quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

ASSIM SE EXPLICA

Alguns sinais da escravidão em Ubatuba (Arquivo JRS)


               “Na escola da vida não há férias”.

               Com esta frase de para-choque de caminhão eu me inspirei a escrever a respeito desse tempo chamado férias escolares. No meu caso e de tantos colegas, a escola faz parte da escola da vida. Então, é impossível ficar totalmente de à toa, sobretudo quando consideramos  o conhecimento  tão necessário quanto a alimentação. Assim, férias é tempo de ler mais, de pesquisar, de escrever... De imaginar desafios para um novo ano letivo, onde a Educação continuará num plano inferior dos gestores públicos, dos nossos governantes. Alguém duvida?

               Neste tempo, repondo as energias e gastando outras, fiz algumas caminhadas. Uma delas foi a Trilha do Campo, no Sertão da Quina, depois de muitos anos. Daqueles companheiros de outrora, somente o primo Giovani retornou comigo. Desta vez, conosco foram: Estevan, Clóvis e Marquinho, cuja observação continua reflexiva: “Esta é a primeira trilha que faço que não vejo sinais dos seres humanos, não tem nenhum plástico, nenhuma lata. É limpa mesmo!”. Pois é! No entanto, trata-se de uma rota antiga, por onde os traficantes de escravos levavam suas mercadorias, evitando assim a estrada oficial, onde o fisco atuava. “Leve vantagem, leve...”. Foi também por esse caminho que o povo de Serra Acima (Vargem Grande, Palmeira...), os caipiras, comercializavam com os caiçaras, traziam suas mercadorias e levavam os produtos do mar. Desse modo, tantos caipiras se acaiçararam, sobretudo no Sertão da Quina, no Sertão do Corcovado e no Sertão do Mato Dentro (Marafunda e Ipiranguinha). Essa mistura no nosso espaço, essa experiência de convivência com Caetano, com Ana Faria, com Pedro Caipira, com o Zé Sibi, com Dona Tereza e Seo Pedro, “tudo gente da Serra Acima”, faz-me lembrar do sincretismo religioso tão marcante no Brasil, de quando os meus antigos clamavam por São Jorge (Oxóssi), Santa Bárbara (Iansã) e Santo Antônio (Ogum). Qual caiçara, numa trovoada brava, não escutava o “valei-nos Santa Bárbara”? Tudo isso porque o Brasil, desde seus primórdios, se fez, principalmente,  com braços dos negros trazidos como cativos do outro lado do oceano, da África, dando, inclusive,  a sua contribuição ao nosso ser religioso.
               Voltando à trilha, andando por onde séculos andou tanta gente, por onde sofreu tantos seres humanos vindos de longe para o trabalho, fiquei imaginando de onde eles tiravam forças para a vida. Cheguei à conclusão que valência era nos seus santos (orixás) da Mãe África. Quanta valência! Recordando das prosas com o saudoso Sabá, um negro caiçara da Praia da Enseada, “as coisas só não era pior porque Exu, moleque como ele só, assustava as pessoas pelos caminhos”. “E tinha alguma divindade assim , Sabá?”. “Lógico, Zezinho! Exu é um gozador, arteiro como muitos caiçaras que conheço, que são até parentes meus! É ele quem domina os caminhos. É o santo das andança, da movimentação, mas por ser tão brincalhão e arrenegado muita gente até confunde ele com o diabo”.  Quanta sabedoria naquele vendedor de peixes da minha criancice! A propósito, é dele esta contribuição: “Morrer faz parte da vida. A única certeza de quem nasce é que vai morrer. Por isso não adianta ter medo, nem se agarrar no fifó da vida. De nada vai adiantar”.    Ah! Quantos pensamentos, quantas recordações pelos caminhos desses nossos antepassados!

               Nisso, descendo calmamente, com o Giovani a recolher umas preciosidades para multiplicar em mudas, escutamos um grito, um chamado. “Ué, o que será que aconteceu?”. Não demorou muito, no sentido contrário vem um companheiro dizendo que se perdeu na trilha. “Impossível, como pode num lugar tão bem marcado?!?”. Sabe o que diria o Velho Sabá?  “Tem dedo de Exu nisso. Tem sim!”.

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