sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

MEU COMPADRE NILO

Eu e Nilo (Arquivo JRS)

               Dia 27 de janeiro de 2017 – Praia do Perequê-mirim. Depois de um café com parte da família Cabral Barbosa (Nilo, Luzita, Adriana e Aline), puxei uma prosa com o meu compadre Nilo.

                   - Nilo, fala do tio Dionísio.
               - Ele morava no Sertão [do Perequê-mirim], na casa do coronel Maciel. Era casado com a tia Luzia, tinha uma porção de filhos. Rodolfo, Judith, Joana... eram filhos. Os outros filhos foram embora para Santos, trabalhar. O Dito Henrique, pai do Ditinho, do Andrade... era genro dele, se casou com a minha prima Judith. O Antônio Julião foi casado com a Joana, mas logo enviuvou. Alguns eu não conheci porque foram trabalhar em Santos. O resto ficou aqui mesmo. Eu era criança... Eles foram para trabalhar em Santos, nos sítios de banana; casaram por lá e por lá ficaram. O Antônio Julião foi genro, casou com a Joana, a minha prima. Joana Cabral.
           
Uma pessoa entre o casal Dito Henrique e Judith Cabral. (Arquivo R. Ferrero)
                   -  E a respeito do Dito Henrique?
          - O Dito Henrique eu não conhecia. Eu conheci ele trabalhando. Depois que a primeira mulher morreu, a mãe do Ditinho Henrique, a minha prima Judith casou com o Dito Henrique. O Dito Henrique, o velho. Eu não conheci a primeira mulher dele. Ele vinha aqui quase todo dia. No domingo à tarde, o tio Dionísio ia na Enseada, passear na casa do genro, né? A minha tia Luzia ia na frente.

                     - E como era o lugar onde morava o tio Dionísio?
                - Na casa do tio Dionísio havia um pomar que estava assim de frutas, os galhos até arcavam. A lima, rapaz, daquela bitelona assim... Lima barata, que falam, e lima-embigo... Laranja para encher sacola. Um dia eu fui na casa dele e falei: “Oi tia, posso pegar uma laranja aí?”. “Ah, meu filho! Pode pegar à vontade!”. O tio Dionísio tinha saído. Os galhos estavam até arcados assim com tanto peso das laranjas. A casa deles era perto da cachoeira, tinha de passar uma ponte. Passava a ponte e já estava no terreno dele. Sempre estava assim de frutas! Cambucá, laranja... isso fazia lama no chão!

                 - E a respeito da Ilha Anchieta?
           - Na Ilha Anchieta era uma coisa; os presos vinham de barco, ficavam ali. A gente nem conhecia os presos. Mais tarde veio um monte de presos e ficavam à revelia, se revoltaram. Depois da revolução, alguns ficaram por aí. Agora, hoje acabou. Naquele tempo dava gosto; a gente ia botar a rede lá, pedia licença: “Tenente, a gente queria puxar uma redinha aí”. E ele respondia: “Ah, Pode!  Depois vocês deixam um terço da pescaria aqui, para fazer para os presos”. A gente deixava um terço lá. Tinha peixe em quantidade! Peixe-porco a gente nem queria falar de tanto que tinha. Em quantidade! Em quantidade! Ninguém pescava lá! Quando a gente ia botar rede, um lanço só, dois lanços, chapava a canoa e ia embora. Aí deixava um bocado de peixes para eles e ia embora. Tinha guarda na praia, em frente ao presídio...

