domingo, 26 de maio de 2019

O TUCANO DE WINDHUK

(Arquivo suindaras)


Em sua página, suindaras.com.br.,  Roberto Zsoldos nos brinda com esta importante matéria, relacionada a um local importante – Ilha Anchieta -  em Ubatuba. Olha a importância da arte e das palavras!

     No posterior do quadro, uma pintura retratando um tucano; há uma inscrição explicativa de seu antigo proprietário, José Antonio Hydalgo: “Presídio de Emergência de Guaratinguetá – o autor desta pintura foi o alemão P. Gryphan ali internado com o nº 43 – dezembro de 1941 – cujo destacamento militar era por mim comandado. (ass. José Antonio Hydalgo)”

     Pesquisando nos meus, poucos – somente dois – livros sobre aves brasileiras encontro num deles (Avifauna Brasileira – Guia de campo avis brasilis, da Editora Avisbrasilis de Vinhedo-SP ano 2009, vol. 1 de autoria de Tomas Sigrist, pg. 208, prancha 93) uma gravura que corresponde razoavelmente ao retratado pelo artista. Trata-se do tucanuçu (Ramphastos toco). Uma diferença entre a figura no livro e a da pintura é a extensão da área branca do peitoral do pássaro: na visão do artista é extensivo até quase a área de inserção das pernas enquanto que a do livro é limitada à área peitoral propriamente dita. Para mim, primário em aves, fica a dúvida se esta diferença deve-se à falha de percepção do artista ou a existência de outro espécime, semelhante.

     A pintura, artisticamente, é bonita, sem ser excepcional. O seu contexto é que é bem interessante.
     O Windhuk (tradução: Canto do Vento) era um navio de passageiros alemão, dos maiores em sua época, que para fugir do conflito aportou em Santos em dezembro de 1939, início da Segunda Guerra Mundial. Seus tripulantes ficam por aqui, tranquilos; porém em 29 de janeiro de 1942 o Brasil declara guerra à Alemanha e então são perseguidos e internados em campos de concentração, finalmente nos de Pindamonhangaba e de Guaratinguetá.  Ao final da guerra são libertados e somente um do total de cerca de 250 tripulantes volta ao seu país natal; todos os outros permanecem por vontade própria no Brasil, exercendo as mais variadas profissões e destinos. Em São Paulo capital temos dois restaurantes com proprietários originários do Windhuk.  Houve um restaurante também em Blumenau, cujo dono posteriormente montou outro em Monte  Verde, SP; frequentei-o certa vez. Há muito descendentes desta “epopeia”.
     Mas o destino, ou os descendentes, de Paul Gryphan ainda não os achei. Consta, na lista dos tripulantes, como mestre de cozinha. Sei, em pesquisas pela internet, que pediu residência definitiva no Brasil, em 1947... se alguém tiver novidades a respeito agradeceria se me comunicassem.
A história do Windhuk pode ser lida prazerosamente no livro “O canto do vento – a história dos prisioneiros alemães nos campos de concentração brasileiros” de autoria de Camões Filho, jornalista e escritor nascido em Taubaté; Editado pela Scritta (Editora Página Aberta Ltda. São Paulo SP) 1995. Vale a leitura.
     Há pelo menos mais uma obra sobre o tema, mas não a li. E deve haver, publicados ou não, relatos dos participantes ou seus descendentes.
     Vários dos tripulantes do Windhuk foram residir em Campos do Jordão e lá deram um upgrade na recepção turística do município. A esse respeito há dados muito interessantes no site “camposdojordãocultura.com.br” de Edmundo Ferreira da Rocha. Vale a pena a consulta.

     Ah! E José Antonio Hydalgo? Meu sogro, com muita honra e prazer.
     Natural de São Luiz do Paraitinga, residente em Taubaté, falecido na patente de Major da gloriosa Força Pública do Estado de São Paulo, do que ele muito se orgulhava, participante da Revolução Constitucionalista de 32, com alguma participação no levante da Ilha Anchieta e um mundo de histórias, que as contava.


sexta-feira, 24 de maio de 2019

O VELHO NICOLAU

"Ou mais,  o pavão"   (Arte: Estevan)


            Entrei na adolescência trabalhando. Com catorze anos já estava com registro em carteira, em um bar, restaurante e mercearia, no Perequê-mirim. Durante quatro anos convivi com uma grande variedade de fregueses, desde aqueles rapazes migrantes, moradores em barracos de obras, até os veranistas ricos das férias escolares. Dessa gente escutei muitas histórias. Atendi nesse tempo muitas pessoas que deixaram boas lembranças. Fiz muitas amizades.

