quinta-feira, 31 de agosto de 2023

O BAIRRO DA FRUTA

    

Está florindo "Doce casal"- Arquivo JRS

   
Está florindo "Leninha"- Arquivo JRS

Dito do coqueiro - Arquivo JRS

Provérbio africano: “Se quiser ir longe, vá acompanhado”.


     Pontal da Cruz é um bairro, uma praia no município de São Sebastião. De acordo com Dito (do coqueiro), é o “bairro das frutas”. Há muitos tempo eu não pensava nesse lugar localizado na beira da rodovia – e do mar! -, onde morava uma das irmãs da estimada Vanda. Apenas uma vez eu estive lá na década de 1980. É um lugar bonito, emoldurado pelo azul do mar e pelo verde da mata. Mas quem é esse Dito do coqueiro?


      Conheci o Dito no hospital regional, em Caraguatatuba, enquanto continuamos acompanhando o meu sogro em internação. Falador como tantos outros caiçaras, logo soube que estava ali devido uma queda de um coqueiro: “Eu sou caiçara do Pontal da Cruz. Você conhece? O meu trabalho é de limpar coqueiros. Já tem bastante tempo que faço isso. Quer me encontrar por lá é só perguntar pelo Dito do coqueiro. De vez em quando acontece acidente, faz parte da vida, né? Dessa vez eu estava cortando uma folhas, tirando umas palhas velhas. De repente uma folha caiu, mas parou no meio do caminho, na rede elétrica, passou choque em mim. Eu caí de seis metros, quebrei um braço, a clavícula e uma costela que furou o pulmão. Fiquei mais de dez dias no hospital de São Sebastião antes de ser trazido para cá. Agora não sei por quanto tempo devo permanecer aqui. Ah! Não é a primeira vez que eu me acidentei nesse trabalho”.


     Nunca eu tinha imaginado alguém especializado em trepar e limpar coqueiros. Então... “O seu nome está justificado, Dito!”. Mas eu vou deixar que o protagonista fale mais, tá bom?

    “Sabe, Zé, eu sou caiçara mesmo. Estou com cinquenta e dois anos. A minha mãe era da praia do Bonete, da Ilhabela. O meu pai era caminhoneiro, natural da cidade de Roseira. Ele morreu muito cedo. Eu nasci em São Sebastião e nunca saí da beira do mar. A minha vida é no Pontal da Cruz, por ali trabalho e convivo. Vocês (eu e o meu sogro) precisam passar por lá, fazer uma visitinha. Vão conhecer o Bar do Badeco, tomar uma pinga com cambuci, experimentar uns salgadinhos, comer uma sirizada e outras gostosuras”.

     Ao saber que eu adoro plantas, sobretudo as frutíferas, o Dito desfilou uma sequência delas bem típicas do nosso mundo caiçara. Foi quando reafirmou que o lugar onde ele mora é o “bairro das frutas”. Dentre cambucás, bacuparis, cambucis,  mangas etc., ele me perguntou se eu conhecia fruta-pão. “É lógico que eu conheço!”. Então ele me apresenta uma novidade que movimentou o diálogo: “Da branca e da amarela?”. “Da amarela? Eu nunca imaginava que existia mais de uma espécie de fruta-pão!”. “A fruta-pão amarela é melhor que a branca, é mais doce. Se quiser mudas é só passar lá em casa que eu lhe dou”. Quer estímulo maior que uma quem gosta de plantas? Certamente que irei atrás dessa variedade, que plantarei e terei o prazer em desfrutar dessa iguaria formidável. Pode ter certeza que eu farei e repassarei mudas dessa fruta para outras pessoas!


    Não é maravilhoso descobrir novidades a cada dia, crescer em conhecimento convivendo com os caiçaras, com a diversidade cultural e étnica tão peculiar no nosso espaço?


     É isto: “Se quiser ir longe, vá acompanhado”.


Em tempo: Maria Eugênia, a minha filha, acabou de me informar que a estimada Jandira, uma mestra indígena da Boa Vista (Prumirim – Ubatuba), é quem cuida das orquídeas da aldeia.


