar gato podre"?



Assim que iniciei os estudos, na escola da praia do Perequê-mirim, o meu colega de tarefas e brincadeiras era o Vitinho, que morava na margem da estrada, próximo do “Depósito do Xarazinho” [Itajá]. Nossos pais eram muito amigos. De vez em quando lá vinha ele com um lagarto morto nas mãos: “O meu pai esteve caçando e mandou este para vocês”. 
         Também não eram poucas as vezes que o papai, craque na arte da carpintaria, oferecia seus préstimos para ajudar o amigo Vitor Mendes, um funcionário do D.E.R (Departamento de Estrada de Rodagem). 
Na beira do mato que rodeava a minha casa, sentados sobre tocos, fazíamos rapidamente os deveres da escola. As nossas mestras preferidas eram a dona Olga Gil e a professora Valda Virgílio. De repente, fazíamos um intervalo rápido para “virar gato podre” num galho de goiabeira. Que delícia!
Foi do pai do Vitinho que eu escutei muitas histórias a respeito da construção da estrada de rodagem que liga Ubatuba a Caraguatatuba. Também dei sorte porque, quase ao lado da nossa casa, morava a dona Belinha, cujo esposo, já falecido, fora engenheiro na mesma empreitada. Depois de tantas décadas, continua bem vivo em minha memória o quanto a chácara da bondosa mulher era agradável, com suas muitas árvores frutíferas. Foi lá que, pela primeira vez, soube o que era o kiwi. Nunca mais soube de alguém que tivesse essa fruta tão diferente. A mãe do Guto, um lojista da nossa cidade, era funcionária da dona Belinha. Dela, ao rondarmos por ali, sempre ganhávamos umas guloseimas deliciosas.
Voltando ao amigo Vitinho, um companheiro de tantas andanças e artes, ele adorava visitar o tio Dito Coimbra, morador do “Sertãozinho”, cujo acesso está defronte ao caminho das Três Praias, na divisa entre o Perequê e a Enseada. Desse homem solitário, que vivia da venda de seus produtos (banana, agrião, mandioca...), “retirado pelo governo da Ilha dos Porcos, por ocasião da construção do presídio”, eu aprendi muito. Por exemplo:

1- Mais de 3.000 pés de laranjeiras foram plantados pelos presos “nos morros daquele lugar que os meus antigos tinham de tudo para a sobrevivência e sobrando para negociar com os barcos que aportavam sempre”.
2-  Os presidiários, por volta de 1933, trabalharam na conclusão e manutenção da “estrada da serra”, que liga Ubatuba a Taubaté.
3- Na ilha, depois que passou a funcionar o presídio, tinha padaria, olaria, sapataria e escola.
4- “O Macié, dono do armazém na subida do morro da Enseada, era o atravessador da carne e outras mercadorias enviadas pelo governo”.

Muitas outras coisas eu escutei do tio Dito Coimbra que, de espaço em espaço nesse assunto, repetia: “Ah, a minha ilha! Que saudade do tempo de criança naquele lugar!”

sexta-feira, 8 de março de 2013

MULHERES


  
Para todas as mulheres!