                   - Todo esse pessoal pescava?
           - O Dito Henrique não pescava. Pescava garoupa ali pertinho, pertinho de casa. Trabalhava, tinha uma roça no Morro do Morcego, mas não era de se esforçar muito. Mas o meu tio, aquele que morava lá no Sertão, era trabalhador. Tio Dionísio Cabral, irmão do meu pai. Ele teve muitos filhos; trabalhavam na roça, entre os bichos (maribondo, borrachudo, mutuca...), mas não tinha para quem vender. As frutas apodreciam e não tinha para quem vender. Não tinha comércio, né? Ele tinha canoa, levava algumas frutas até São Sebastião. Iam remando. Quando tinha vento, iam no pano. Quando não tinha, iam remando. Levavam uns dois dias. Viajavam, viajavam... às vezes passavam direto para Ubatuba [cidade-centro] para vender umas frutas lá, para sobreviver. Vendiam farinha, mas não vendiam muito não. Naquele tempo tinha poucos moradores. No caso da farinha, se caísse um pouco de água já perdia. Era difícil! Muitos iam trabalhar em Santos. Iam a pé até Santos, trabalhavam, trabalhavam, recebiam um dinheiro lá e vinham embora depressa porque tinham roças para cuidar, tinham um bando de crianças. Nós éramos onze crianças. O meu pai trabalhou lá [em Santos]. Era a velha que ia, quando era mocinha, trabalhar na roça. Levava a criançada para ajudar enquanto o velho estava em Santos.

                   -  E as caçadas?
               - No inverno, eu ia buscar raposa para comer. Eu tinha dois cumbus. Quando ia visitar, trazia duas raposas. Colocava dentro de um saco e vinha. No tempo da chuva comia raposa. Comia raposa com mamão. Uma caldeirada com mamão verde! Ficava que nem uma galinha cozida. Gostoso, puta que pariu! Comia de tudo! Peixe nem se fala! Ficava encalhado na praia de tanto que tinha!

Observação: Judith Cabral dos Santos hoje nomeia uma escola, na Rua Benedito Henrique, no bairro do Perequê-mirim. Ou seja, o saudoso casal de caiçaras continuam juntos.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

RENOVANDO

Quanta energia neste toco brotando! (Arquivo JRS)


CAIU

Caiu uma folha
(da querida jabuticabeira).

Não podia ser os opressores?
Não podia ser toda essa máquina estrutural infernal
(das filas dos indigentes, de tantos desempregados...)?
Não podia ser os deuses alienantes?
Não podia ser as religiões que justificam tais situações?
Não podia ser as tantas farsas dos meios de comunicação?

Caiu uma folha!

Catei e guardei
Querendo ser um símbolo de nossas lutas...
Até que o dia isso tudo caia
Numa luta-alegria.

Caiu uma folha
(da querida jabuticabeira).

Mas eu espero outra estação!
Uma estação maravilhosa,
Onde estes teus galhos desnudos
Mostrarão uma árvore frondosa.

Caiu uma folha...

Cairão outras ainda!
Uma pequena flor no meu quintal (Arquivo JRS)

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

UM LUGAR NA MEMÓRIA

Armazém da Praia Dura (Arquivo Ubatuba Antiga)
                           Assim que passou a estrada Caraguá - Ubatuba, por volta de 1955, uma venda (armazém de secos e molhados) se instalou ali, na margem da estrada, na entrada do Corcovado. Hoje, quem reparar bem, verá um velho cambucazeiro e uma pequena área plana. Era o socorro em alguma emergência ao povo que morava por ali (Rio Escuro, Folha Seca, Fortaleza, Praia Brava, Corcovado...).  Quantas vezes a gente saía da Praia da Fortaleza para comprar simples produtos. "Vai lá, na Praia Dura, compra uma lata de leite em pó e um litro de querosene". Depois de, no mínimo três horas, a gente estava de volta com as encomendas. Por volta de 1970, o ponto comercial era muito frequentado pelos cortadores de pedra e pelos caminhoneiros, pois logo ali atrás, por muitos anos foi extraído granito verde. Lembro do saudoso Francolino chegando encharcado de suor, carregando um saco de farinha de mandioca desde o Sertão do Corcovado.Na venda ele trocava de camisa, ajeitava o chapéu e esperava a condução para ir vender seu produto na cidade. 