    

  

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

TENDO CIÊNCIA NOS FATOS

 

Puxada de rede no Perequê-mirim - 1947       (Arquivo C.B. Schmidt)


      Já escreveu Laura Gutman: “É importante refletir e tentar aprender com os antropólogos, os historiadores, os arqueólogos, os filósofos, aqueles que examinam e refletem sobre a evolução do mundo e dos seres vivos para além do nosso lugar. Essa compreensão ‘ampliada’ nos oferecerá um ponto de vista realista sobre nossa pequena realidade cotidiana”.

     A introdução acima foi buscada porque me encontro diante do estudo do amigo Peter Santos Németh, que se fez caiçara com os caiçaras da praia da Enseada, em Ubatuba. Dali sentiu a necessidade de pesquisar mais, de lançar luzes no nosso viver, na nossa cultura.

     Eu sempre acreditei que as culturas são ferramentas que garantem a nossa sobrevivência e nos ajudam encontrar um propósito  de vida. Portanto, transmitir nossas raízes culturais são ensinamentos mais que necessários. O Peter, que se fez pescador com os pescadores, tal como o Roberto Ferrero e outros mais, no ano de 2016, sob o título A tradição pesqueira caiçara dos mares da ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local, apresentou a dissertação para obtenção do título de mestre em Ciência Ambiental, na USP (Universidade de São Paulo). Dentre outros, ele me cita como pesquisador local. Ele nem imagina o quanto me honrou o seu trabalho e o tanto de alegria em ver os seus esforços na empreitada. Parabéns mesmo! O que retransmito a seguir, com algumas adaptações entremeadas de comentários, faz parte dessa realização que deve muito à cultura caiçara, aos moradores da comunidade tradicional da praia da Enseada.

 

       O presente estudo analisa os saberes e técnicas patrimoniais utilizadas pela população dos pescadores caiçaras que atuam na região da Ilha Anchieta e Enseada do Flamengo, em Ubatuba, litoral norte do Estado de São Paulo. Este corpo cumulativo de habilidades especiais, transmitidas oralmente, compõe o conhecimento tradicional pesqueiro local, patrimônio imaterial sobre o qual fundamentam sua reprodução sociocultural e o manejo de seus pesqueiros tradicionais.  Hoje, conforme preconiza o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), Lei 9.985 de 18 de julho de 2000), as populações tradicionais que usam territórios dentro de unidades de conservação podem desempenhar um papel de maior destaque, sendo-lhes assegurado: o direito de uso dos recursos naturais necessários à subsistência, valorizados seu conhecimento e cultura; a participação efetiva na criação, implantação e gestão das unidades de conservação, considerando as necessidades das populações locais no desenvolvimento de técnicas de uso sustentável. Através de nossa pesquisa, localizamos as escrituras originais de “compra e venda” da Ilha Anchieta com os nomes de todos os “outorgantes” e/ou “transmittentes” (assim denominados nos documentos) e a listagem detalhada das benfeitorias “desapropriadas”. Após serem expropriados de suas posses em 1905 e 1906, essas famílias foram habitar, fora da Ilha, “praias próximas”, tais como Enseada, Toninhas, Perequê-Mirim, Saco da Ribeira, Lázaro, Flamengo e Sete Fontes.


        Quem me confirmou a informação acima foi o Seo Dito Coimbra, do Perequê-mirim, e a Dona Gertrudes, das Toninhas. Segundo esta saudosa caiçara, até a família Cabral Barbosa morava na Ilha Anchieta.


      Expulsos de seus territórios originais na Ilha Anchieta desde o início do século XX, posteriormente, por volta dos anos 1950, iniciou-se também um processo de expropriação de suas terras no continente pela especulação imobiliária que vorazmente avançava pelo litoral norte de São Paulo. “Perdendo suas terras, era todo o mundo caiçara que vinha abaixo”(MARCÍLIO, 1986: p.13). Sem mais terras para plantar e marginalizados pelos “biscates” proporcionados pelo crescente “turismo” dos anos 1950-1960, restou apenas o mar para esses originalmente pescadores-lavradores (DIEGUES, 1979: p.198-199), tornando-se a pesca artesanal seu principal meio de subsistência e último bastião da livre expressão cultural de seu modo de vida tradicional.