        Hoje, para homenagear e discutir o papel da importância da mulher na sociedade atual, fazendo viva-memória de um massacre ocorrido em 1857, em Nova Iorque, quando aproximadamente 130 mulheres, em greve por melhores salários e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho foram trancadas na fábrica e morreram carbonizadas, estou me recordando de quantas vezes eu precisei explicar a respeito de um período histórico denominado de Idade Média, sobretudo da perseguição às mulheres sob acusação de bruxaria.
       Era fácil acusar a mulher por bruxaria. Saber o porquê?  Até mesmo o simples conhecimento milenar, passado por tantas gerações a respeito de remédios caseiros, plantas que curam, fórmulas de um tempo que não tem registro, são exemplos de motivos de sobra para um reles inquisidor de província ganhar destaque. Na verdade, essas mulheres-mártires eram sacerdotisas.
Dentre algumas mulheres caiçaras, que mereceriam o título de sacerdotisas, estou pensando nas tias Aninha e Maria Mesquita, na dona Josefa e na dona Maria Pitiá. O que aconteceria a elas na “Idade das Trevas”? Como se viraria tanta gente que se valeu das suas benzeções e receitas curativas?
Todas foram sacerdotisas do meu povo, mas suas raízes estão longe, nos primórdios, quando as divindades eram femininas. No influência do sagrado poder gerador de novas vidas, a mulher se inspirou para enfrentar as adversidades, mantendo a centelha da vida.
Essa centelha de vida exigiu criatividade e muito empenho. Infelizmente, pela astúcia masculina, desembocamos no modelo de sociedade que aí está, predominantemente machista.
O desafio, então, é de se esforçar para tentar diminuir até terminar de vez com o preconceito e a desvalorização da mulher.
Viva a minha Gal! Viva a minha Má!
        Viva o Dia Internacional da Mulher! 

quarta-feira, 6 de março de 2013

MORAR EM UBATUBA



       Hoje é aniversário do blog: está completando dois anos. Faço questão de apresentar o texto de alguém muito especial, que acompanha as nossas coisas com muito interesse: o amigo Jorge, da terra de outros Jorges, inclusive o Amado e tantas outras pessoas que fazem este país.
       Ubatuba hoje é essa mistura de gente de todas as partes deste Brasil, numa simbiose que vai dando nova feição à cultura local que se refaz entre a serra e o mar.
        Aos leitores... Um forte abraço!

“Valeu a pena ter ido morar em Ubatuba‭?”‬ Essa é uma das‭  ‬perguntas que costumo ouvir quando encontro amigos que deixei em São Paulo.‭  ‬Achavam falta de bom senso deixar um cargo de professor efetivo no município de São Paulo e o‭ ‬cosmopolitismo dessa cidade‭  (‬Ainda mais,‭ ‬possuindo casa própria e tendo pais,‭ ‬irmãos,‭ ‬outros parentes e amigos por perto.‭) ‬para‭ “‬aventurar-se‭”‬ no litoral.

‬Eu sempre lhes falava em mudar-me para uma cidade em que pudesse criar meus filhos com mais liberdade e menos preocupação com violência,‭ ‬mas não sabia onde era esse lugar nem me levavam a sério.‭ 

Em‭ ‬1997,‭ ‬vim com Joana,‭  ‬minha mulher‭ ‬-‭ ‬atendendo‭  ‬a um convite de Rui Grilo‭ ‬– a um curso com duração de uma semana,‭ ‬ministrado aqui na EMEI‭ “‬Maria Alice‭”‬ por um casal de Volta Redonda.‭ ‬Gostamos tanto de Ubatuba que voltamos para São Paulo com a compra do terreno da casa onde moramos hoje já definida.‭ ‬Vendemos a linha telefônica e o carro‭  ‬para fazer parte do pagamento.‭ ‬Em‭ ‬98,‭  ‬começamos a construir e,‭  ‬em janeiro de‭ ‬99,‭ ‬mudamos com a casa só‭  ‬parcialmente terminada.‭ ‬Grande surpresa para meus amigos e parentes.‭ 

O primeiro ano foi um pouco difícil financeiramente porque meu salário ficou reduzido a menos da metade.‭ ‬Lá na capital,‭  ‬eu recebia mais da Prefeitura‭ ‬ do que‭  ‬Estado,‭ ‬mas,‭ ‬vindo para cá,‭ ‬tive de exonerar-me da rede municipal.‭  ‬Além disso,‭ ‬a maior parte da casa ainda precisava receber acabamento.‭  

Também perdemos a comodidade que tínhamos lá,‭ ‬já que a‭ ‬moça que nos auxiliava em casa‭ ‬não nos acompanhou.‭ ‬Passamos a dar aulas em turnos diferentes para cuidarmos dos‭  ‬quatros filhos.‭ ‬O mais velho tinha só oito anos de idade.‭ ‬Some-se a isso o fato de‭  ‬minha sogra,‭ ‬que veio‭  ‬conosco morar na edícula com meu cunhado,‭ ‬ser‭  ‬cadeirante e requerer,‭  ‬em muitos momentos,‭ ‬a presença da Joana.‭  