            O Velho Nicolau, uma dessas amizades, conviveu por ali por quase dois anos. Vivia de fazer poços quase artesianos. Em sua perua kombi, que tivera num passado cor azul, carregava umas tralhas inigualáveis, ferramentas de trabalho, roupas amarrotadas, calçados velhos, chapéus… Acho que aquele veículo era a sua casa. As pessoas diziam que ele encostava o carro em qualquer lugar, perto de alguma água e assim vivia. Lembro bem dele, com dedos encarquilhados, manquitolando, sempre mexendo no motor para dar a partida e sair como uma pipoqueira, fumegando tudo. O apelido dele era “Ou mais...viva!”.

            Ao chegar na porta do estabelecimento, ele saudava: “Ou mais...viva!”. E as pessoas respondiam: “Viva!”. Logo pedia uma dose de pinga e já ia escolhendo um salgado para acompanhar (a preferência era torresmo frito). De vez em quando ele repetia o seguinte: “Meu  nome é Nicolau Montanaro. Nasci em São Paulo, na capital. Um sobrinho meu, Montanaro, vem se destacando como jogador de vôlei. Tem defendido as cores do Brasil. A seleção tem vencido muitas partidas graças ao talento do meu sobrinho. Ou mais...viva!”. Era engraçado mesmo, todo orgulhoso. “Viva!”.

            Numa ocasião, depois de uma semana, ele apareceu barbeado, com roupas limpas e usando cinto de verdade em vez de arame para segurar a calça. “Ou mais...viva!”. “Viva!”. Debaixo do braço tinha uma ave diferente, dessas que eu nunca tinha visto. Linda demais. “É pavão, Zezinho. Estive na chácara do meu irmão, pai do Montanaro, e trouxe esta ave comigo. É presente para a Nilséa porque ela tem sido muito boa comigo, principalmente quando o dinheiro  fica curto”. Coisa linda! Fiquei encantado por aquela ave com olhos nas penas. Achava um milagre existir coisa tão radiante. Nilséa era a patroa. No canto do terreno, um corredor estreito, onde ficavam engradados de vasilhames, foi acomodado o pavão. Eu o apelidei de “Ou mais” e sempre estava conversando com ele, jogando pedaços de pão e outros agrados no seu cercado. Acho que ele também gostou de mim porque cantava, gritava e pupilava sempre que me via. Por ali ficou meses, sempre majestoso. Numa manhã, assim que cheguei para trabalhar, fui cumprimentar o “Ou mais”. Cadê? Perguntei para a Nilséa o que tinha acontecido. “Ah, Zezinho! ‘Ou mais’ foi embora!”. “Como assim?”. “O Velho Nicolau chegou triste porque uma criança, sobrinha dele, está muito doente. Conforme as suas palavras, é saudade do pavão que abateu sobre a criança. Por isso ele veio pedir de volta a ave. Nesta hora, se tudo correu bem com a velha kombi, ele está quase chegando na capital, na casa da menina doente. Tomara que dê tudo certo e que a criança melhore”. “Tomara mesmo, Nilséa! Porque a dívida dele na caderneta é grande”.

            O idoso paulistano “Ou mais...viva!” nunca mais apareceu. O lindo pavão “Ou mais” é apenas uma boa lembrança para mim. Eu, acreditando no que o Velho Nicolau dizia, conheci o tio do Montanaro, o grande jogador de voleibol de décadas passadas. 

             “Ou mais...viva!”. 
             “Viva!”.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

MENSAGEM DE ÍNDIO

Maré de Lua (Arquivo JRS)

               Na metade de 1969, quando eu era bem criança e brincava pelas grimpas dos morros, na praia da Fortaleza, escutei que os americanos foram à Lua. Assim eram as notícias: “Neil Armstrong e outros aterrissaram na superfície lunar”, “Emílio Garrastazzu Médici tomará as rédeas do governo” etc. Enquanto isso o Zezinho e as demais  crianças continuavam correndo pelos morros, badejas, costeiras e outros lugares dessa natureza exuberante. Todos os espaços estavam à nossa disposição. Muitos diziam: “Imagine se Deus vai permitir que alguém conheça o céu e seus mistérios!”. Na Terra, estava “tudo sob controle”, inclusive na nossa terra. 
          