       Reconheço, neste parágrafo acima, o que eu pude testemunhar: quantas famílias conheci morando no continente, mas oriundos das ilhas? Alcides “Bambá”, Eugênio Inocêncio, Pedro “Vitoreiro”, Salete, Oscar e outros relembravam de seus pais e avós, de suas roças, de suas vidas relativamente isoladas, de como foram enganados, trapaceados, iludidos. No caso da Ilha Anchieta, o que houve foi uma retirada imediata da comunidade para tornar o espaço um presídio estadual. Depois, estando assentados, tendo recolonizados os espaços em terra, aparentemente estabilizados, veio a especulação imobiliária. Os espertalhões se apresentaram. Um caso que me abalou muito foi o relato da Dona Chica, esposa do Argemiro Nascimento: “A nossa família e a família do Gusto eram da praia da Santa Rita. Esse Maciel, o tal de Bráulio Santos e mais alguém que não me recordo o nome deram um jeito de negociar tudo aquilo, venderam ao Pirani. Até a capela de Santa Rita foi levada para a Enseada. Ou seja, até o padre se envolveu na negociação, no convencimento da retirada das pessoas e das suas marcas daquela praia”. Esse Pirani, citado pela Dona Chica, tinha loja no edifício Andraus (na capital paulista) atingido por um incêndio em 1972, quando eu era servente de pedreiro e trabalhava com o Seo Sebastião Honório, no Perequê-mirim. Me lembro dos comentários na obra assim que o rádio de pilha deu a notícia. Resumindo: de momento em momento, ao longo das décadas recentes, grande parte dos caiçaras foram cumprindo uma via sacra, se espremendo em áreas impróprias, sendo explorados, se corrompendo  e/ou se valendo dos saberes de outros tempos para sobreviverem. São estes saberes que fundamentaram a tese do Peter e tantos outros pesquisadores que nos acodem hoje nas muitas reflexões que lançam luzes no nosso viver. Gratidão a essa gente toda!

domingo, 27 de agosto de 2023

LIÇÃO DE PINTURA

 

Parede reveladora - Arquivo JRS



 

Quadro nenhum está acabado,

Desse certo pintor;

Se pode sem fim continuá-lo,

Primeiro, ao além de outro quadro.

 

Que, feito a partir de tal forma,

Tem na tela, oculta, uma porta

Que dá ao corredor

Que leva a outra e a muitas outras.

 

      João Cabral de Melo Neto, um poeta que admiro, com o título A lição de pintura, me conduz à reflexão após uma prosa com o jovem Mateus.

      Mateus, quando cursava o ensino médio, formava dupla com Jakson, estavam sempre juntos nos diversos lugares e atividades. Ganharam o apelido de “Acerola e Laranjinha” devido a uma série televisiva. Os dois eram muito educados, sabiam se sair bem em todas as situações. Eu me simpatizava muito com eles. Os anos se passaram. Dias atrás reencontrei com Mateus, virou um rapagão, aparentemente continua sereno. Ele estava no hospital regional de Caraguatatuba, como acompanhante do avô que sofrera um AVC (acidente vascular cerebral). Naquele momento se encontrava preocupado e com certa tristeza: “O meu avô melhorou, mas não me reconheceu nessas horas todas que eu fiquei com ele no hospital”. Eu percebi que a questão era importante para ele. Busquei consolá-lo: “Talvez seja questão de tempo. O cérebro tem uma plasticidade incrível, se adapta às condições que se lhe impõe. Tenha a certeza que ele vai melhorar”. Mateus pareceu aceitar a possibilidade de recuperação do avô; mudamos de assunto. Logo ele estava contando do trabalho, dos colegas: “Estou nessa empresa que ganhou a licitação do trecho da BR-101 que vai de Ubatuba ao Rio de Janeiro. O salário mensal é de R$ 1.300,00 (mil e trezentos reais). Para mim que sou sozinho até dá para viver, mas quem tem família... Não sei como um amigo consegue sobreviver. Ele tem esposa e filha, pequena ainda, paga aluguel de R$ 900,00... Como ele consegue? Paga aluguel... O que sobra para as outras despesas?”. Naquele momento eu tirei uma lição de pintura: uma porta que dá a um corredor que leva a outra e a muitas outras. A “indignação” de Mateus demonstra que o quadro não está acabado, que precisa da reflexão e da ousadia para um aperfeiçoamento, para alcançar uma beleza maior.

