quarta-feira, 8 de agosto de 2018

A PEDRA DO RAIO

Olhando da janela, no sítio (Arquivo JRS)



          Roberto Zsoldos, meu amigo médico, depois de muito tempo em Ubatuba, resolveu, juntamente com a querida Cristina, também médica, ir morar na roça, em Natividade da Serra. Por isso nossa correspondência agora é de caipira para caiçara e vice-versa. Além de outros talentos, ele escreve bem a partir de uma sensibilidade bem singular. Agora, depois de refletir bastante, lançou a sua página – o suindaras.com.br – de onde eu retirei o seguinte texto. Prometo escrever mais coisas desse maravilhoso casal e do sítio deles que eu tanto adoro. Boa leitura. Ah! Grato, Roberto, pelas referências feitas à minha pessoa, pela amizade de vocês e pelas boas prosas.

           Estávamos eu, Pardini e o Seu Dito iniciando nossa subida ao Corcovado. Não o carioca mas o da Serra do Mar, o que domina o horizonte à oeste no litoral de Ubatuba.
          Quem não conhece Ubatuba não conhece o Corcovado, que óbvio! Mas não sei se todos que conhecem Ubatuba, seu litoral, já prestaram atenção aos contornos da serra, e àquela mole de pedra imponente que se destaca, para onde convergem os olhares e as vontades. Visto do centro da cidade, por exemplo, do descampado do aeroporto, apresenta-se como enorme massa em ângulo reto sobranceiro à linha geral que, variando de altitude para mais ou menos, oferece o limite superior desta cadeia montanhosa. Se o turista curioso procurar a rodovia litorânea e dirigir-se ao sul, ao realizar a descida do retão que termina na Praia Dura terá uma visão muito mais próxima dessa pedra, que desse ângulo se engrandece ainda mais, tornando-se majestosa. Dependendo do tempo, se nublado, mais ou menos, ou se com céu límpido, as impressões que sua visão nos dá variam, cada uma mais bela que a outra, não saberia dizer qual preferir. Continuando este passeio em direção ao limite sul do município de Ubatuba veremos outro perfil do Corcovado, afilado como se fosse a proa de gigantesca nau, nau de pedra.
          Era, minha e do Pardini, que muito rapidamente comprou a ideia da escalada, a primeira vez que empreendíamos tal. Depois desta subi diversas vezes o Corcovado, por diversas trilhas, com diversas companhias, em diversas situações. Após a vigésima subida parei de contar. Era meu destino de peregrinação. Religioso mesmo.
O Seu Dito era nosso guia. Já conhecia o caminho. Quem era, é, o Seu Dito? Um caiçara natural de Natividade da Serra que desde tenra meninice se acostumou, por necessidade e modo de vida, ao sertão. E imagine como era o sertão há 60 anos. Das muitas história que me contou, não sei de desta vez ou em outra ocasião: com idade de 10, ou 12 anos, foi encarregado por seu pai, ou foi sua mãe?, ir avisar em Caraguatatuba do falecimento de uma parente. Naquela época não havia a Rio-Santos. Não havia estrada; portanto não haviam ônibus, caronas, meio de se ir de bicicleta...não havia meios. E como fez? A pé, subindo e descendo morros no meio do mato. De Ubatuba a Caraguatatuba. Com aquela idade.
          Naturalmente era o Seu Dito, agora no passado, caçador. Por necessidade e depois por gosto. Não, não era, não é, um ser brutal, ou bruto. Era e é extremamente gentil, educado, não aquela educação escolar que não a tem, mas aquela de berço, a que tanto falta hodiernamente. Educadíssimo e seriíssimo, que não lhe venham com brincadeiras de mau gosto ou que ofendam sua moral. Não tem e não tinha o gosto em matar. Gostava de caçar. De passar dias enfurnado na selva ainda hoje pouco frequentada, com alimentação e vestes restritas, enfrentando as possíveis intempéries, possíveis acidentes, o ver a onça em seu lar, face a face. Não caça mais, por idoso e por ter-se convencido que rareiam os animais que em sua juventude abundavam.
          E Pardini? Dileto colega de estudos e de profissão, residente na Penha e amante de São Paulo. Adepto de correr para se manter saudável. E corria. Inteligente, esforçado, familiar. Algo gozador, perspicaz. Ainda o é, tudo isso. Meu amigo.
          Embora corresse não costumava subir montanhas. Subir é o termo exato. Subia-se ao Corcovado; não se o escalava. Possui mesmo um paredão rochoso que acredito dar coceira de vontades em alpinistas. Mas não fiquei sabendo de algum que o tenha escalado, por este paredão vertical de centena de metros. Embora tenha visto no cimo um grampo de alpinista incrustado na pedra. Talvez alguém tenha tentado um rapel?
