Um pé rachado - Arquivo JRS
Dias desses, no ônibus que serve a tanta gente, avistei o Maneco. Estava tranquilo, olhando a paisagem que descortinava pelo vidro, pela janela aberta. Não tem como não se encantar com esse mar, com esses morros, com a linha de horizonte emendando o céu com o mar.
Maneco, tal como o saudoso João de Souza, é um verdadeiro caiçara do pé rachado. Com gente assim eu me animo na esperança de tempos melhores. Suas prosas são nossas prosas, seus parentes são nossos parentes. É gente que sobe morro, atravessa praias, vai atrás de peixe sempre pensando num pirão. "Acabei de ir na casa da minha irmã. Todo dia eu passo por lá, tomo um café, converso um pouco e me mando. Se não fizer isso, parece que alguma coisa está faltando no meu dia".
Maneco nunca se casou. Depois da morte dos pais continuou morando na mesma casinha, na beira da estrada. Tem um roçado básico, vive debaixo de um sombreado fantástico, onde a moradia quase desaparece. Uns cachorros lhe fazem companhia: "Cachorro é, de verdade, amigo da gente. Você acredita que os meus nunca deixam o terreiro descoberto? Eles vigiam o nosso espaço dia e noite. Eu saio todos os dias, mas eles não arredam o pé de volta da casa". Quando lhe perguntei das pescarias, ele se animou: "Ontem mesmo tive na Pedra do Alçapão. Trouxe uma garoupa para a semana. É o que basta. O pessoal tem reclamado que tá acabando os peixes. E tá mesmo! Você se lembra daquele tempo antigo, quando toneladas e toneladas de sardinhas chegavam no porto de Ubatuba, onde morava o Acari? O Dito Mentiroso me disse que uma parte daquilo tudo seguia para as fábricas, seria transformado em fertilizantes. Desse jeito acaba mesmo, né? O barco em que o meu pai trabalhava pegava carga de três toneladas. Hoje em dia esses barcos modernos guardam em seu bojo dez vezes mais que isso. Como o peixe vai resistir? E agora me diga: para onde vai todo o esgoto que nos produzimos? Para o mar , né? Com esse monte de porcariada, como os peixes vão resistir, procriar?".
Fiquei prestando atenção em tudo que dizia o Maneco Pé Rachado. Na sua simplicidade eu entendi os desafios para nós e às futuras gerações: o mundo vai continuar em mudança, não tem como impedir. Agora, o que tem de mudar está em nós. É isto que certamente vai ressoar para fora. O meu parente do pé rachado, desde sempre, tal como seus antecedentes, está ressoando. Os ecos me batem, me impelem a atitudes, à evolução que pode promover a vida. Valeu, Maneco!
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