sábado, 12 de abril de 2025

ÁRVORES E PESCADORES

Aroeira cortada- Arquivo internet


 A aroeira do Alfredo Vieira e do papai”.

Assim dona Clície me falou.

Edson do Antônio   Atanázio depois confirmou:

“Era jundu tudo aquilo; um deles a  plantou”.

 

Ali era o caminho deles.

“Nunca é demais uma sombra!”.

“E, de ver passarinho, quem nunca gostou?”

Pois é, obedecendo ordem alguém a cortou.

 

Sob pretexto de doença?

Desculpa de urbanismo?

Um poder econômico o corte solicitou?

Foi a propaganda quem ganhou?

 

A aroeira dos frutos, dos banhos nas redes...

“Quem vê o anúncio com ela ali?”.

A aroeira do velho Vieira e do Fifo (João Serpa) alguém cortou:

Outra etapa da “boiada” que passou.

 

“Nem só de reacionários vive a cidade”.

Do alto da serra não se enxerga,

Mas bons frutos aqui vingou:

Minha gente uma muda nova plantou.

 

Ações irracionais...volta da barbárie...

“A aroeira do Alfredo Vieira e do papai”...

“Estão plantando outra”, alguém comentou.

“Acertem as canoas porque a maré mudou”.

 

 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

PEIXES COM SEDE

    

Amanhecer - Arquivo Clóvis 

     Estávamos na escola. Descobri um espaço totalmente fechado, cheio de livros, como se quisessem esconder de todos, sepultá-los para sempre tal como eu fiz com a velha carcaça de um aparelho antigo. Desconfiei da diretora reacionária. Teríamos apenas duas aulas, depois seríamos dispensados. Alunos na aula de educação física brincavam de pular corda. Defronte a uma sala do corredor vi serragem formando imagens tal como a procissão de Corpus Christi. Admirei a iniciativa da turma daquela classe. Interessante que os passantes não destruíam a obra; a cena tava perfeita no piso do corredor.

  Num outro momento, eu e mais pessoas estávamos num canto de praia. Mingo falou: “Lá vem Desireé, se transferiu pelo Banco do Brasil, veio de São Bento.” Ela passou por nós, apenas cumprimentou e se foi empurrando a bicicleta. Marli estava ao meu lado, não disse nada, mas procurava se segurar em mim. Elogiei o carro que ela tinha. Parece que se arrependeu de vendê-lo. Vera diz que não gostava mais da costeira da Enseada porque lhe mudaram o nome antigo. (Eu nem sabia que tinha outro nome aquela costeira. Porém, a Vera nasceu lá, né?!). Era o entardecer, a noite vinha chegando. Mingo falou de uma sorveteria ali perto. “Eu pago.” Marli estava quieta, era muito religiosa, uma beata, disse que iria na igreja se confessar porque teve um desejo, cometeu um pecado. Eu, junto dela, apenas falei que era bobagem, não tinha nada demais. “Você não prejudicou ninguém,  menina. Deixa disso.” A sorveteria era num precário rancho, mas os produtos pareciam maravilhosos. Pedimos os sorvetes. Mais gente chegou, mas a atendente continuava dando toda atenção ao nosso grupo. Pensei algum tempo depois: “É assim mesmo a nossa vida. Tem uma fase que poucas coisas nos preocupam porque somos jovens, andamos com poucos compromissos, sem pensar muito além de cada momento que vamos vivendo. O que importa são as amizades, tudo de bom que vivemos juntos”. Assim era a nossa vida, sem nenhum aparelho que tomasse o nosso tempo, nos deixasse isolado dos outros. Mais importante era a convivência, a alegria de estar em grupo. Queríamos viver; éramos peixes com sede.

 

segunda-feira, 7 de abril de 2025

ADEUS, CAMILA

    

Uma rosa foi cortada - Arquivo JRS 

   Eu me detenho e tiro minhas conclusões após ler determinados comentários, sobretudo femininos, no dia da morte horrível da minha estimada Camila, colega de profissão que tão arduamente conseguiu se formar e trabalhar junto comigo, no bairro das nossas habitações, onde ela nasceu.

    Algumas mulheres são favoráveis aos projetos da extrema direita, estão defendendo projetos de uma sociedade patriarcal pronta para violentar, matar as mulheres e outras minorias sociais tão fragilizadas.  

     Essas mulheres também querem o fim da lei Maria da Penha, admitem que ter uma filha é uma “fraquejada”, estão de acordo que homossexuais devem ser perseguidos, que os povos indígenas não merecem terras, que os dependentes químicos precisam ser castrados, mortos etc. 