     No fundo, o avô do Mateus, o pai do Mateus e o próprio Mateus se comparam à vida e morte severina tão belamente descrita pelo talentoso João Cabral. Numa passagem do poema, inquirido enquanto busca trabalho, responderia:

 

    Pois fui sempre lavrador,

    Lavrador de terra má;

    Não há espécie de terra

    Que eu não possa cultivar.

 

     Mateus, seu pai, seu avô... Tantos outros migrantes que buscaram o território caiçara devido as injustiças em suas terras de origem se encaixam no poema. No desabafo desse jovem trabalhador - que tive a felicidade de conhecer ainda adolescente – estão implícitas as imposições que sustentam o capitalismo, a felicidade de poucos mantida pela exploração dos trabalhadores, pelo empobrecimento dos povos. Diante deste quadro, o que inevitavelmente deve acontecer é a reformulação da cultura caiçara sem se descuidar daquilo que a gerou nos séculos: as condições ambientais e a melhor interação possível das pessoas com a natureza, a nossa "galinha dos ovos de ouro”.  É a “indignação” de Mateus e de tantos outros que permitirão aperfeiçoar uma cultura local e as que vão chegando, que continuarão a pintura, que intervirão com mais consciência. Na verdade, esse jovem é “um certo pintor” que pode continuar explorar outras saídas, abrir outras portas para renovados horizontes no território caiçara, produzir novo quadro que se tornará uma pintura maravilhosa.


O estimado Jorge Ivam fez o seguinte comentário que enriquece a postagem acima:

    Zé, a propósito do assunto acima, lembro-me que, há alguns meses, li um texto de um agente de saúde de Ubatuba que se declara de DIREITA . Fiquei perplexo. Um indivíduo nessa função tem de visitar muitos pacientes e, com certeza, lida com a miséria mais crua. Esse trabalho seria desesperador para qualquer um que tivesse um pouco de humanidade por constatar que pouco ou quase nada pode fazer para mudar imediatamente essa realidade. Era de se esperar que tal funcionário sofresse de uma angústia profunda por se saber impotente diante do quadro social com o qual tem de conviver, mas o referido agente deve achar que o mundo é bom desse jeito mesmo. Nem sequer considera que há injustiça. Provavelmente julga que, se ele pode ter uma motocicleta para a chegar à casa de pessoas que nem têm o que comer é porque ele merece, batalha; elas, ao contrário, são preguiçosas. A miséria é problema delas. Ele se compraz em entregar as mensagens cumprindo aquilo que é designado como seu papel. A realidade não o comove, não o sensibiliza, por isso acha muito natural ficar do lado dos ricos, idolatrá-los.


sábado, 26 de agosto de 2023

O NOSSO LUGAR, AS NOSSAS RAÍZES

 

Pedro Cabral Barbosa - Arquivo Vanessa

      Dias desses me deparei com uma linda imagem do saudoso Pedro Cabral, o Seo Pedro da minha infância na praia do Perequê-mirim, nos idos de 1970. Desde aquele tempo eu adorava me achegar perto dos mais velhos, escutar seus causos e dar risadas com a espiritualidade caiçara (religiosidade, técnicas, humor, sabedoria antiga etc.). Quem a compartilhou foi Vanessa, sua neta. “Mas quem é essa Vanessa?”. Logo li: filha da Nely. “Ah! É aquela menina que apenas vi quando criança, de pele rosada, sempre bem vestida. Lindinha mesmo!”. Então escrevi pedindo licença para reproduzir o texto e a imagem. Voltei no tempo, naquela rua escondidinha, ali no jundu, onde moravam Dona Ana e Seo Pedro. Vamos ao texto da Vanessa que auxilia na compreensão da imagem postada:

