sábado, 12 de março de 2022

UM GRANDÃO QUE NÃO ESCAPOU

A casa do Manequinho - Arquivo JRS

   



       Meu finado pai contava um causo ocorrido na praia da Enseada, em Ubatuba, no tempo em que nem havia casa de turista. O único comércio era o do da subida do morro, como quem estava indo para as Toninhas: era a "Venda do Maciel". Outras duas vendinhas preenchiam os tempos de prosas e de cachaças dos caiçaras: o Bar dos Inocentes e o Bar do Sodré, esposo da Zenaide. Eu, quando criança, morava na praia do Perequê-mirim e participava das disputas de malhas patrocinadas pelo velho Amaral, na pista improvisada ao lado do Bar dos Inocentes. O velho Tatana eu conheci, assim como avistei em vida o Velho Giró, o Bráulio Rocha, o Manequinho Valentim, o Fabiano, o Antônio Julião, o Luiz Silvino e tantos outros velhos pescadores.


    Todo pescador é contador de causos. Além das rodas de prosas nos ranchos ou debaixo das árvores do jundu, os caiçaras também narravam empolgantes histórias nos balcões enquanto bebericavam a "mardita branquinha". Papai contava do "Fantástico peixe do Manequinho". Era mais ou menos assim: 


    "Manequinho morava ali, no canto da Enseada, beirando a costeira, não muito longe da venda do Maciel. Naquele tempo, vós sabeis,  não era preciso ir muito longe para fazer uma boa pescaria. Ele não se cansava de contar que o maior peixe da sua vida ele tinha pescado quase da porta de casa, do 'cagadô'. Foi quando um bitelo de mero pegou na isca e deu trabalho quase a tarde inteira. Vendo o compadre naquela luta, o vizinho Tatana se ofereceu para ajudar. O peixe era grande e pesado; os dois faziam força para encostá-lo nas pedras. Dava pra ver aquela escuridão brigando com a linha, quase quebrando a vara de bambu. De repente, deu uma rabanada maior e escapou. Só que a linha ainda tinha um certo peso. Os dois puxaram sem maiores dificuldades. Era a guelra do coitado que veio no anzol. Eles repartiram pelo meio. 'Deu escardado pra dois dias', contavam o Tatana e o Maneco. Mas o melhor vem agora: uns dias depois, pescando no mesmo lugar, outra vez um grande peixe se atracou com a isca, mas dessa vez não deu muito trabalho. Novamente o Tatana veio acudir, trouxe um bicheiro para facilitar a puxada costeira acima. Então...a surpresa: era o mesmo de antes, aquele que tinha deixado a guelra dias atrás. Que mero, meu filho! Deu tanta carne que as duas famílias e outras mais próximas passaram uma semana sem a preocupação de sair para pescaria. Foi um grandão que não escapou". 



    Como eu gostaria de ter escutado mais causos desse meu povo caiçara! A gente ria de quase tudo. Era um humor educado, que abria janelas nas nossas vivências. Não sei dizer se as gerações atuais estão aproveitando das memórias dessas tantas pessoas que romperam a História com suas tantas histórias, mas gostaria de ver se multiplicarem as rodas de contadores de causos, saber das prosas (do tipo do mero do Manequinho e Tatana) que aturam até hoje e seguem nos saciando, se compondo na nossa educação, nos tornando mais humanos.



Em tempo: agradeço ao professor Roaldo   Fachini que me fez recordar do causo dos dois pescadores da Enseada. 












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