   São essas mulheres que concordam que os negros são inferiores e sempre suspeitos em qualquer lugar.  

    Essas mulheres, algumas mães desde já, torcem pelo fim dos direitos trabalhistas conquistados pelos trabalhadores organizados em sindicatos ao longo de séculos. 

     É isto mesmo que estou entendendo mediante alguns comentários de mulheres que parecem não se importar com mais uma companheira barbaramente morta, querendo passar pano para a extrema direita, votando em gente que tem esses pontos programáticos e são contra os Direitos Humanos? Mulheres com essa mentalidade direcionarão crianças em qual direção, a qual modelo de sociedade?

   Se sou o que sou, devo muito às mulheres que fizeram parte da minha vida, que estão ao meu lado sempre (a minha irmã, a minha filha e a minha esposa querida). Camila fez parte da minha existência, labutamos juntos em salas de aulas, planejamos atividades, discutimos problemas da escola etc. Meus sentimentos aos familiares dela. Forte abraço. Basta de violência!

domingo, 6 de abril de 2025

A CASA

 

Uma casa na cidade - Arquivo JRS 

   Me detive na praça 13 de maio com imagens de Ubatuba de outro tempo. A primeira delas foi quando o estimado professor Osmildo, que  aguardava no final da linha dos ônibus, nos levou até o seu apartamento, no edifício Andorinhas. Era meados da década de 1970. Lá conhecemos sua reduzida família, tomamos café. Depois ele nos conduziu ao ginásio “Deolindo” e fez nossas matrículas para a quinta série. Éramos dez crianças; morávamos, a maioria, no Perequê-mirim. Nos deslocamos apreensivos os dez quilômetros que distava a nossa escola primária do centro da cidade. Fomos em ônibus circular, sem a companhia de nenhum adulto.  O professor nos matriculou naquela enorme escola, fez a vez dos nossos pais. Ele sabia que só assim era certeza que continuaríamos os estudos.

   A segunda imagem era da casa da Maricarmen. Simples, bonita, com uma oficina onde seu pai exercia o ofício de serralheiro. Seo Zé Marroquino (Guadix) foi o primeiro profissional que eu conheci nesse ramo. Eu achava lindo os portões aparecendo depois de ferros serrados e soldados. Creio que o mais importante trabalho dele foram os lustres que fez para a igreja matriz, sob encomenda pelo frei Angélico, em 1982. Também deste ano é o altar em formato de barco, obra do mestre Jacó Meira.

   Numa noite dessa eu sonhei com aquela casa, só que parte dela estava em ruínas, contrastando com as do entorno da atualidade. Até pensei que ninguém morava ali devido ao estado precário da fachada, mas logo avistei a mãe da minha colega de ginásio. Vi que só ela habitava a casa. Parei para prestar atenção e notei que a oficina ainda existia na lateral. Foi quando eu avistei duas pessoas, guerreiros portando espadas, querendo invadir o espaço. O que fiz? Me coloquei do lado de dentro, no espaço da oficina, e passei a defender o local. Depois que acordei me pus a pensar: Por onde andam a filhas daquele casal tão tranquilo que nos viam sempre circulando por ali, brincando na praça (toda plana naquele tempo!) enquanto esperávamos ônibus? Por que eu defendi a casa dos ataques? Qual a mensagem do sonho?

   Casas antigas e casas velhas, abandonadas, chamam a minha atenção sempre. Diante da casa da imagem postada acima, na cidade de Guaratinguetá,  notei as janelas fechadas por blocos. Imaginei ali moças debruçadas, olhando a movimentação no entorno. Do lado oposto havia um pintor a retratá-las sob o   título:  As moças na janela. Talvez ali morasse umas das Cinco moças de Guaratinguetá,  obra de Di Cavalcanti pintada em 1930.

sábado, 5 de abril de 2025

PIRÃO DAS LETRAS

 

Imagem piraodasletras

     Eu acredito que é o pensamento que caracteriza  a alma. É conhecendo que a alma se forma, cuida de si, se alimenta. Logo, devemos estar numa eterna busca do conhecimento. E onde buscamos o conhecimento?

     Sem dúvida alguma que a arte é o veio principal de fruição do conhecimento. Arte é cada utensílio que a humanidade criou, cada maneira de expressar nossos sentimentos, cada forma de aproveitar os recursos que permeiam a nossa existência... Arte é a forma de arranjar as palavras querendo criar outros mundos, mostrar que eles são possíveis, tal como quem cozinha ao juntar ingredientes diversos numa panela para depois resultar num alimento que nos sustenta. Creio que o Pirão das Letras tem esta finalidade dentre outras: sustentar nossas almas.