 

      Janeiro 1974. Perequê-Mirim. Rua Projetada sem saída. Na foto meu vô Pedro Cabral Barbosa sentado na frente da casa construída por ele mesmo. Nascido aos 5/out/1903, casou com minha vó Ana Henrique de Jesus (27/fev/1907) em 13 de Agosto de 1927. Ambos nascidos em Ubatuba, viveram a vida toda no mesmo bairro. Colonizaram o Perequê Mirim. Tiraram o sustento da pesca, da roça de mandioca, da plantação de banana, da criação de cabra. Meu vô foi também dono do armazém. Criaram os 11 filhos: (em ordem da mais velha p a caçula): Iracema (tia Cema), Miguel, Aurora (Lolinha), Maria (Mariquinha), Eunice (tia Nicinha), Aristides, Nilo, Izabel (tia Bezinha), Jurema, João (tio Jango) e Nely (minha mãe). Quando a gente sabe de onde vem, fica mais fácil de entender como a gente é.

       Dos filhos citados, estão vivos o meu tio Jango, minha tia Lolinha (mãe do Richardão) e minha mãe Nely. Ela tem o álbum da família e achei por bem postar todas as fotos com as histórias que minha mãe lembra. (Pode ter certeza que eu aguardo ansioso por isto).


      Cultivar a memória é se manter forte. Kaká Werá escreveu isto: “Uma memória pode ser conscientemente trazida para nos oferecer parâmetros e referências na meditação sobre o presente e na abertura de futuro próspero”. Está dentro de um provérbio africano: “Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai”.  Me recordar do Seo Pedro e da Dona Ana é se manter ao fio da minha origem, é querer evoluir em consciência e humanidade. É crescer na cultura caiçara!

       Eu tive o privilégio de conhecer, de admirar essa família Cabral Barbosa. Tenho a honra de manter a amizade com a maioria dos descendentes desse casal (Ana/Pedro). Já escrevi a respeito de alguns deles em outros textos. Por isso estou feliz por ter reencontrado a Vanessa. É claro que pode me indicar para a equipe de podcast “Rádio Novelo Apresenta”! Gratidão mesmo!

domingo, 20 de agosto de 2023

DEPOIS DE MAIS UMA NOITE NO HOSPITAL

 


 

Desenho e orquídea - presente da Maria Eugênia

     Desde o Dia dos Pais que o meu sogro está hospitalizado por um problema abdominal. Agora está melhor, sem as dores. Foi transferido de Ubatuba para Caraguatatuba devido a um exame muito específico. Assim pude conhecer o Hospital Regional, constatar que está bem aparelhado e tem um corpo de funcionários admirável. Familiares têm se revezado em ficar como acompanhantes nestes dias. Hoje, por volta das 8:40 cedi o espaço à minha esposa; de ônibus em ônibus cheguei em minha casa 12:40. Isso mesmo! Quatro horas devido as esperas e as demoras. Tendo que ficar uma hora e vinte minutos no terminal rodoviário de Caraguatatuba, aproveitei para olhar as pessoas e conversar com algumas. Adoro esses momentos!