Os nossos filhos demoraram a aceitar a mudança.‭ ‬O Henrique,‭ ‬que tinha cinco anos na época,‭ ‬vivia nos perguntando quando voltaríamos‭  ‬para o Brasil.‭ ‬Hoje,‭ ‬quando mencionamos isso em sua presença,‭ ‬ele fica meio encabulado,‭ ‬não só‭ ‬por causa do desconhecimento de Geografia,‭ ‬mas sobretudo porque adora Ubatuba.‭ ‬Ivan Lucas,‭ ‬o mais velho,‭ ‬acostumado a passear com as tias,‭ ‬vivia reclamando da inexistência‭  ‬de shopping e Mc Donalds.‭ ‬Ainda não tinham chegado aqui esses ícones do consumismo.‭ ‬O Caio,‭ ‬que,‭ ‬apesar de,‭ ‬nos primeiros meses,‭ ‬sofrer de alergia a picadas de insetos e por isso ficar com o corpo cheio‭  ‬de perebas,‭  ‬foi o primeiro que viu‭  ‬vantagens em morar em Ubatuba.‭ ‬O mar era seu trunfo para argumentar com seu irmão gêmeo:‭  “‬Ah,‭  ‬Henrique,‭ ‬lá só‭  ‬tem uma aguinha‭”‬.‭ ‬Dizia,‭ ‬referindo-se‭  ‬à pequena piscina de plástico‭ ‬que tinham em São Paulo contra a imensa praia do Perequê-Açu.‭ 

O Ivan Lucas logo começou a‭ ‬ir à escola sozinho,‭ ‬de bicicleta.‭ ‬Depois os outros,‭  ‬à‭  ‬medida que iam‭  ‬crescendo,‭  ‬ganhavam autonomia,‭ ‬e essa possibilidade de poderem andar sozinhos na cidade foi fundamental no desenvolvimento deles.‭ ‬Uma vez que não precisavam de ser levados para os cursos,‭ ‬puderam ter aulas de natação na piscina municipal,‭ ‬de capoeira,‭ ‬desenho,‭ ‬dança,‭ ‬teatro,‭ ‬circo,‭ ‬música,‭ ‬na Fundart,‭ ‬inglês na BP English.‭ ‬Se,‭ ‬nessa época,‭ ‬morássemos ainda em São Paulo,‭ ‬eles só poderiam sair para a escola e para as atividades extraescolares acompanhados de um adulto,‭ ‬o que seria inviável.‭ ‬Hoje há três deles‭  ‬morando fora do município por contingências da vida,‭ ‬mas amam Ubatuba.‭ ‬Se não tivessem necessidade,‭ ‬não sairiam daqui.

‬Em‭ ‬2001,‭ ‬assumi o cargo de professor na rede municipal,‭ ‬para o qual eu tinha feito concurso no ano anterior.‭ ‬Fui trabalhar na EM‭ “‬José Belarmino‭”‬,‭ ‬no Puruba.‭ ‬Fiquei lá até‭ ‬2010.‭ ‬Os alunos eram bastante dóceis e amáveis.‭ ‬O grupo de professores e funcionários também era muito acolhedor e amigo.‭ ‬Sentia-me em casa.‭ ‬Ademais,‭ ‬eu‭  ‬ia para o trabalho vendo da janela do ônibus o sol surgir dourando as‭ ‬águas do mar e a folhagem da Mata Atlântica.‭ ‬No retorno,‭ ‬ao meio-dia,‭  ‬meus olhos queriam manter-se voltados para o mar azul,‭ ‬salpicado de ilhotas verdes e ondas brancas,‭ ‬mas a cada curva eram atraídos pelo colorido da Serra do Mar com suas quaresmeiras,‭ ‬seus manacás e numerosas outras plantas que matizam com suas flores o verdor da mata.‭ ‬Era uma viagem.‭ ‬Viagem extasiante.‭ 

O melhor de tudo é que‭  ‬a todas essas coisas positivas que relatei‭  ‬soma-se uma numerosa quantidade de excelentes amigos que temos feito aqui.‭ ‬Por tudo isso,‭ ‬sempre respondo com convicção àquela pergunta de meus amigos da capital.‭  ‬Sim,‭ ‬valeu a pena ter vindo morar em Ubatuba.