         Lá no morro, onde era a nossa casa, saindo no terreiro a gente já estava debaixo de uma frondosa aroeira, de onde avistávamos os rolos de fumaça que saíam dos navios que passavam bem longe, no largo, quase na linha do horizonte. Pelos caminhos quase sempre lisos, de barro amarelo, vovô e os menos velhos carregavam cachos de bananas, balaios de mandiocas e outras sustâncias dos nossos eitos de roças que se espalhavam até onde a vista alcançava. Em casa, nos intervalos de um trabalho mais exigente, mamãe e vovó costuravam nossas roupas. Sacrifício para as crianças era ir às aulas enquanto passarinhos, rios e mar estavam sempre descompromissados. Ficávamos em dúvida entre pegar caderno e lápis ou sair correndo alegremente sem destino pelos caminhos de servidão. Gostoso era brincar e aprender e aprender brincando: caniços viravam apitos, folhas de bastão imitavam cornetas, bodoques disparavam em toda direção, pescarias se multiplicavam... Cada farinhada era uma festa para nós crianças. Mas festa de verdade só na capela, onde a comunidade se encontrava regularmente. Tinha fogueira. Tinha foguetes. Tinha consertada. Tinha doce de mamão. Tinha bolo e tinha pipoca. Naquela época do ano, assim que chegava o tempo da tainha, a gente já estava ansioso pela tal festa.  

            Agora, passou o tempo... Passou tudo! O espírito de ambição se alastrou “e paira sobre as águas”, contagiando tudo, contaminando tudo. Tem uma história, voltando aos astronautas do início, que ao saber que eles iriam à Lua, um índio sábio mandou uma mensagem por intermédio deles, mas na língua dele. Ao decifrarem o recado, os que iriam embarcar na nave ficaram boquiabertos: “Não acreditem em única palavra do que essas pessoas estão lhe dizendo. Eles vieram roubar suas terras".



sábado, 11 de maio de 2019

O CAMBOTE DA TINTICUIA

Lagamar do Itaguá (Arquivo JRS)


          De vez em quando eu me pego sorrindo sozinho. É que coisas engraçadas, agradáveis e saudosas me vêm à mente. Quase sempre são momentos simples, da nossa gente, dessa caiçarada esparramada pelo chão de Ubatuba (desde o Camburi até o canto das Galhetas-Tabatinga).

          Dias desses passados, proseando com o Arcendino e o Vicente Preto, até me perdi no tempo e tive de sair bem depressa para uma obrigação que já passava da hora. Os assuntos eram pescaria, peixada, canoa e gente que faz falta porque nos deixou “antes do combinado”, conforme diz o Boldrin, ou porque fizeram a sua parte no combinado, sendo dispensados para abrir espaço a hóspedes novos nesta terra.

          “Assim é a vida, Zezinho. Assim é a vida. A gente dá risadas até hoje de alguns nomes de canoas antigas”.  Era assim mesmo: cada um escolhia nome que tinha identidade com a embarcação, que merecia estar gravado na proa, correndo pela borda. “Agora, onde o Artelino foi buscar o sentido de chamar a sua canoa tonta, um fisguela daquela, de Tinticuia?”.

          Tinticuia, para quem não sabe, é o popular manacá da serra, que no final do verão cobre nossos morros e beiras de estradas de tons rosas e brancos. “Não sei não, mas acho que era por ser leve demais”. Era mesmo. Poderia bem ser esse o motivo. A tinticuia é uma variedade nativa da Mata Atlântica; germina em área derrubada, de antigos roçados e em “picadas” de outros tempos. Não tem uma vida longa. “Árvores secas se pontilham até onde lenhador alcança a vista”. É que elas servem para fazer fogo, queimam bem em fogão à lenha. 

         O Arcendino rebateu logo: “Lógico que não era por isso que ela teve esse nome! Eu sei disso porque o finado papai me contou! A canoa do Artelino, a Tinticuia, de timbuíba, obra do Antônio Julião, ajudado pelo Dito Neves, foi tirada do Morro do Funhanhado. A árvore era perfeita, daria uma embarcação de quase seis palmos de boca. Mas só que na hora de derrubar a bitela, o Dito Neves se perdeu nas últimas machadadas deixando o tombo sem rumo. Para encurtar a história, quatro ou cinco tinticuias do derredor se enroscaram entre elas e causaram um grande estrago na timbuíba. Quase que nem deu aquela porcaria de canoa. E ainda por cima fez um estrago na perna do Antônio Julião que, pelo resto da vida mancou mais ainda”. Ah! Pensei: esse danado tá certo, acho que a verdade é essa mesma! Então era por causa dessa história que, quando alguém tropeçava de repente e se dava mal, sempre tinha um engraçadinho gritando de longe: “É a tinticuia que deu cambote no Antônio Julião?”.


sábado, 4 de maio de 2019

ECOTERRORISTA

Nas grimpas da Mantiqueira (Arquivo JRS)


        Por onde ando boto reparo em tudo. Ou melhor, tento observar o máximo possível. Quando criança, se deslocando por mar ou pelas pedras das costeiras do entorno do Perequê-mirim, eu avistava uma mata diferente entre o Saco da Ribeira e a Ribeira: era um eito em forma triangular que avançava morro acima, se destacando bem da nossa tão familiar mata. Papai explicou um dia: “É pinheiro, meu filho. Alguém plantou as mudas por ali”. Cresci. Aquelas mudas se tornaram gigantes, tomaram conta do morro todo e continuam se espalhando pelos morros vizinhos. Elas se dão muito bem na nossa terra!