     Pirão, prato tão típico da cultura caiçara, é uma composição de peixe, água, ervas, banana verde e farinha de mandioca, podendo incrementar com mais coisas. Também tem pirão de caças, de aves etc. Pirão, desde os primórdios, era a base alimentar do povo que subia e descia morros com cargas do roçado, que remava e puxava rede no lagamar; que labutava nos afazeres domésticos e festejava em qualquer oportunidade, que dançava gritando alegremente “Amanheeeeeeeece!”. Pirão sempre foi a "sustânça" do meu povo!

    Então... estou feliz por captar a intenção do Pirão das Letras como um veio artístico de resgate, de preservação e de oportunização de outros olhares sobre nossas heranças culturais (referências sobre quem somos e o mundo que queremos, ou seja, a nossa alma que se faz pelo conhecimento que herdamos, construimos e repassamos).

    É isto: Pirão da Letras é uma iniciativa louvável de celebração da literatura, da arte literária, sobretudo daquela produzida em Ubatuba, da celebração da alma da cidade! O primeiro evento deve acontecer entre 12 e 14 de junho, na praça Anchieta (defronte ao Casarão, na boca da barra do rio Grande). Venha se informar e participar!

terça-feira, 25 de março de 2025

VEIO DO RIACHO

     

 

Veio do riacho - Arquivo JRS 

   Eu aniversariei dias desses. Minha filha me trouxe um vinho de amora, presente do estimado Maciel. Junto à mesa com as minhas queridas Gal  e Má eu experimentei. "Noooossa! Que coisa boa!". Eu nem imaginava existir um vinho de amora, pois sempre tomei o tradicional, feito de uva. 

     Li o rótulo: VEIO DO RIACHO. Pensei num veio, como se fosse uma artéria levando um precioso líquido do qual ninguém consegue viver se não tiver mais: a água.  Perguntei à Maria: "Por que tem esse nome?".  Prontamente ela explicou: "Porque o Maciel deixa ele engarrafado dentro do riacho, na propriedade dele, o Vale do Paty, lá no no alto da serra. Na água fria ele vai se apurando". Valeu, querida filha!

              Que delícia! Quer experimentar? Todas as quartas-feiras o Maciel está vendendo seus produtos na Feira Agroecológica, na "Fazendinha", no final da rua Orlando Carneiro, em Ubatuba. Passa lá!  

      Valeu, Maciel!

domingo, 16 de março de 2025

CIDADANIA SE APRENDE


 

Céu de todos - Arquivo JRS 

    Todos os lugares e todos os momentos servem como aprendizagem. Se queremos cultivar a cidadania, devemos prestar atenção a isso. Tempos atrás alertei para um detalhe comum em quase todas as cidades: os nomes, as denominações de logradouros que prestam homenagens injustas, criminosas. Não é diferente em Ubatuba.

     Lendo o livro O trato dos viventes, de Luiz Felipe de Alencastro, me detive num detalhe do século XVII, quando o reino de Portugal estava precisando de metais preciosos. Um pouco de ouro já estava sendo encontrado na região de Paranaguá e no interior paulista, mas a imensidão das terras do Brasil alimentavam as cobiçosas esperanças de grandes riquezas, justificando o trabalho de africanos escravizados e do vergonhoso tráfico negreiro.

 

   Como ampliar a mineração na colônia americana, no Brasil? Os conselheiros do rei dão como um fato consumado a “grande quantidade de índios que hoje estão destruídos”. Para esses conselheiros não existia reserva de mão de obra indígena para as minas que planejava “entabular” nas latitudes brasileiras próximas de Potosí. Na circunstância, o Conselho entendia que só o trato de escravos de Angola podia “conservar” o Brasil. Dos quatro conselheiros que assinavam o relatório, três tinham vínculos diretos com o negócio negreiro. Um deles granjeava grande destaque na Corte e na política ultramarina: Salvador de Sá e Benevides, membro da oligarquia fluminense, restaurador e ex-governador de Angola, mentor das expedições lançadas no além-Mantiqueira atrás de prata, ouro e esmeraldas.