‬Jorge Ivam Ferreira

terça-feira, 5 de março de 2013

SUPER PÁSSAROS

Dizem que Zé do Cravo, na década de 1960, foi  trabalhar  na igreja de  Aparecida e nunca mais voltou. 



De vez em quando dá uma saudade das prosas da amiga Fátima. (Faço questão de dizer que ela e o Júlio têm o mesmo tempo de amizade, desde o tempo do ginásio Deolindo). Não tem como negar que a prendada escritora herdou o tino do pai (João de Souza). É por estas e outras pessoas queridas que eu me animo a deixar os meus registros neste blog. Vamos em frente!
Dizem que quando Zé do Cravo nasceu ele não chorou, resmungou.
Zé do Cravo vivia reclamando dos pássaros que destruíam a sua roça. Nada para ele prestava. Como todos daquela época, vivia da pesca e da plantação. Cultivava milho, mandioca e, principalmente, banana que vendia para os barcos de cabotagem de Santos.
Um dia ao chegar no bananal ficou desesperado. Os sanhaços estavam detonando com os cachos de banana que principiavam a amadurecer. Procurou o compadre para se orientar melhor. O compadre na esperança de ajudar, aconselhou a passar visgo de jaca nos cachos. Assim os pássaros ficariam grudados ou repelidos e quem sabe ainda serviriam para uma boa panelada.
Passou algum tempo e Zé do Cravo voltou a se lamentar para o compadre. Preocupado, o compadre perguntou ao triste homem se havia feito o que havia recomendado.
Desiludido, Zé do Cravo respondeu que sim, que havia passado visgo de jaca em todos os cachos de banana, mas que aparecera um bando de jacus tão grandes que arrancou com as bananeiras. Ao passarem voando por cima da casa dele, quando os cachos se desgrudavam dos pés de bananeira foi um verdadeiro bombardeio deixando furos enormes no telhado.

segunda-feira, 4 de março de 2013

AS HISTÓRIAS


 
Olá, Júlio! Feliz aniversário!


         Eu leio regularmente trabalhos científicos, sobretudo de História, onde os historiadores acadêmicos demonstram, via pesquisa, que existem muitas histórias de uma mesma história. Exemplo: 1- A princesa Isabel é a redentora porque libertou os negros; 2- A princesa Isabel não resistiu as pressões sobre a monarquia brasileira; 3- A princesa Isabel era abolicionista; 4- A princesa Isabel foi uma santa. Resumindo: as pessoas têm um leque imenso de possibilidades de aprender a História. Afinal, todas são histórias. 

           A minha preferência é pela memória coletiva ou de história pública; aquela que pertence ao senso comum. São as versões/interpretações populares que tanto me encantam pela capacidade imaginativa!

          Vejamos o caso do saudoso Sebastião, o “Velho Rita”, da região do Acaraú, ao narrar as “obras da ferrovia” em Ubatuba, ao final do período imperial, já na passagem para o republicanismo, enfatizava que “os sacrifícios dos cortadores de pedra no trecho entre a Barra do Acaraú e a Fazenda do Barroso, onde foi feito o cais, teve muito de medonho. Era gente que sofria de dia e de noite porque não estava acostumada com a mosquitada da vargem, com os maruís. Um deles, caipira de Catuçaba, até trouxe a família para cá. Depois que a obra parou, um monte de gente ficou por aqui mesmo, se acostumaram em viver perto do mar. Mas voltando ao Dito, de Catuçaba, o desespero com os mosquitos era tanto que não aguentou e pediu as contas. Foi um dos poucos que voltaram os seus lugares de origem. Dele contava o meu pai: 'O homem se desesperou porque nem podia se encontrar com a mulher à noite. Dizia que era ter a bunda de fora, mesmo que ligeiro, para os malditos bichos acabar com a paz e tirar qualquer prazer’. Então não foi grande o sofrimento desses trabalhadores?”.