Contribuições:

Esse armazém pertenceu ao meu padrinho e madrinha de crisma, Sr. Pedro Mateus e Isabel, pessoas maravilhosas, saudades boas de quando vindo a pé dá Fortaleza, tomávamos fôlego eu e minha avó Maria Teresa para então pegarmos o ônibus para Caraguá. Excelente, Zé! Grato pelas boas e inesquecíveis lembranças. (Cláudio)


O armazém pertencia aos meus queridos compadres, Isabel e Pedro Mateus, Marina e Periquito, filha do casal e padrinhos também. Linda lembrança, Zé. (Nádia)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

SE TECENDO PELAS COISAS

Meu quintal (Arquivo JRS)

              
- Que é isso, vovô?
- É capa de embigo, não tá vendo?
- De onde veio?
- Dali,ó, daquele cacho de santomé. Mais um mês já serve pra pirão, mas vô escorá senão não pode com o peso.
- Será que carece, vovô?

Arte em sossego (Arquivo JRS)
Arte em sossego (Arquivo JRS)


- Qué isso, meu neto?
- É máscara de totoa, do jarobá.
- Tá bonita,credo!
- Não gostou, vovô? Mas ainda não tá acabada.
- Quando era criança, escolhia das largas pra descê o morro, no sapezá. Você tamém fez isso, né?
- Fiz sim, vovô.

Arte do Sr. Tosio Honda (Arquivo JRS)

Arte do Sr, Tosio Honda (Arquivo JRS)

- E essa outra coisa?
- É uma escultura, vovô.
- Nunca vi iguá. Parece até o vosso tio plantando bananeira.
- É japonês. Chama-se tosa matsuri, faz parte da cultura kochi-ken.
- Explica melhor, minino.
- É uma cultura de uma ilha do Japão por nome de Shikoku.
- Credo! Tomara que o compadre Chico Lopes não tenha escutado isso!
- E quem fez isso, assim tão bonitinho?
- Ah! Foi um japonês, pai da minha amiga Mirtes (Harumi Honda). Ele já é falecido.
- Ô dó. Qual o nome dele?
- Tosio Honda, vovô.
- Ô dó! Dá xarope de guaco.
- Na verdade, vovô, pelo que a minha amiga Mirtes explicou, tosa matsuri é um movimento para preservar, para manter vivas as tradições, seus costumes e histórias. No Brasil, os imigrantes japoneses, aqueles da mesma região do Sr. Tosio (lê-se Toshio), conterrâneos de Kochi-ken, da mesma cultura, para preservar e divulgar suas tradições e cultura, fundaram a Associação dos Provincianos de Kochi no Brasil (Kochi-Kenjinkai), em 1953. A sede atual, em São Paulo (Rua dos Miranhas, 196 – Pinheiros), foi construída com o apoio do governo da província de Kochi.
- Então... me diga qual a razão dessa imagem?
- Ah! É uma escultura plantando bananeira, como bem disse o senhor. Só que, reparando bem, vemos que ele usa uma máscara por trás da cabeça. É feia. Dizem que, na agricultura, bem antigamente, na Ilha de Shikoku,  as pessoas faziam assim, confeccionavam máscaras e desfilavam com elas como se fosse um festival, um carnaval nosso, na intenção de espantar os maus espíritos que pudessem atrapalhar a lavoura, a colheita. Manter viva-memória disso é tosa matsuri.
- Muito interessante, Zezinho!
- E tem mais vovô:  o povo dessa cidade tem o maior orgulho de um de seus filhos, por nome de Sakamoto Ryoma, líder do movimento que transformou o Japão em um país moderno.
- E tem mais! Ele tornou-se um exilado ao deixar Tosa (atual Kochi) aos 28 anos. Mesmo nessa condição, ele andou pelo Japão divulgando suas ideias, para acabar com o sistema feudal. Graças a ele, houve aliança entre os dois clãs mais poderosos da época, evitando uma guerra civil. Morreu assassinado, em 1867, quando completava 33 anos. É patrono da Marinha Imperial Japonesa.
- Que beleza, né? Então...
- Gostou, vovô?
- Gostei sim. Agora faz o seguinte: pega essa sua máscara, sai pela rua e bota pra corrê essa gente que é sem-noção. 