 

      Esse Sá e Benevides, traficante de escravos que, a custo de muitas vidas tombadas reconquistou Angola, São Tomé e Príncipe ao reino de Portugal, nomeia a rua paralela à avenida Yperoig, no coração da nossa cidade de Ubatuba. Um de seus parentes tinha a fazenda para comércio de escravos na praia da Tabatinga, na estrada das Galhetas. Tal como os bandeirantes destruidores de comunidades indígenas largamente homenageados por aí afora, será que não passa da hora de rever tais honrarias? O apelo é pela cidadania ativa através dos espaços do nosso território.

terça-feira, 4 de março de 2025

IMPORTÂNCIA DA ESCOLA

     

Alicerce  -  Arquivo JRS 

  "Agora, depois do carnaval, começa o ano letivo de verdade". Esta frase é comum ouvir entre alunos e professores.  Só que não, né? As coisas não param, as estratégias para manter tudo sobre controle de quem domina a sociedade se atualizam sem respeitar essas festas, nem dias santos e feriados. Ou seja, permanentemente estamos submetidos a um aprendizado, ouvindo e vendo lições que alteram nossas vivências. Porém, é a escola que parece carregar maior responsabilidade na formação para a cidadania na nossa sociedade. Mesmo estando consciente que todo espaço é lugar de aprendizagem, os docentes e gestores redobram suas atenções no espaço escolar, no ano letivo, nas horas em que crianças e adolescentes estão dentro dos limites da escola, no prédio. 

     Me deparando com uns absurdos no entorno, na nossa cidade e na sociedade brasileira, proponho algumas questões que não são novas, mas não custa nada relembrar:

     Os estudantes estão sendo  educados numa visão mais humanitária, solidária, colaborativa, comunitária etc.? Estão crescendo na consciência de suas responsabilidades individuais e sociais? Almejam uma vida saudável, sustentável, ética e prazerosa? As escolas têm uma proposta didática integradora, que vai ao encontro das comunidades? As gestões escolares estão atentas a proporcionarem uma orientação para uma sociedade solidária, democrática e justa? A clientela escolar vai se direcionando para uma formação profissional digna e com boas práticas sociais? Na vida adulta será capaz de questionar e reorientar as atenções dos setores produtivos para os interesses coletivos?

     Creio que novas políticas e novas mentalidades políticas nascerão dessas e outras questões prementes há muito tempo no processo formativo da vida escolar, mas... sem dúvida alguma, o nosso meio social é o maior influenciador da cidadania.  Posturas reacionárias não condizem com cidadania libertadora. Não é só a escola que tem  de cuidar dos alicerces da nossa casa e da nossa sociedade!

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

OPÇÃO PELA CIDADANIA

 

Burro na pista - Arquivo JRS 

   Uma boa gestão política sempre pode melhorar! Creio que uma pessoa que opta pelo engajamento político deve saber que política é a arte de cuidar da cidade.

    Quais são os passos para fomentar práticas participativas, colaborativas e corresponsáveis pelo ambiente do lugar onde moro, da minha cidade, do meu país e do planeta? Acredito que um mundo melhor começa com a atenção que dou ao meio ambiente? Onde moro tem praças, áreas verdes? Tem espaços de recreação e lazer? Os rios têm matas ciliares? Como é tratada a produção de lixo? Tudo o que é material orgânico vai para compostagem? A nossa agricultura está piorando ou recuperando a saúde do solo? As atrações turísticas estão sendo conservadas, têm estruturas de atendimento aos visitantes, beneficiam as comunidades do entorno, mobilizam outros recursos e atividades econômicas? Os ecossistemas diversos estão garantidos para os dias atuais e para o futuro? As festas populares estão preservadas, são incentivadas? Os espaços comunitários são garantidos e usados permanentemente? Os eventos festivos engrandecem a alma do nosso lugar?

    Tudo isso (realizações e atenções voltadas à cidadania) começam no lar, na comunidade próxima, e se fortalece na escola.

     Como envolver as práticas escolares no exercício da cidadania, no compromisso político e realização individual e coletiva? O exercício da cidadania democrática está no rumo da normatização? Como estimular o protagonismo civilizatório em nosso meio, no nosso lugar de existência? Como valorizar/resgatar os conhecimentos antigos? Qual a situação museológica do município? Nas denominações de ruas e demais logradouros não estamos prestando homenagens injustas, criminosas? (Consideremos que todos os espaços são espaços de aprendizagem, contribuem no processo de formação da cidadania).

