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Uma ponte no caminho - Arquivo JRS |
Tempos atrás eu me encontrei com o amigo Ni, parceiro de resistência nesse tempo todo, força amiga nas comunidades caiçaras. Dele é a narrativa a seguir:
"Sabe o Tadeu, aquele pião que apareceu por aqui na década de 1970, que chegou a trabalhar conosco em várias obras? Pois é, ele foi lá em casa pedir ajuda. Tá lá, me auxilia em algumas coisas. Agora já é idoso, mais do que nós, mas não se libertou do vício da pinga. Tenho muita dó. O pessoal me critica por eu lhe dar abrigo, manter ele ali, mas você acha que eu tenho coração para colocar porta afora um ser humano como eu? Se nem cachorro eu sou capaz de desprezar, imagine um filho de Deus! Lhe arranjei um quartinho, comprei colchão novo. Ele come da nossa comida, convive com a gente. Nada sei do seu passado, dos seus familiares. Só sei que veio da cidade de Lorena em busca de trabalho na construção civil, em 1975. E aqui ficou. Desde esse tempo creio que nunca deixou Ubatuba, sempre vivendo pelas obras, em barracos pelas áreas impróprias que foram sendo deixadas aos pobres trabalhadores, às famílias que vieram de terras distantes na esperança de melhores condições de sobrevivência.
O Tadeu, assim como tantos outros, me faz refletir sobre a noção de individualidade (que eu considero a manifestação do pensamento que vai se apurando no decorrer da vida). Se o coitado não se libertou desse vício tão antigo, é porque o seu pensamento precisa dele por alguma razão. Depois, tem o corpo que sente a necessidade de determinados elementos que estão presentes na cachaça, né? Mas, pergunto sempre ao pessoal lá de casa, por que o pensamento tem necessidade do vício? Concluo sempre que trata-se de autorrealização. A nossa cabeça comanda o corpo, quer lhe satisfazer para também se realizar. O nosso pensamento sonha desde a infância. E tais sonhos seguem a gente até a velhice, querem se realizar. Nós até nos conformamos em muitos aspectos para contornar os nossos sonhos, mas nem todos são assim, não conseguem isso. Um vício pode ser a solução para quem não admite renunciar aos apelos dos sonhos. Acredito que o Tadeu ilustra essa minha crença. No fundo, somos a realidade, mas estamos buscando a realidade. É o eu querendo conhecer o eu, ansiando pela realização. O Tadeu, coitado, é um dos tantos exemplos de gente que passam a vida inteira nessa angústia. A sociedade não colabora. Ainda mais agora, neste tempo de ideologia egoísta tão forte a ponto de fomentar ódio aos mais pobres, às minorias sociais. Por isso tento ajudá-lo, tornar o fardo dele mais leve. Um dia se libertará. Tenho esperança".
Eu continuo admirando esse amigo com seu grande coração acolhedor. É um exemplo de alguém que continua regando os laços comunitários que nos trouxeram até aqui e seguem sendo a nossa força. Pessoas assim são pontes em nossos caminhos.
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