- Boa ideia, vovô. Viva tosa matsuri!
- Viva tosa matsuri!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

ASSIM SE EXPLICA

Alguns sinais da escravidão em Ubatuba (Arquivo JRS)


               “Na escola da vida não há férias”.

               Com esta frase de para-choque de caminhão eu me inspirei a escrever a respeito desse tempo chamado férias escolares. No meu caso e de tantos colegas, a escola faz parte da escola da vida. Então, é impossível ficar totalmente de à toa, sobretudo quando consideramos  o conhecimento  tão necessário quanto a alimentação. Assim, férias é tempo de ler mais, de pesquisar, de escrever... De imaginar desafios para um novo ano letivo, onde a Educação continuará num plano inferior dos gestores públicos, dos nossos governantes. Alguém duvida?

               Neste tempo, repondo as energias e gastando outras, fiz algumas caminhadas. Uma delas foi a Trilha do Campo, no Sertão da Quina, depois de muitos anos. Daqueles companheiros de outrora, somente o primo Giovani retornou comigo. Desta vez, conosco foram: Estevan, Clóvis e Marquinho, cuja observação continua reflexiva: “Esta é a primeira trilha que faço que não vejo sinais dos seres humanos, não tem nenhum plástico, nenhuma lata. É limpa mesmo!”. Pois é! No entanto, trata-se de uma rota antiga, por onde os traficantes de escravos levavam suas mercadorias, evitando assim a estrada oficial, onde o fisco atuava. “Leve vantagem, leve...”. Foi também por esse caminho que o povo de Serra Acima (Vargem Grande, Palmeira...), os caipiras, comercializavam com os caiçaras, traziam suas mercadorias e levavam os produtos do mar. Desse modo, tantos caipiras se acaiçararam, sobretudo no Sertão da Quina, no Sertão do Corcovado e no Sertão do Mato Dentro (Marafunda e Ipiranguinha). Essa mistura no nosso espaço, essa experiência de convivência com Caetano, com Ana Faria, com Pedro Caipira, com o Zé Sibi, com Dona Tereza e Seo Pedro, “tudo gente da Serra Acima”, faz-me lembrar do sincretismo religioso tão marcante no Brasil, de quando os meus antigos clamavam por São Jorge (Oxóssi), Santa Bárbara (Iansã) e Santo Antônio (Ogum). Qual caiçara, numa trovoada brava, não escutava o “valei-nos Santa Bárbara”? Tudo isso porque o Brasil, desde seus primórdios, se fez, principalmente,  com braços dos negros trazidos como cativos do outro lado do oceano, da África, dando, inclusive,  a sua contribuição ao nosso ser religioso.
               Voltando à trilha, andando por onde séculos andou tanta gente, por onde sofreu tantos seres humanos vindos de longe para o trabalho, fiquei imaginando de onde eles tiravam forças para a vida. Cheguei à conclusão que valência era nos seus santos (orixás) da Mãe África. Quanta valência! Recordando das prosas com o saudoso Sabá, um negro caiçara da Praia da Enseada, “as coisas só não era pior porque Exu, moleque como ele só, assustava as pessoas pelos caminhos”. “E tinha alguma divindade assim , Sabá?”. “Lógico, Zezinho! Exu é um gozador, arteiro como muitos caiçaras que conheço, que são até parentes meus! É ele quem domina os caminhos. É o santo das andança, da movimentação, mas por ser tão brincalhão e arrenegado muita gente até confunde ele com o diabo”.  Quanta sabedoria naquele vendedor de peixes da minha criancice! A propósito, é dele esta contribuição: “Morrer faz parte da vida. A única certeza de quem nasce é que vai morrer. Por isso não adianta ter medo, nem se agarrar no fifó da vida. De nada vai adiantar”.    Ah! Quantos pensamentos, quantas recordações pelos caminhos desses nossos antepassados!