     Três moradores de rua estão conversando alto. De repente um deles chama outro mais distante: “Ó, Portuga, vem cá”. Noto que o tal Portuga está vestido diferente, não dá para dizer que vive pelas ruas e beiradas de telhados. Assim que ouço a sua voz, me admiro: “É português mesmo!”. Quem o chamou começa a contar um acontecido: “Sabe que a minha mãe acabou de me telefonar, me deu uma bronca? Ela mora em São Carlos, é uma alagoana baixinha, mas muito brava. Ele me falou gritando assim: ‘O seu filho da puta, trate de voltar logo para casa. Não vê que a polícia tá matando a torto e direito essa gente que vive como você? Volta agora, filho da puta!’. Você acha que ela tá certa ou errada, Portuga?”. Nesse momento, um outro parceiro entra na prosa: “Ela tá certa sim. A polícia está até infiltrando homens entre moradores de rua. O agente se veste como nós, passa a viver no nosso meio só para passar informações e castigar, matar a gente”. E por aí foi o assunto deles. Dei mais uma volta por ali. Não demorou nada para eu me deparar com o citado Portuga já puxando conversa comigo. Prestei muita atenção nas palavras para não perder nada. Soube que ele está há quatro anos no Brasil e que procura uma amada: “Dizem que está morta, mas já me disseram também que está a viver no Morro do Algodão. Eu quero ir lá, mas desconfio que pode ser uma armadilha para me matarem. Eu a procuro porque ela é a minha amada”. Me emocionei. Então ele puxa um aparelho celular e põe para tocar uma música, bonita por sinal. Parece que a canção diz aquilo que completa a angústia dele. Leio o título: Portas do Sol. Quem canta é um grupo (Nena). Sigo a viagem pensando nessa gente, nessas histórias que se tecem pelo nosso espaço caiçara. Pais e mães dessas pessoas podem estar distantes, mas mais próximos do que a gente possa imaginar.

domingo, 13 de agosto de 2023

PAI DAQUI, PAI DE LÁ...

 

Capa do livro - Arquivo JRS


        Não teve como ser de outro jeito, tive de pegar o novo livro do estimado Jorge Ivam e ler de cabo a rabo sem querer nem mesmo parar para matar a sede. Ainda bem, amigo, que você fechou os olhos para os “defeitos” dos seus escritos, decidiu  desengavetá-los e mostrar para nós sob o título de Estátuas estateladas. Parabéns mesmo! Certamente que seus poemas continuarão possibilitando reflexão e entretenimento. No dia de hoje penso nos nossos pais (dos caiçaras), nos seus pais (dos baianos) e em todos os pais. Nos pais daqui, nos pais de lá... nos pais da Mantiqueira, nos pais da Serra do Mar.  E escolhi Ser pai.  

 

SER PAI

 

Em algum momento

É ser

O grandão

O herói

O palhaço

O protetor

O guia

O médico

O guarda-costas

O modelo

O professor

O salva-vidas

O consultor

O esperto

O que não se cansa

 

O ditador,

O chato

O velho

O burro

O bobo

O sem-graça

O ultrapassado

O moralista

O desmancha-prazeres

O que não sabe nada

O que deveria ser outro

O que é inferior ao pai do meu amigo

O que a minha mãe deveria abandonar

O agiota (sem lucro)

 

O meu velho!

sábado, 12 de agosto de 2023

PROSA NA MANTIQUEIRA

 

Tropa na serra - Arquivo JRS



Ferradura na estrada - Arquivo JRS



     Bem cedo, passando pelo bairro (Barreira – Delfim Moreira), avistei uns homens conversando enquanto aproveitavam os primeiros raios de Sol para se aquecerem. A noite foi fria e a manhã ainda estava embrulhada na cerração da Serra da Mantiqueira. Um deles veio ao meu encontro. Reconheci. Era o José Rodrigues, o “Bacana”, cuja barraca na beira da rodovia tem uma variedade de produtos, uma bica de água maravilhosa e um monte de plaquinhas entremeadas com as curiosas mensagens.

