"Ou mais, o pavão" (Arte: Estevan) |
Entrei na
adolescência trabalhando. Com catorze anos já estava com registro em carteira,
em um bar, restaurante e mercearia, no Perequê-mirim. Durante quatro anos
convivi com uma grande variedade de fregueses, desde aqueles rapazes migrantes,
moradores em barracos de obras, até os veranistas ricos das férias escolares.
Dessa gente escutei muitas histórias. Atendi nesse tempo muitas pessoas que
deixaram boas lembranças. Fiz muitas amizades.
O Velho
Nicolau, uma dessas amizades, conviveu por ali por quase dois anos. Vivia de
fazer poços quase artesianos. Em sua perua kombi, que tivera num passado cor
azul, carregava umas tralhas inigualáveis, ferramentas de trabalho, roupas
amarrotadas, calçados velhos, chapéus… Acho que aquele veículo era a sua casa.
As pessoas diziam que ele encostava o carro em qualquer lugar, perto de alguma
água e assim vivia. Lembro bem dele, com dedos encarquilhados, manquitolando,
sempre mexendo no motor para dar a partida e sair como uma pipoqueira,
fumegando tudo. O apelido dele era “Ou mais...viva!”.
Ao chegar na
porta do estabelecimento, ele saudava: “Ou mais...viva!”. E as pessoas
respondiam: “Viva!”. Logo pedia uma dose de pinga e já ia escolhendo um
salgado para acompanhar (a preferência era torresmo frito). De vez em quando
ele repetia o seguinte: “Meu nome é
Nicolau Montanaro. Nasci em São Paulo, na capital. Um sobrinho meu, Montanaro,
vem se destacando como jogador de vôlei. Tem defendido as cores do Brasil. A
seleção tem vencido muitas partidas graças ao talento do meu sobrinho. Ou
mais...viva!”. Era engraçado mesmo, todo orgulhoso. “Viva!”.
Numa
ocasião, depois de uma semana, ele apareceu barbeado, com roupas limpas e
usando cinto de verdade em vez de arame para segurar a calça. “Ou
mais...viva!”. “Viva!”. Debaixo do braço tinha uma ave diferente, dessas
que eu nunca tinha visto. Linda demais. “É pavão, Zezinho. Estive na chácara
do meu irmão, pai do Montanaro, e trouxe esta ave comigo. É presente para a
Nilséa porque ela tem sido muito boa comigo, principalmente quando o
dinheiro fica curto”. Coisa linda!
Fiquei encantado por aquela ave com olhos nas penas. Achava um milagre existir
coisa tão radiante. Nilséa era a patroa. No canto do terreno, um corredor
estreito, onde ficavam engradados de vasilhames, foi acomodado o pavão. Eu o
apelidei de “Ou mais” e sempre estava conversando com ele, jogando pedaços de
pão e outros agrados no seu cercado. Acho que ele também gostou de mim porque
cantava, gritava e pupilava sempre que me via. Por ali ficou meses, sempre
majestoso. Numa manhã, assim que cheguei para trabalhar, fui cumprimentar o “Ou
mais”. Cadê? Perguntei para a Nilséa o que tinha acontecido. “Ah, Zezinho!
‘Ou mais’ foi embora!”. “Como assim?”. “O Velho Nicolau chegou triste porque
uma criança, sobrinha dele, está muito doente. Conforme as suas palavras, é
saudade do pavão que abateu sobre a criança. Por isso ele veio pedir de volta a
ave. Nesta hora, se tudo correu bem com a velha kombi, ele está quase chegando
na capital, na casa da menina doente. Tomara que dê tudo certo e que a criança
melhore”. “Tomara mesmo, Nilséa! Porque a dívida dele na caderneta é grande”.
O idoso
paulistano “Ou mais...viva!” nunca mais apareceu. O lindo pavão “Ou mais” é
apenas uma boa lembrança para mim. Eu,
acreditando no que o Velho Nicolau dizia, conheci o tio do Montanaro, o grande
jogador de voleibol de décadas passadas.
“Ou mais...viva!”.
“Viva!”.
Curioso, meu pai se chamava Nicolau Montanaro. Essa história é estranha para mim. Um nome incomum e de São Paulo?
ResponderExcluirTeria sido meu pai? Não sei,
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