               Nisso, descendo calmamente, com o Giovani a recolher umas preciosidades para multiplicar em mudas, escutamos um grito, um chamado. “Ué, o que será que aconteceu?”. Não demorou muito, no sentido contrário vem um companheiro dizendo que se perdeu na trilha. “Impossível, como pode num lugar tão bem marcado?!?”. Sabe o que diria o Velho Sabá?  “Tem dedo de Exu nisso. Tem sim!”.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

ENCANTOS ALÉM DO MAR

Folheto cultural - início de 1990 (Arquivo JRS)

               Eu nasci na Praia do Sapê, onde a vida era bem simples e a gente vivia praticamente com os recursos que a terra oferecia. Meus parentes se viravam nesse meio ambiente, meus pais nos sustentavam assim. O turismo começava a aparecer, os primeiros loteamentos ofereciam outras profissões (servente, cortador de pedra, pedreiro, carpinteiro, caseiro...).
               Os primeiros turistas procuravam as coisas que caracterizavam os caiçaras: queriam saber sobre os peixes, os mariscos... Queriam aprender nossa culinária, pescar nas pedras e no largo, comer farinha de mandioca, beiju, piché etc. Ah! Foi também aí que começou a valorização de nossas artes. Virou artesanato tudo aquilo que era feito por nós para viver nesse ambiente. Eram os nossos recursos.
               Um artesanato muito procurado foi a cestaria. Sabe aqueles balaios, samburás, tipitis e peneiras que tanta serventia tinha à família caiçara? Pois é! Tudo passou a ser mais uma fonte de atrativo turístico e de renda.  Meus avós eram bons nisso! Tia Terezinha, lá no Sertão da Quina era boa nisso! Mariana e seus familiares produziam cestos maravilhosos! Pedro Brandão arrasava em seus tipitis!
               Cestaria é arte primitiva, herança dos antigos habitantes desta terra (Ubatuba). Foi preservada porque era essencial na lida diária. Tudo a partir do taquaruçu, da taquara-poca, da timbopeva, do imbé  e de outras matérias que se encontram  na nossa mata, pelas picadas da serra.  Não é fácil escolher, raspar, destalar e abrir em fitas o taquaruçu, mas deveria ser mantida essa arte, esse traço cultural nosso. Teve um tempo em que os responsáveis pelo setor cultural da cidade investiram mais nessa arte, divulgaram, catalogaram, promoveram exposições.  Até a Tia Terezinha fez parte de um curso oferecido pela Promoção Social de Ubatuba às pessoas interessadas na tradição e na cultura caiçara!

               Resumindo, eu gostaria que houvesse mais investimentos em tudo aquilo que constitui encantos além do mar. Assim, quem sabe, mais gente vai valorizar coisas, puxar pelas memórias que estão morrendo, sendo engolidas pela massificação cultural da atualidade. A cestaria é um aspecto decorrente da nossa galinha dos ovos de ouro, do nosso entorno ambiental que gerou a cultura caiçara. Vamos pensar nisso, retomar o fio da meada que atende por turismo cultural?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

PRIMEIRO DE ABRIL!


Mirtes - HARUMI HONDA - Beleza de espírito, tal como a saudosa mãe. (Arquivo JRS)

               Dona Helena (Hamako Nishi Honda) era espirituosa, gostava de escutar e de contar passagens alegres. Era bem animada. No texto seguinte, vemos que foi assim desde a infância, quando vivia no litoral paulista, no sul, na pesca da manjuba. 