          Mas, como dizia, estávamos eu, Pardini e o Seu Dito, iniciando a subida ao Corcovado, o de Ubatuba. Já tínhamos ultrapassado as discretas várzeas de dois pequenos rios que cortavam a mata, andando em fila indiana e ascendendo em um dos contrafortes. Conversando sobre temas diversos. O folego era muito bom, éramos jovens. Seu Dito nos mostrava seu conhecimento da mata, o nome de algumas árvores, praticamente todas com raízes tabulares que o solo é pouco profundo, logo atingindo a pedra, pedra de origem antiquíssima, pedra podre. A nutrição da vegetação era na verdade auto-nutrição: as folhas caídas e a umidade formavam uma grossa camada em degradação com odor característico de podridão; era a comida destas árvores e plantas misturadas com o solo superficialmente desintegrado. Lembro que uma das curiosidades que Seu Dito nos mostrou foi de planta pouco portentosa, na verdade matinho rasteiro à beira de córregos e que, mascada sua raiz, dava nítida sensação de formigamento na mucosa oral: dizia que usada pelos caiçaras como anestesia em caso de dor de dente; não acredito na anestesia, mas que a sensação era de era. Pode ser quer o Prof. José Ronaldo saiba algo a mais sobre.
          Mas, e então, não lembro o motivo, surgiu o assunto, titular, desta narrativa. A pedra do raio. Com certeza conversávamos sobre árvores caídas, especialmente árvores caídas por ação de raios. Bom, vocês sabem que raios podem derrubar árvores, às vezes calcina-las.
          E Seu Dito: “ ...quando cai o raio cai junto uma pedra, a pedra do raio, e é o que corta e derruba a árvore atingida...”, “ esta pedra tem um formato parecido com a lâmina de um machado, o que lhe dá este poder de partir a árvore”.
          Pardini imediatamente tentou esclarecer, usando naturalmente palavras coloquiais, a verdade científica. Mas logo atalhei assertivamente: “Se Seu Dito diz que é assim, assim é”. Isso ou algo semelhante. Meu raciocínio, intuitivo, foi – se assim acredita por que não? não é ele quem sabe se virar no mato, sobreviver em caso de necessidade? lá na cidade, na academia, a verdade é outra, certamente o é; aqui no sertão por que não dar-lhe a razão? Pardini logo entendeu e a conversa fluiu por outros temas não controversos.
           Chegamos ao pico, acampamos à moda dos caçadores, com teto de folhagens; foi tudo lindo, a paisagem, a noite, a descida.   
         Passaram-se muitos e muitos anos e já residindo no sertão, agora denominado roça, no município de Natividade da Serra, próximo ao bairro de Palmeiras, alguns quilômetros distantes da crista da serra do mar e do Corcovado, num sítio, eis que um belo dia Seu Dito traz-me uma pedra dizendo “achei uma pedra do raio”.
          Seu Dito é natural da região, uma década ou pouco mais em anos mais jovem que eu. Não tem estudo; tem vivência. Da roça, do trabalho. É um pouco assustado: só porque encontrou por acaso, por acaso não: viu uns urubus e sentiu um cheiro de carniça e foi ver de quem era o boi, ou vaca, morta numa barroca à beira da estrada -- aqui pertinho do sítio -- e acabou descobrindo um par de sapatos, vestidos, não quis saber mais de andar sozinho por ali. Ao que saiba não se descobriu a identidade do falecido, apenas que foi ajudado no seu morrer. Algum bando facinoroso achou bom lugar para descarte.
          Mas, voltemos àquele dia “achei uma pedra do raio”. E não só falou como mostrou-ma. Era realmente uma pedra, polida, algo gasta, achada durante preparo de uma cova. Era uma mão-de-pilão em pedra. Logo vi que era um achado de objeto fabricado pelo homem, possivelmente ou até pré-histórico. Guardei-o e a continuidade da história deste achado conta-lo ei em futuro próximo ou distante se assim me ensejar. O que agora desejo enfatizar é: a pedra do raio.
          Contei estes fatos, estes mesmos que os acabei de narrar, a um amigo, professor em Ubatuba, o José Ronaldo dito acima, dono e responsável por um excelente blog, o coisasdecaiçara. blogspot, sobre fatos e histórias caiçaras. Na próxima visita ao sítio trouxe-me ele um volume de Luis da Câmara Cascudo; se não me falha a memória Dicionário do Folclore Brasileiro. Resumindo: esta crença, desta maneira mesmo, com algumas variantes e enriquecimento, vêm-nos de Portugal desde a época de Cabral.
E ainda vive na visão do mundo, da natureza, de alguns de nossos patrícios, pelo menos os de idade mais avançada e menos conhecimentos formais; os novos com certeza já não mais assim enxergam, fruto do estudo, celular, internet etc..
          Com certeza isso renderia uma defesa de tese em antropologia: a persistência ainda que residual, em pleno século XXI, de um saber de mais de 500 anos atrás. Esse conhecimento, fruto da observação e sua interpretação da natureza, em breve estará para sempre perdido.


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