          Essa versão de sacrifício eu nunca tinha imaginado. Só mesmo o seo Sebastião! Também creio que um historiador acadêmico nem se interesse por tal atalho histórico. Assim... indo-se os velhos tão acostumados aos momentos de prosas, fica o quê?

         A minha homenagem hoje vai para o Júlio Mendes, o meu amigo desde o início do ginásio na escola Deolindo. Ele é alguém também muito interessado nas coisas do nosso povo, sobretudo daquelas que foram desprezadas pela história oficial. Com as suas pitadas de humor caiçara, tantas coisas “insignificantes” nos encantam em formas de textos, teatros e músicas.

          Feliz aniversário, meu amigo! Muita paz e saúde para você e aqueles que estão ao seu redor! Um abraço!

domingo, 3 de março de 2013

ATÉ TU, TATU?



Barreamento da casa do Zé Rita - Década de 1970.  (Arquivo Mendonça)

Em casa e na escola, logo que me entendi por gente, aprendi as primeiras rimas. 
O meu avô assim combinava palavras e sons que o engrandeciam:

José Armiro
Alves de Lima
Flor das moças
Alecrim das meninas. 

Em outras ocasiões parodiava músicas conhecidas. Exemplo:

O rio de Piracicaba

No meio faz um remanso.
Na perna que tem coceira,
A unha não tem descanso.

  Da mamãe, diante de uma “ofensa silenciosa” em sinal de banana ( um braço dobrado -“L”-  com o punho fechado na parte de dentro do cotovelo), respondia de forma bem declamada:

Banana verde não se dá;
Põe no c... pra madurar.
 
Para outras mais  não faltará ocasiões.

Admiro os poetas porque eles dizem, numa forma especial, em poucas linhas, aquilo que gastamos tanto tempo para dizer, ainda que de forma incompleta. Eles garimpam palavras, lapidam sentimentos de coisas aparentemente tão simples.

Depois de ter publicado o MARIMBONDO-TATU de Júlio, hoje  recebi a recompensa da poesia do Jorge Ivam. 

 Olá, Zé. 

Veja este poeminha inspirado no seu texto:


        Vespeiro



Marimbondo-tatu

Não constrói em ramagem,

Seleciona um tronco

E molda tatuagem.



Seu ninho mimetiza

Tatu subindo em planta

E faz isso tão bem

Que o caçador se espanta:



“Tatu trepando em árvore

Quem que já encontrou?”

      Pergunta duvidando

  Do alvo que ele mirou.



Ingênuo caçador,

Há farsa em toda parte.

Para sobreviver,

Até vespa tem arte.   

            JIF 01/03/13



Um abraço.

                                        Jorge

sábado, 2 de março de 2013

ASPECTOS GEOGRÁFICOS



Balseiro: profissional da travessia dos rios Puruba e Quiririm. (Arquivo JRS)

Em 1994, a professora Ophélia Alves Figueira de Camargo lançou o livro Ubatuba ou”Ubachuva” -Uma questão de geografia, com o objetivo de apresentar este município em seus aspectos geográficos, de localização etc., mas também não omitiu as suas apreciações a respeito desse lugar. Hoje eu escolhi uma parte da introdução só para quem não conhece a obra ter uma ideia do conteúdo.


O espaço natural e o espaço cultural de Ubatuba.