A pinga
               Tinha um senhor que pegava a canoa de casa para pegar os peixes que estavam no covo. O covo é mais ou menos assim: 
O covo - Reprodução do CADERNO DE HAMAKO (Arquivo JRS)


           Todos os dias, de manhã e à tarde ele vinha em casa para beber a pinga.     No dia primeiro de abril ele veio como sempre para beber pinga. Eu já tinha deixado a pinga misturada com  água, meia a meia. Ele veio e pediu a pinga. Daí, eu como sempre, coloquei o copo a ele que estava acostumado a tomar num gole só. Quando ele acabou de beber, ficou tão bravo comigo, mas eu ria tanto que ele também começou a rir. Depois eu falei para ele que era primeiro de abril.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

ESTAMOS VIVOS!

Roteiro turístico 1951 (Arquivo JRS)

Boi em exposição na Fundart (Arquivo JRS)
   
                        Não tem como deixar de lado uma história que sempre está vindo à tona, como esta do Boi de Conchas! 

               Como é importante cada elaboração cultural! Imagine a sabedoria dos povos maias, na América Central, ser tão respeitada mesmo depois de tantos séculos da dominação dos povos europeus, das culturas de massas que dominam a mídia! Hoje estamos, de acordo com os conhecimentos dessa cultura indígena, iniciando um novo ciclo.
               É meu desejo que repensemos, neste novo ciclo, todo os nossos hábitos, sobretudo aqueles que são destrutivos em qualquer aspecto da vida. As culturas estão aí para nos ajudar. Cada lenda, cada causo, “cada palha de trança tem uma função”, conforme dizia a vovó Eugênia a fim de que caprichássemos nas escolhidas, esticadas, apertos e dobraduras. Então, já que o mundo continua, vamos nos apoiar no Júlio Mendes para avançar em...

               A lenda do  Boi de Conchas (II)

               Alguns adolescentes, numa manhã radiante, rente aos barcos no Saco da Ribeira, passaram a especular sobre a lenda do Boi de Conchas. O assunto surgiu porque, na rede social, alguém postou vagamente a respeito de cultura popular, de saci e de causos. A história do boi do Cipriano também apareceu, mas muito vagamente.  Eu, na convivência com o Júlio, depois de escutar suas músicas e as manifestações em tantas ocasiões, assim resumi aos alunos:
               A lenda do Boi de Conchas vem do boi do Cipriano, gente de ”Serra Acima”, de lugar que já pertence ao Vale do Paraíba.
 Depois de receber o nome de Ratambufe, lá no Bairro Alto, um lugar entre a Fazenda Santa Virgínia e Catuçaba,  de onde veio há muito tempo o “Seo Lica” e tantos outros que ajudaram a fazer a cidade de Ubatuba,  o animal começou a escutar as promessas de que um dia veria o mar.
               Ratambufe foi criando imagens fantásticas do mar e de seus seres, desde as conchas até as belas sereias com seus cantos. Vivia sonhando com o dia em que tudo aquilo se realizaria. Porém, tudo era “conversa pra boi dormir”. Afinal, o tropeiro Cipriano era comerciante e esperava lucrar bem com a beleza e o porte de muitas arrobas do Ratambufe. Por isso que, após o ocorrido, ele se arrependeu muito em ter trazido o boi da “Serra Acima”, do seu lugar. Custou muito tempo para aceitar que a sua mensagem, que as suas promessas foram as responsáveis pelo desastre com o animal. Sorte nossa!
               - Sorte nossa? Como assim? Vários dos presentes exigiram explicações.
               Digo que, com o acontecido, nós ganhamos mais uma contribuição para a nossa cultura. O que se conta hoje é que o boi, a partir de certo ponto, descendo pela rua principal da cidade, não obedecia mais aos comandos de seu dono. Tudo que parecia atraí-lo era o mar, o barulho de suas marolas e o seu cheiro. Chegando à Praia do Cruzeiro, estacou na areia grossa, como se tivesse hipnotizado. O seu dono berrava, querendo conduzi-lo ao  matadouro, mas de nada adiantava. Por quanto tempo ele ansiava por isso?!
               Muitos dizem que se ouvia uma espécie de canto de sereia atraindo o animal mar adentro. E assim se deu: Ratambufe, com a mesma tranquilidade de uma rês que  vai para o pasto, foi se enfiando nas águas claras daquele dia de outono. O mar, prazerosamente, o engoliu. “Não se sabe se morreu ou se nasceu”, dizia o vô Lindolfo, o seresteiro. Dele ninguém achou parte alguma.
               Foi o Zé Capão e o próprio vô Lindolfo os primeiros a darem prosseguimento no causo, na lenda do Boi de Conchas. Testemunharam, num fim de tarde, num serão,  a saída do animal do mar, no mesmo ponto por onde adentrou no território oceânico. Vinha coberto de conchas, todo radiante, ladeado por seres marinhos, sobretudo por cavalos marinhos. Uma melodia inigualável envolveu tudo enquanto ele permaneceu na linha do lagamar, inspirando os seresteiros daquele tempo (da primeira metade do século XX). Depois, na mesma tranquilidade, retornou com seu séquito ao Reino de Iemanjá, onde São Pedro provê o necessário aos pescadores.