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

CARAPIRÁ

      

Carapirá - Arquivo internet

 Quando criança, deitado na areia da praia, eu adorava olhar carapirás voando, indo e vindo, circulando na imensidão do céu. Não conhece? Também era chamado de tesoureiro esse pássaro que vive nas costas brasileira se alimentando de peixes, caranguejos e mais coisas que o mar oferece. Mais tarde me disseram que carapirá também era fragata. Deve ter outros muitos nomes esse lindo ser alado. Vovô Armiro dizia que eles faziam ninhos nas pedras da costeira da ilha do Mar Virado.

     Carapirá voa bonito, parece estar sempre à espreita de alimentos. Acho que, além de se preocupar com a sobrevivência, esse pássaro marcante da minha infância se deliciava com as belezas vistas do alto. Na verdade, sempre pensei que todos os passarinhos têm este privilégio. Na escola, já no Ensino Médio, o amigo Gulu apelidou o Ditinho, namorador inveterado, de carapirá. O apelido pegou no nosso colega de escola que vivia sempre bem arrumado, com pinta de galã. Logo muita gente o chamava apenas por Carapirá.

    Tempos desses avistei o Ditinho Carapirá. Como foi bom rever esse amigo! “Tenho quatro filhos, todos grandes. Só um é adolescente. Agora tô mais tranquilo, não preciso trabalhar demais. Desde o ano passado estou aposentado. É pouco, mas com uns bicos que sempre tem a gente vai vivendo. E você? Tem visto aquele pessoal nosso? Quem sempre eu vejo é o Gildásio, do Araca”. E a nossa prosa foi longe, mais de hora se recordando da nossa turma, dos momentos bons que vivemos na Ubatuba de outros tempos. “E por falar em Araca, você se lembra do Rancho do Araca? Era na praia da Enseada, o meu pai trabalhou na construção. Naquele tempo a Enseada, juntamente com Lázaro e Perequê-açu, era sucesso, abarrotada na temporada de férias de começo de ano, o paraíso dos sorveteiros.”

   Imagine se um sujeito, tipo carapirá espreitador, não conhecia o Rancho do Araca! “Eu conhecia, fui lá algumas vezes. Era bom sim, com muita gente bonita. Só que eu sempre morei no centro da cidade, então era complicado o deslocamento naquele tempo, horários de ônibus eram poucos e a gente nem sonhava em ter um carro. Por isso eu só circulava nessa área entre o Itaguá e Perequê-açu na minha bicicleta. Naquele tempo ninguém falava em Praia Grande, né? O mar era bravo, diferente de hoje. Só os poucos surfistas daquele tempo se aventuravam por lá.”

   Que volta nós demos naquela tarde de prosa! Mesmo animado, o meu amigo não perdia detalhes do movimento no entorno, das pessoas passando pela avenida e até comentava detalhes impensáveis. Resumindo: o Carapirá continua em forma.

 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

TRONCO DE CANOA

 

Arte do Gildásio Jardim (no instagram)

      Conforme quadro acima e resenha abaixo, dois artistas (Jorge e Gildásio) apresentam aspectos da nossa cultura, dos povos das praias. Gratidão a ambos por estarem atentos às riquezas que brotam em tanta gente. Parabéns ao Adilson Zambaldi por esse talento! 

   Estou te mandando a resenha que fiz de  Tronco de Canoa, de Adilson Zambaldi. Hoje ele e eu estávamos conversando quando lhe perguntei se ele conhecia seu blog. Ele não conhecia, mas ficou interessado e disse que adoraria que minha resenha  fosse publicado nele. Então peço a você que considere a pertinência de publicá-la ou não. Um forte abraço


À guisa de resenha do livro Tronco de Canoa

    Adilson Zambaldi percorreu as praias de Ubatuba uma a uma. Dessa empreitada poderia resultar um dossiê ambiental, um guia para turistas ou outro registro de caráter utilitário, porém de tal peregrinação, o que surgiu foi um livro delicioso e muito original intitulado Tronco de Canoa. Tão original que deixa o leitor sem parâmetros para classificá-lo num determinado gênero discursivo. A gente tem a mania de querer colocar a obra de um artista em um determinado quadrado e fica perplexo quando depara com uma criação que foge aos moldes comuns de classificação. 

    Minha reação diante desse livro de Zambaldi foi de estranheza. Abri-o pensando que ia encontrar nele textos em versos.  Folheei-o e me veio a ideia imediata de que se tratava de minicontos, porém a não ser um ou outro texto como Praia da Taquara, que considero um miniconto trágico, a maioria não pertence a esse gênero textual. Na ânsia de classificar, acabei observando que, nesse livro, podemos encontrar também, em sentido lato, poemas em prosa, comentários, relatos, conselhos, dicas.  

