sexta-feira, 13 de outubro de 2023

NÃO BASTA LER

 

Colheita do dia no quintal - Arquivo JRS


     Dia chuvoso, favorável à leitura. Me abraço em reler o trabalho do Peter (A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta.... Peter Santos Németh) na intenção de captar mais coisas desse cidadão valeparaibano que se fez pescador, caiçara e pesquisador que muito nos orgulha. É muito importante ler obra de tal quilate, interpretar e lançar outras possibilidades que possibilitem o refazer de traços culturais essenciais à sobrevivência do nosso lugar (Ubatuba), da nossa cultura (caiçara) e do nosso meio ambiente que nos garante vida em abundância. Procure ler essa obra! Vale muito apena! Na  verdade, esses registros e tantos outros a serem feitos nos permitirão a desconstrução de um modelo, de uma mentalidade exploradora e escravizadora do ser humano. Recentemente vivemos a polêmica da demolição da capela de São José, na Praia do Félix. Porém, há quanto tempo aquele espaço estava esquecido, sem nenhum evento que envolvesse a comunidade local e a tradição caiçara? (Pior: um conhecido meu, nascido naquela praia, recentemente falecido, na sua simplicidade, se posicionava a favor dos ricos, do candidato a presidente que pregava abertamente contra os pobres, garantindo os privilégios de uma minoria. Votou nele!). Quem registrou as falas dos mais antigos a respeito da história daquela capela? Quem sabe que a última reforma significante (começo da década de 1970 - quando ganhou paredes de blocos), foi uma iniciativa saudoso do freio Pio, com tudo produzido no estaleiro do Ubatumirim? Quer pesquisar? Ainda estão vivas muitas das pessoas que colocaram a mão na massa nessa empreitada! Estamos diante do desafio de desconstruir um modelo de sociedade que vai nos levando ao fim, à extinção da espécie humana.

    A desconstrução nos leva ao direito e a justiça. O filósofo Derrida escreveu: “A desconstrução é justiça. (...) O direito não é justiça. O direito é o elemento do cálculo e é justo que haja lei, mas a justiça é incalculável”. E aqui eu emendo com a escrita do Peter, logo no começo da citada obra: “Nossa pesquisa investiga o significado sociocultural dos territórios de pesca para a comunidade da Praia da Enseada e as implicações sobre a reprodução do patrimônio pesqueiro tradicional desses pescadores, a partir da criação do polígono de Interdição à Pesca da Ilha Anchieta, instituição arbitrária unilateral que desconsiderou o direito consuetudinário dos pescadores locais, baseado no uso costumeiro ancestral e continuado desses espaços marítimos especiais”. De repente, desde a expulsão das famílias caiçaras da citada ilha no começo do século XX para a instalação do presídio estadual, os pescadores foram sofrendo injustiças após injustiças. Muitos nem chegaram a saber que, aqueles ossos, aqueles vestígios antigos naquele lugar eram bem antigos mesmo. Está comprovado: na ilha-irmã, no Mar Virado, o assentamento humano é atestado mediante o estudo de sambaqui encontrado, “se deu por um grupo pescador-coletor entre os anos 1546 B.P. a 550 d.C. com permanência mais ou menos de 900 a 1000 anos. Por volta do século X o sítio foi reocupado pelos Tupi permanecendo naquele local até o ano 1000 e no século XVI tivemos a chegada dos europeus. Do século XVIII até meados do século XX tivemos a presença marcada dos caiçaras. Trabalhos paralelos de etno-história e etno- arqueologia demonstram também a manutenção das populações pescadoras até os dias atuais” (UCHOA, 2009:p.7-8). Ou seja, a razão principal da desconstrução requer matriz ideológica, de gente que há muito tempo vive na interdependência ambiental. Não é de hoje que os caiçaras cuidam desse pedaço de chão que recebeu o título de município de Ubatuba. Portanto, resgatando as bases culturais saberemos traçar outro modelo de sociedade, de relações entre as pessoas e a natureza que permitiu essa cultura específica. Finalizo com a fala do professor Diegues, bem lembrada pelo Peter: “A história caiçara ainda está por ser escrita”. Poder escrevê-la do ponto de vista dos oprimidos é uma disposição política que implica escutar os caiçaras, o povo do lugar. Implica se engajar em movimentos combativos e indicar lideranças capazes de serem fiéis nas diversas instâncias dos poderes constituídos no Estado Brasileiro. “A justiça é o princípio regulativo do direito. Continua a ser o seu fim último, o substrato que lhe confere legitimidade e aceitação social”, como bem defendeu Rachel Nigro. Neste rumo, com um engajamento na cultura caiçara, encerro citando Peter como um bom exemplo: “Percebendo esse cenário caótico, resolvemos criar no ano de 2004 a Associação Pescadores da Enseada (APE) reunindo cerca de 15 famílias caiçaras locais com o intuito de defendermos nosso modo de vida através de uma participação maior e mais representativa na política municipal, estadual e federal. Outra iniciativa local de destaque da APE foi o Registro da canoa caiçara como patrimônio cultural imaterial do Brasil junto ao IPHAN, projeto que trouxe grande visibilidade para a importância da cultura tradicional pesqueira caiçara, atraindo apoiadores de todo o país”. Valeu o texto, caiçarada?

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