 Ao afundar no belo mar, Ratambufe plantou o espanto, a admiração, as crenças e descrenças. Ainda resta hoje, cada vez mais forte,  um boi encantado pelo mar como fonte de inspiração aos nossos cantadores e contadores da cultura caiçara.

domingo, 8 de janeiro de 2017

DONA HAMAKO E OS SINAIS

Arte da Maria Eugênia (Arquivo JRS)

      Não é de hoje que os pescadores observam os sinais anunciadores ( das tempestades, das coletas, dos cardumes que se aproximam para garantir tempo de fartura...). E as gaivotas, no CADERNO DE HAMAKO...  Tão sensível a Dona Helena (Hamako)! Na hora pensei na minha filha Maria Eugênia e lhe encomendei um desenho para homenagear essa grande mulher que tantas coisas registrou em seu caderno. Valeu, filha!

A gaivota
               Quando as gaivotas ficam agitadas, voando em cima da água, dá para saber que tem manjuba indo rio acima. Era quando meu pai ia à praia da frente para pegar manjuba. Nessa hora pega muito! Nem que seja noite, a gente ficava sabendo. Logo o meu pai estava se aprontado para a pescaria.

               Como é gostoso pegar bastante manjuba! Tinha vez que cada redada enchia vinte latas. No dia seguinte tinha muito trabalho, mas era gostoso.

sábado, 7 de janeiro de 2017

GRANDE ISAÍAS! GRANDE ALCINA!

Ubatuba - Roteiro turístico - 1951 (Arquivo JRS)

               O amigo Júlio Mendes, no mês de maio, na espera de uma tainha assada, me enviou esta preciosidade de poesia. Publico agora em homenagem ao casal Isaías e Alcina, os responsáveis pela existência do Júlio, grande artista popular caiçara, pai do Ranchinho Caiçara, do Boi de Conchas e de tantas outras iniciativas.  Que em 2017 possamos fazer mais pela cultura caiçara. Viva o Grupo Cantamar!