    O gênero textual de uma obra literária, no entanto, é de interesse meramente didático sobretudo para a academia, que só há poucas décadas descobriu a teoria de Bakhtin. Para o leitor, o que importa é a fruição que a leitura proporciona, e nesse quesito, Tronco de Canoa é plenamente satisfatório. Para provar que o leitor emerge das páginas dessa obra recompensado, pincei dela algumas frases altamente expressivas, seja pela beleza estilística, seja pelo humor:

“Surfar não me levou a lugar nenhum.” (Praia Brava do Camburi)

“Sessenta quilos de agressividade amordaçados.” (Praia da Picinguaba)

“Crustáceos atracados em calcanhares desatentos." (Praia do Engenho)

“A gente é do tipo que agoniza junto.” (Praia do Estaleiro do Padre) 

“Dos convidados mais ilustres, um naufragado de smoking caminha sem jeito pela areia.” (Praia do Ubatumirim). 

“Conchas são escudos rompidos, escorando calcanhares.” (Praia das Conchas)

“De porto em porto, de colo em colo, a passividade se faz em rugas.”  (Praia da Fortaleza) 

    Além de fruir a linguagem artisticamente elaborada, o leitor, com certeza, sentirá prazer preenchendo com sua inteligência lacunas deixadas de propósito em certos diálogos concisos que compõem essa coletânea.  

    O leitor ubatubense, em especial, terá sua memória estimulada ao deparar com alusões a acontecimentos que se deram em nosso município como, por exemplo, a morte de um surfista de Guarujá na praia da Sununga, ou a dificuldade da prefeitura para se livrar da baleia morta, cujo odor afugentou, por semanas, os frequentadores da Praia Grande. 

    Eu poderia destacar ainda muitos outros aspectos interessantes desse livro, mas, para não me alongar mais, vou citar apenas a crítica velada à presença de turistas na nossa cidade, embutida no trocadilho “Paz de Iperoig acaba com a chegada do verão.” (Praia do Cruzeiro) e a reflexão antitética que alude ao presídio da Ilha Anchieta: “Viver trancafiado num lugar paradisíaco também pode ser uma experiência infernal.”   (Praia do Perequê-mirim). 

    Comecei a leitura desse livro estranhando-o e, mesmo conhecendo a tese de Chklovsky de que o efeito de estranhamento é uma das características da arte, duvidei da qualidade dessa obra.  Ao a chegar à última página, porém, concluí que minha dúvida era infundada.  Comecei estranhando-a e terminei entranhando-a, como no slogan criado para a Coca-Cola por Fernando Pessoa. Com isso, quero dizer que a leitura de Tronco de Canoa é tão prazerosa quanto um dia de sol numa praia. 


Jorge Ivam Ferreira   21/12/2024

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

FRAJOLA NA CAVERNA

 

Jonas na barriga da baleia - Mosaico em Aparecida 

    Dito cortava pedras, meu pai era carpinteiro. Eram caiçaras e amigos de profissão, de bar, de pescaria e de diversão. Em casa de ambos a prole era grande, impensável nos dias de hoje. “Frajola”, o caçula do Dito, foi quem mais conviveu comigo. Ele deveria saber que nossos pais eram, da maneira deles, resistentes à ditadura militar. Prova disso eram  as poucas reuniões de bairro para discutir os problemas que precisavam ser às escondidas em meados da década de 1970. Eles se faziam presentes. 

    “Frajola” começou a frequentar grupo de jovens da igreja católica, mas logo desistiu. De repente, com a chegada de uma igreja missionária, criada por um pastor português vindo de Angola, onde a revolução proclamou a independência daquele país, o meu amigo de anos virou “evangélico”. Veio com papos estranhos, defendendo os militares que detinham o poder no nosso país, que essa era a vontade de Deus, que deveríamos nos conformar e fazer de tudo para merecer o céu etc. Será que era essa a mensagem do líder evadido? Foi o  que bastou para eu me afastar, não querer essa influência. O pastor enriqueceu em poucos anos, trocou de esposa.