      José Rodrigues é especulador, quer estar informado de tudo. Imagine se não iria querer saber sobre um caiçara convivendo por ali, na Mantiqueira! Nisso que estávamos proseando, vem se aproximando um grupo numeroso de cavaleiros. Fui informado pelo amigo: “É um pessoal que vem de longe, vão para Aparecida. São romeiros. Sempre você vai ver deles passando por esta estrada”. São mais de trinta homens, quase todos envoltos em ponchos e cobertores, máscara de lã e chapéu. O frio era intenso mesmo! Me impressionei vendo tudo aquilo, escutando as ferraduras batendo no asfalto e sendo informado que o grupo é proveniente da cidade de Formiga, distante   mais de 400 quilômetros de Aparecida. Perguntei se depois ele voltariam tudo isso de cavalo. O “Bacana” respondeu: “Não, eles voltam em caminhão”. Pensei: “Ainda bem”. Em seguida o meu novo amigo comentou: “Eu não gosto disso. Na semana passada, um cavaleiro foi preso, também levaram os cavalos. Ele estava bêbado, maltratando os animais, tirando sangue. A polícia levou”.  Me despedi refletindo sobre isso tudo. Mais adiante, estando numa elevação do terreno, escutei um som como se fosse um tilintar. Era uma minúscula tropa carregada de produtos. O homem e seus animais se foram em direção à vila. Não demorou muito para estarem voltando pelo mesmo caminho, já aliviados do peso. Interessante os aspectos culturais de todos os lugares deste país, deste nosso Brasil.


terça-feira, 1 de agosto de 2023

NOIVA DO SOL

 

Um barco na areia - Arquivo Santiago
 

Meu pai na última embarcação - Arquivo JRS


     Antigamente, o fim da vida de uma canoa era virar cocho na casa de farinha, jardineira, lugar para se sentar debaixo de uma sombra etc.  Mas o que fazer com um barco que deixou de servir à pescaria? Eu, olhando as madeiras que retornam aos poucos ao chão, presto homenagem aos conhecidos construtores de barcos no nosso chão caiçara: Leovigildo (meu pai), Velho Alexandrino, tio Dito Félix, Jacó Meira, Marquinhos, Juvenal e tantos outros. O estimado Santiago mostra outro caminho: o da poesia. Valeu, Santi!


O velho barco Noiva do Sol

há muito se foi nas marés do tempo

As águas, as areias, os anos

cobriram seu casco, beberam suas histórias

enterraram seu convés

Os pescadores que o conduziam

pelas pescarias e rumos

repousam em casa

ou na memória

ou labutam ainda com outros barcos

mar adentro

Talvez só o mar mesmo saiba

dos destinos dessa gente

moldada a sal e sol

As crianças que brincavam

sobre o convés soterrado

puxando uma ponta de corda

que surgia do chão,

elas cresceram

Decerto muitas esqueceram

o barco da infância

na praia dos anos

Porque os barcos

são para isso feitos

navegar, navegar e

perecer

como perecem as gentes

As madeiras nascem nas florestas

do alto olhando as praias

no silêncio em que nascem

os mundos

Um dia um canoeiro,

um mestre construtor de barcos as recolhe

e lhes dá novo destino

As canoas nascem árvores

as árvores morrem canoas

Os barcos são casas temporárias

de vidas que vão ao mar

e lançam redes e lançam a sorte

que é peixe arisco

O barco Noiva do Sol

às vezes reaparece

nalguma maré seca que repuxa areia e

descobre suas velhas madeiras

encharcadas e grudadas de cracas

revelando as costelas carcomidas do cavername

como o esqueleto de um bicho

muito antigo

Efemeramente

o sol brilha novamente sobre o velho barco perdido

que tinha o nome de Noiva do Sol

mas casou-se com o mar.

A saudade de navegar faz as madeiras rangerem

Na maré cheia pequenos peixinhos deslizam entre as pontas lascadas

 e ruínas do

barco esquecido que não esquece o mar

Não dura muito esse reaparecimento

como não dura nossa existência

As marés

recobrem novamente

esses resquícios de um tempo

e o barco Noiva do Sol

desaparece na areia

Como nós também um dia desapareceremos

Mas o velho barco

cumpriu seu rumo, seu tempo, seu trabalho

e adormece sereno

E nós?

Pequenas canoas solitárias

nos encontrando e desencontrando

nas remadas longas

da travessia do existir

navegando na insondável

maré dos tempos

Um dia também repousaremos

e o sol seguirá nascendo

sobre nossas memórias

que um dia se apagarão

como o velho barco na areia