Mês de maio vem chegando

Vem trazendo ar de frio

Trás também sabiá uma

E tainha em cardume

Para a vida caiçara

Era o que interessava

A tainha em cardume

Que do sul aqui chegava

Athanásio e seu Alfredo 

Já estavam a esperar

Com canoas e suas redes

Na beira do lagamá

No alto do Curuçá Zé Vieira a espiar

Quando o mar se refolhar

O seu búzio vai tocar

Foi depois de uma semana

Que o mar se refolhou

Era um grande cardume

De tainha que boiou

Foi ao sol de meio dia

Que a vila escutou

O búzio de Zé Vieira

Que do morro ecoou

Euforia foi tão grande

Que chapéus pro ar voaram

Todo mundo festejava

A tainha que chegava

Braços fortes e mãos seguras

Em canoas a remar

Ruma a proa remador

Ao cardume a saltitar

Larga a rede, bate a troia

Malha o peixe a sobejar

Puxa o cabo companheiro

Tá na hora de fechar

Nunca vi tão grande lanço

É pra mais de oito mil

Peixe seco vai durar

Até o mês de abril

A tainha é sagrada

Traz na escama a imagem

Da Divina nossa mãe Senhora Aparecida

Ao divino criador

Rezo agora e beijo o mar

À São Pedro pescador

Umas mil vou ofertar

Vai ter tainha assada

Na festa do arraiá

Ova frita, concertada...

Muito Xiba vão dançar

Isso que aconteceu

Já se faz bastantes anos

Dos que viram tal fartura

Hoje tem setenta anos

Esses versos que eu faço

É só para lembrar

Dos costumes dessa terra

De outrora, da fartura

Fotografia ainda existe

Graças a seu Edson Athanásio

Que preserva com carinho

A memória ubatubana

Se sobrar um dinheirinho

Peço aos nossos governantes

Que preservem essas fotos

Como grande patrimônio

Patrimônio que relembra

A memória de um povo

Povo que não tem memória


Fica ao léu a desvairar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

PERDEMOS O JOÃO

Nosso saudoso João (Arquivo JRS)


               Nasceu João Roberto Ultramari,  descendente dos italianos que fundaram a Colônia do Piaguí. Até hoje lá estão muitos deles, em Guaratinguetá, plantando arroz nas margens do rio Paraíba. Outros, tais como o nosso estimado João, partiram para os estudos e seguiram outros caminhos.
               Da escolinha da roça, onde um par de sapatos e duas peças de roupas precisavam durar o ano inteiro, João alcançou a faculdade, fez o mestrado na língua inglesa, passou alguns períodos estudando nos Estados Unidos. Trabalhou, trabalhou sempre! Agora, mais folgado e desfrutando dos esforços empreendidos, chegou a doença. Aguardava um fígado para transplante, mas não houve tempo, a doença avançou mais rápido.
               Conheci o João há mais de vinte anos. Ele e minha esposa eram amigos desde a infância. Logo me encantei pela sua sinceridade, por suas conversas inteligentes, por sua vontade de estudar sempre e pela amizade sincera que devotou à minha casa. Creio que sempre foi feliz em nosso lar.  Vivemos bons momentos, com certeza! O João sempre tinha novidades e até se admirava de seus próprios desafios. Topou trilhas comigo (a primeira foi até a Praia das Sete Fontes, onde conheceu o Antônio Neves e se encantou com a acolhida da Mercedes), sendo a mais marcante a do Saco das Bananas (juntamente com Juba e Júlio), onde a salvação contra as dores musculares foi o álcool com erva baleeira. Vencemos todas! Mas a morte é invencível, amigo!
               A nossa passagem do ano foi em seu velório. Lá fora os fogos espocavam.  Seus poucos parentes estavam por ali. Os outros eram amigos desde muito tempo. Um tanto daquelas pessoas eram colegas professores. No fundo, amigo, o nosso ser fica resumido em pouca coisa. Todo o seu conhecimento, a sua sensibilidade e a sabedoria acumulados agora ficarão na sua tese de mestrado e em nós que convivemos com você. Só assim somos imortais!

               Faleceu nosso amigo João.  João Roberto Ultramari: assim escrevi no caderno de registros lá do cemitério para que o amigo coveiro possa fazer uma placa indicativa. Eu ainda não tinha começado um ano sepultando o corpo de um amigo. Na verdade, era mais que um amigo! Ah! Sabe daquelas amizades de sentar no banco olhando o mar, conversando de tudo e rindo muito?!? Coisa linda é amizade assim!