Um gato - Arquivo JRS |
Totonho do Rio Abaixo, quase um personagem de Guimarães Rosa, é um caipira que exagera nas descrições da vida na roça, de quando era criança: “Eu tomava leite de cabra, por isso sou assim parrudinho. Queijo duro, daquele que se descasca, era em fartura. A porcalhada, tratada a soro duas vezes por dia, transbordava em saúde e gordura pra todo lado. Todos tinham cavalo; cabia a mim uma égua velha”. Também não tinha uma vez que ele não tirasse do bolso, embrulhado num pedaço de plástico, uma fotografia, pegando do pescoço para cima, de uma moça que foi paixão antiga: “Esta é a Ritinha, filha da tia Andrelina. Vê o cabelo vermelho dela? Dizem até hoje que ela tem parte com a Caapora, que é coisa arranjada por parentes do tempo d’antes, de nossos antigos que primeiro chegaram no Rio Abaixo”. Aproveito, então, para explicar: “Sabia, Totonho, que caapora deu origem a caipira? Pois é! Caapora é habitante do mato adentro, que vive no interior, longe da beira do mar, o oposto de caiçara. É você: caipira”.
Totonho não deu ar de satisfação, mas também não se magoou. E continuou a prosa. (Aproveito para dar um aviso: de tudo que esse personagem conta, nem a metade é coisa verdadeira). “Até nas valetas do meu lugar, lá na Serra Acima, tinha jacaré. Vez ou outra eles estavam pegando sol no aceiro da roça, nos assustavam. Não tem mais nenhum deles porque a minha gente comeu tudo. Toda a cachorrada daquele lugar era de caçar, farejava e corria léguas no sobe e desce dos morros. Ainda hoje, lá em casa, tem um vira-lata que veio da roça, da linhagem desses cachorros que não perdiam uma caça: é o Pinga fogo. Você acredita que até bicho de pé, aquele que dá coceira desesperadora, da sujeira do chiqueiro, ele fareja na pele de quem o tem? Late, late, late...faz a gente passar vergonha. Não ataca onça, mas enxota de vez em quando uma delas morro acima. Tá escutando esse alvoroço agora? Vem lá de casa; é o Pinga fogo infernizando o a vida do gato e das tiribas do coqueiro”. A falação do Totonho do Rio Abaixo, que só perde para o Auri, iria longe caso não viesse um estrondo de longe: “Escutou? É trovoada. O varal lá em casa tá cheio de roupas. Vou recolher agora, pois a mulher já faz tempo que trabalha fora, no mercado”. Quem passou por ali logo depois foi o amigo Dito Pinhé. Chegou perguntando pelo Totonho. Informei-lhe que, naquele momento, pelo que me disse, ele estaria recolhendo roupas do varal. “Mas aquele caipira não ronca papo que é muito macho, não faz serviço de casa etc.?”. Não me contive no riso: “Tudo é papo dele, Dito! Agora é a coitada da ‘Isaura’ que aguenta as pontas naquela família. Totonho virou chupim”.
Sabe o que é chupim? É um passarinho preto que se apodera do
ninho alheio para botar lá os seus ovos a fim de seus filhotes serem criados
pelos outros. Desconfio que os tico-ticos andam sumido por conta desses
chupins. A conversa seguia até o ribombar de um trovão depois de um corisco.
“Santa Barba!” – exclamou amedrontado e saindo bem depressa o Dito. Sabe quem é? Santa Bárbara é a valência nas
tormentas; faz parte da religiosidade caiçara.
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