      Meu pai e o estimado Dito são falecidos. Não sei se o pastor ainda está por este mundo. Dias desses avistei o “Frajola” na rodoviária. Aparentemente está bem, mas não enriqueceu. Se aproximou de mim, deu um sorriso sem graça e disse uns agrados vazios. Eu apenas respondi: “Seguimos na luta”. Ele me perguntou: “E a política?”. Aí eu expliquei que tudo é política, inclusive a decisão de colocar lixeiras nas vias públicas, limpar o mato das calçadas da cidade, cuidar da  saúde, da educação, do esgoto, da água etc. Ele pretendeu  entrar no assunto sobre ditadura, defendendo os terroristas que assaltaram Brasília e depredaram tudo. Na hora cortei o rumo do falso patriota com apenas uma frase: “Pode parar. Vai estudar e aprender a fazer reflexões sérias. Tenha como exemplo mínimo os nossos antigos que, mesmo sem estudo e com poucas reflexões, não se perderam demais no mar da vida, nem apoiaram ditadores”. Ele se afastou porque não lhe dei mais atenção. Depois refleti: desde aquele tempo, na nossa juventude, ele  está recebendo só mensagens reacionárias (da igreja, da imprensa e das redes sociais da atualidade). Como poderia ser diferente o seu pensamento? Vai morrer reacionário mesmo! Vai achar normal todas as coisas erradas visíveis na nossa cidade, na realidade brasileira. O coitado vai ficar na caverna e matar quem lhe disser que há outras possibilidades de vida além dessa destruição abrangente patrocinada por milionários e seus aliados miseráveis (incluindo gente do nosso povo que agora vive nos fundões, pelas grimpas dos morros etc.). Termino esta com uma frase de Malcom X: “Se você não for cuidadoso, a imprensa fará você odiar os oprimidos e amar os opressores”. Pois é, né? Só que, atualmente, a maioria das igrejas parece ser a principal força nessa direção. Triste demais.


domingo, 19 de janeiro de 2025

CHEIROS E SAUDADES

   

Arte do Gildásio Jardim - (instagram gildasiojardim)

  Me acomodo no banco da praça. O cheiro mais próximo vem de uma roseira que tem a aparência de ser bem antiga a julgar pela grossura do tronco. Me detenho no perfume discreto entre o verde vicejante, todo preservado por alguém sensível que a sabe da nossa necessidade de espaços assim, sobretudo nos centros urbanos, entre o corre-corre inevitável.

   O perfume vindo da roseira me desperta para outros cheiros, faz lembrar do livro O perfume, escrito há décadas por Patrick Süskind. Pronto! Outros cheiros e outros tempos vão se fazendo presentes! O suor de quem não vê a hora de chegar em algum lugar para se banhar, o cachorro companheiro que não se importa em deitar e rolar no odor do capim melado onde provavelmente caça lebres, a criança lambuzada e deixando pelo caminho o adocicado de seu pirulito, a  adolescente se dirigindo à escola transpirando um perfume de boutique, dessas marcas que custam mais, o senhor e a senhora bem vestidos com suas roupas simples e sapatos bem cuidados, talvez indo à igreja, deixando um rastro de perfume que me faz recordar do jasmineiro no terreiro da vovó Eugênia, um trabalhador, meu companheiro de obra, usando um desodorante barato, que assustava a gente ao reagir com o suor, o vô Estevan trazendo da praia o cheiro da maresia etc. São cheiros diversos, sinais da nossa natureza, da nossa humanidade.

   Essa diversidade de cheiros sempre acaba me remetendo à saudosa Odócia, caiçara da Ponta Aguda que tinha um olfato apurado, sentia de longe os cheiros e suas origens. Numa ocasião, retornando de mariscar com ela eu notei que, além de prestar atenção, se detinha nos cheiros e pedia a minha atenção a eles: “Tais sentindo, Zé? Vem de lá de cima, do tarumã florido”. “Este outro é de ciosa, daquele charquinho logo ali”. “Lá atrás, aquele cheiro enjoativo, era de guanxuma molhada”. Assim eu era educado por ela em diversos cheiros, nos perfumes que estavam pelos caminhos do chão caiçara. De repente um cheiro diferente e o comentário dela: “Ah! Este é da comadre Dirce! Ela, no mês passado, foi comprar um corte de fazenda na cidade e aproveitou para adquirir um perfume bacana. É este mesmo! A danada passou por aqui não faz muito tempo. Não é bom mesmo?! Quase que dá para comparar ele com o cheiro bom de limão-do-mato, né?”. Chegando em casa, a mariscada seguia para o caldeirão no fogão que estalava lenha. Tudo coisas da nossa humanidade!

    Que saudade da Odócia, do Aristeu, do Gregório, da  Filhinha, a dona Paulina e de tanta gente boa que morava na Ponta Aguda! Quantas boas lembranças! Que saudade dessas coisas de caiçara!  