        Quem já teve oportunidade de andar sob tal vegetação vai entender bem o problema: o pinus (pinheiro) não serve de alimento a nenhum animal, a ave alguma; suas folhas resinosas impedem que as plantas nativas se desenvolvam ao seu redor. Na verdade, nunca vi germinar em seu cisqueiro nenhum jacatirão, nenhuma tinticuia, nenhuma pixirica… Ou seja, essa espécie exótica está matando as espécies nativas. O resultado previsível é a diminuição de aves e de animais por falta de alimento, por modificação em seus habitats.

        Quando passo por outras terras também vejo, além do pinus, eucaliptos aos milhares. Tais cultivares em contextos assim são perniciosas, sobretudo quando interesses econômicos abafam estudos sérios prevendo que os danos são muitos e superiores aos lucros de alguns poucos indivíduos. Nesta época, a partir do mês de maio, regiões potenciais em araucárias (que produzem o delicioso pinhão) deixam de lucrar porque não têm mais essa espécie nativa. Em seus morros imperam pastos e plantios de eucaliptos e pinus. Só de vez em quando se avista uma araucária solitária, uma remanescente que vem da pré-histórica.  Na lógica capitalista, essas espécies exóticas estão vencendo. Assim escreveu o historiador Harari, em seu livro Sapiens: “Os luxos tendem a se tornar necessidades e gerar novas obrigações”. E assim continuamos a nossa onda devastadora. Perde todo mundo. Perde o planeta. De vez em quando eu me pego sonhando que estou entrando nesses espaços para derrubar essas plantas que sufocam as nossas espécies nativas, que  reduzem a biodiversidade. “Ah! Nas grimpas da Mantiqueira e na Serra do Mar eu sou um ecoterrorista!”.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

AS IMAGENS FALAM POR SI

















                Só as imagens creio que bastam para mostrar algumas  das belezas de Ibitipoca, um parque estadual em Lima Duarte, cidade de Minas Gerais. A outra porção da beleza é poder conviver com a família num lugar tão agradável (fazer trilhas, tomar banho na cachoeira, fazer novas amizades...). 

UM LUGAR POR AÍ





Bom é passear, andar por aí, se inteirar de outros costumes, apreciar locais onde a natureza pode até ser um pouco diferente daquela à qual estamos acostumados, saborear outras delícias culinárias, adquirir obras artesanais singulares, prestigiar outros aspectos culturais etc. Eu topo sempre!

Tempos desses, aproveitando um dia maravilhoso, eu e a esposa fomos até Pindamonhangaba conhecer a Fazenda Nova Gokula, na verdade, um território religioso dos hare krshina. Vamos dizer que se respira um pouco do misticismo indiano naquele espaço. Logo fui gostando do caminho, quando avistei casas simples mostrando o jeito simples da gente dali. Ao redor da via de alguns quilômetros, uma mata agradável, um rio atravessando um campo onde de vez em quando se avistava uma rês. Pensei: “lugar bom de se viver”. Por fim, vencido um bom trecho de árvores maiores, atravessamos a ponte e a entrada do lugar tão esperado. O carro ficou no estacionamento. Ali um templo, acolá uns pontos comerciais. Com uma fome considerável, fomos primeiro no restaurante vegetariano com iguarias diferentes e uma decoração essencial, tradicional da filosofia indiana, ou melhor dizendo: de uma pequena mostra da grande diversidade desse país tão distante.

Agora, faço questão de citar um pequeno trecho do Discurso da Servidão Voluntária, obra de Etienne de la Boétie, um pensador europeu que viveu entre os anos de 1530 e 1563:

“Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que o merece.”

A Nova Gokula, embalada pela mística de gurus formada ao longo de um longo tempo, oferece essa natureza, ensina-nos a se cultivar para ser virtuoso e demonstra ser perfeitamente possível tornar realidade as nossas melhores imaginações. Uma paz marcou as horas que ali passamos. A excelência das riquezas naturais e as belezas produzidas por mãos e mentes talentosas faz-nos viver mais pelo nosso amor. Que seja amor para todos! E, terminando por aqui, após uma vivência dessas, no espírito de Che Guevara ouso: “sejamos o pesadelo dos que querem roubar nossos sonhos”.