O Município se constitui, de certa forma,num grande retângulo irregular que mede cerca de 80 Km de comprimento situado com a fachada oriental voltada para o Oceano Atlântico e tendo uma faixa de planície entre o litoral e a serra que varia de 8 a 16 Km de largura.
O Município de Ubatuba faz parte do chamado “Litoral Norte do Estado de São Paulo”. Esta zona compreende toda a orla marítima que se estende de Santos para o nordeste, indo até a Serra do Corisco que vai terminar na Ponta da Trindade, já fazendo limites com o Estado do Rio de Janeiro.
Seu aspecto é bem diferente do Litoral Sul que vai de Santos em direção sul até a Barra do Ararapira, divisa de São Paulo com o Estado do Paraná. Este trecho tem praias extensissímas, bem distantes dos contrafortes da Serra do Mar, formando planícies atravessadas por longos e preguiçosos rios que vão formando meandros, alagadiços e mangues.
O Litoral Norte, por sua vez, é recortadíssimo numa sucessão contínua de baías, angras, sacos e enseadas resultando  numa infinidade de praias pequenas e médias quase sempre próximas da Serra do Mar, Suas planícies são estreitas, cortadas por rios e riachos de pequeno curso não formando aqueles banhados e alagadiços do Litoral Sul.
Do ponto de vista do relevo, Ubatuba participa das planícies costeiras do Brasil com seus 92 Km de litoral. Talvez nenhum município brasileiro ofereça tantas praias aos que buscam o merecido lazer.
Em Ubatuba temos praias que atendem a todos os gostos: praias mansas, de “tombo”, pequenas e graciosas, extensas, frequentadas ou desertas etc.
Do ponto de vista climático ocupa uma posição intermediária ou de transição entre o clima tropical e o subtropical uma vez que o município é cortado pelo Trópico de Capricórnio. Numerosas cascatas e cachoeiras amenizam o calor do sol depois da praia, as tardes amenas e noites tranquilas sob a aragem do terral tornam este espaço o lugar ideal para os esportes náuticos, os passeios a pé e o repouso.

sexta-feira, 1 de março de 2013

PROA DA CANOA



Canoa de luta - década de 1970 (Arquivo  Mendonça)

O tema é inspirado numa poesia do Júlio e no seguinte fragmento de música do Luiz Perequê:

Meu amor eu vou sair
Num vento de travessia
Na proa dessa canoa
Sem rumo, remo
Nem quilha.
 
Lembrança revira tempo
Saudade, refúgio, ilha
Porto seguro é seus braços
Naufrágio da maravilha
Ô canoeeeiro, ô canoa.


A aceitação de sermos a “terra de muitas canoas” se deve a uma verdade que persiste, mesmo que em menor intensidade: as embarcações, as simples canoas, são muitas e continuam lindas! 
Nos momentos de reminiscências, é difícil eu deixar de enxergar canoas desde as Galhetas até o Camburi nas suas muitas serventias (transporte, pescaria, lazer).
Elas estão no Canto das Galhetas, onde a monazítica predomina rodeando os ranchos das embarcações e dos apetrechos de pescaria, sombreados por abricoeiros, pés de aroeira e de amendoeiras, rente à boca-da-barra do Tabatinga, onde os Barrasseca, Oliveira e mais dois ou três são as raízes da “gente do sul”, conforme repetia a dona Josefa, mãe do João de Souza.
Na praia Mansa, com a “areia grossa”emperrando o sobe-e-desce das poucas canoas dali, me vejo conversando com João Araújo, Aristeu Quintino e o povo do lugar que é um paraíso. Quase todos eram parentes do velho Ambrósio, um caiçara bom de prosa:                                "A Mansa, bem ali, é praia funda. No meu tempo de criança, cação bravo chegava no perau, no Canto do Corondó, em frente de onde mora a Filhinha. Era por isso que pouca gente tinha coragem de fundear o corpo naquele lugar. O meu tio-avô perdeu o movimento numa das pernas depois de uma bocada de anequim, quando desembarcava de uma viagem de mandioca da ilha do Tamanduá”.
E a lógica decorrente do medo e da necessidade de sobrevivência: “É por isso que ninguém pode viver sem uma canoa. Agora mesmo, o Oliveira Quintino está no mato escavando uma timbuíba  que vai dar quatro palmos de boca”.

Ah! Quanto eu aprendi desse povo canoeiro!