 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

O QUE O CORAÇÃO AMA...

Entardecer - Arquivo JRS 


         Alguém escreveu que aquilo que o coração ama, a memória não esquece. Verdade mesmo!

       Eu perambulava pelos corredores da universidade, na companhia da minha saudosa sobrinha. Por ali encontrei várias pessoas conhecidas, inclusive uma família indígena de Ubatuba. Nos detivemos um tempo assistindo a uma partida de voleibol na quadra, onde a cada espaço de tempo, havia um “tomate”, um jogador “tomate”. Não entendi o significado, mas também não me esforcei nisso porque havia mais coisas por fazer, espaços para conhecer. Por fim, fomos ao restaurante universitário. A nossa querida Jô estava radiante.  Acordei.

      Momentos desses, com pessoas bem queridas, constantemente preenchem meus pensamentos, se fazem presentes em meus sonhos. Assim vou navegando na vida, querendo buscar a criança que se perdeu no adulto. Minha Gal, minha Má, meu Estevan, minha Joseana, minha irmandade e sobrinhada... As minhas queridas Anna, Olga, afilhadas/afilhados e  tanta gente boa navega neste meu mar de lembranças, de saudades, em horizontes que se alargaram nestes tantos anos. Cada uma dessas pessoas estimadas alimenta uma utopia soberana, se compõe  no cativante caminho das estrelas. É isto! Vou ficando por aqui com as palavras de Mário Quintana: “Se as coisas são inatingíveis, ora... não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminhos se não fora a presença distante das estrelas”.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

POR ENQUANTO

 

Beleza no céu  - Arquivo JRS 

   Mais um ano que começa.  Por enquanto eu olho o tempo e me preocupo com gente nossa ainda apoiando discursos de ódio de gente transvestida de patriota, mas que na verdade está cheia de cobiça e maldades, almejando se apoderar do esforço alheio, entregar as riquezas do Brasil ao estrangeiro.

    Como podemos mudar essas mentalidades dos que querem o sucesso dos ricos e o pior dos mundos aos pobres e ao meio ambiente? Acham o máximo a ostentação às custas de quem trabalha na insegurança das leis trabalhistas, dos piores transportes, das péssimas condições de moradia, das ameaças nos campos, das perseguições às minorias, do racismo, da negação à autonomia dos povos, da escola, do ensino e da saúde em precarização, dos campos agrícolas envenenados, das matas devastadas, dos mares e rios perdendo vidas, da privatização da água que bebemos e da energia que consumimos, de incêndios criminosos que destroem florestas, animais e povos nativos, de mineração em terras indígenas que devastam tudo e arrasam lugares inigualáveis, da insegurança à juventude, das mídias forjando a submissão das mentes, negando a autonomia do pensamento etc. Aonde vai parar tudo isso? Por outro lado, me sustento em exemplos de gente lutando contra as injustiças, alimentando os mais necessitados, mostrando solidariedade de verdade às causas de quem é injustiçado, porta doenças no corpos e mente. Desejo muita força a essa gente! São profetas e profetisas de uma civilização que se degenera.

    Só há uma multidão desamparada porque corações endureceram, aceitaram as piores coisas como naturais dizendo que “esta é a vontade de Deus”. São alienados que partem para desmerecer pessoas fragilizadas, de origens humildes; que historicamente sempre foram exploradas e perseguidas. Ou, ao contrário, usam um discurso emocional a fim de cooptar mentes, ganhar votos e adeptos até mesmo para serem descartados após suas conquistas espúrias, tipo golpe de estado, fim da democracia e dos direitos ambientais, humanos etc. Pior ainda é quando tem gente nossa pedindo a pena de morte, ajudando nas barbáries que brotaram de planejamentos de uma minoria neste planeta! Quando eu imaginaria privatização das praias? Quando eu vou aceitar a existência de latifúndios maiores do que muitos países? Quando eu vou achar normal usar a tecnologia e os conhecimentos desenvolvidos pela humanidade para excluir a maioria da população? Jamais caiba isso em meu ser!

   Mais um ano que começa. Por enquanto eu olho o tempo e penso nos meus desejando que não sejam contaminados pela ideologia reacionária, egoísta, contrária à partilha. Não é este mundo de maldades que devo aceitar. Aos meus e às futuras gerações eu apenas desejo o melhor dos mundos e espero fazer a minha parte, deixar a minha melhor contribuição. É isto por enquanto. Abraços e cheiros a vocês nas palavras de Guimarães Rosa:  "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde,  um descanso na loucura".