sábado, 25 de abril de 2015

O HOMEM DA MALETA

Igara açu, a canoa grande do Carneirinho, no jundu da Praia do Acaraú. (Arquivo JRS)
                   Marulhos - Companhia teatral e Memória Bairro Escola: bem-vindos ao blog!

               Hoje, depois de curtir bem a família, de ver o meu filho tão bem entrosado com alguns de seus  colegas adolescentes, pensei nos meus colegas de outros tempos, quando tínhamos um pouco mais de quinze anos. Logo me veio à mente a estimada Fátima que sempre tinha suas histórias, o querido primo Cláudio, a saudosa Margareth e outros que há tempos não tenho notícias.
               A Fátima, agora curtindo o seu recanto e o seu companheiro, foi a mais ousada da nossa turma, publicando as suas gostosas crônicas reunidas no livro Arrelá Ubatuba. De acordo com o Luiz Moura, editor de O Guaruçá, ela “é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local”. Hoje, cheio de saudade dessa amiga desde a adolescência, resolvi apresentar, de sua autoria...

                    O homem da maleta
               Numa tarde de agosto, as refegas de vento lambiam o lagamar da praia. O mandiocal se desdobrava simultaneamente como um balé de ramas. O bambuzal do caminho da bica chiava e dava estalos. O capim melado se dividia em touceiras, e o mar ficou crespo como uma saia de babados de renda.
               O corre-corre da vizinhança era abafado pelo barulho das vasilhas despencando dos tendais. A galinhada se refugiava às pressas no galinheiro. O tempo estava ficando feio. O sudoeste estava vindo sem piedade, nem clemência. Mais algumas horas ele chegaria.
               No rancho de canoas, meu avô ajeitava seus apetrechos de pesca. Tudo teria de estar certinho em seu lugar para ficar protegido da tempestade que se formava. Foi aí que sentiu a falta de um rolo de canoa que esquecera na praia. Saiu para buscar. Uma nuvem de areia encobriu-lhe o rosto. Refeito da visibilidade, deparou com um vulto de um homem que vinha praia abaixo carregando uma maleta. Quem poderia ser àquela altura? Esperou o forasteiro se aproximar. Usando da hospitalidade caiçara, o inspetor de quarteirão fez com que o homem entrasse no rancho e se refizesse do cansaço de andar na praia e contra o vento.
               Já refeito, este senhor expôs o seu caso. Precisava que o meu avô o levasse de canoa para ser mais rápido. Impossível, falou o velho pescador. Seria suicídio essa aventura. Nem por todo dinheiro do mundo. Eu exijo, respondeu o homem. É em nome da Pátria. E o senhor, como um representante da Guarda Nacional, tem que obedecer. Meu avô com sua simplicidade e calma, olhou para o mar, olhou para o céu, olhou para o caminho que dava para a sua casa, como quem quer se despedir, e disse:
               - O senhor é quem sabe, depois não vá dizer que eu não avisei. E seja lá o que Deus quiser. Botou a canoa para baixo, mandou o homem se ajeitar no fundo da piroga, pulou na proa equilibrando-se como podia para não virar. A luta começou.  O vento jogava de um lado, a força do remo do outro. Quando chegaram na ponta que dava para a Praia Brava do Sul, o homem quis ajudar. Começou a remar com as próprias mãos. Não deu outra. A canoa alagou e virou de boca para baixo. Meu avô mais do que depressa agarrou o homem pelo paletó e ficaram os dois grudados junto ao casco que ainda boiava. E assim ficaram até o mar jogar os dois em cima de um parcel.
               Salvos pela graça de Deus, tomaram o caminho de volta para casa. O jeito foi hospedar o homem até o tempo se acalmar. Todo esse tempo o estranho não abriu a boca para dizer um Ah!

               Passou a tempestade. O dia amanheceu ensolarado. Meu avô, curioso que estava, abriu a valeta que ainda estava encharcada. Tirou os papéis que estavam ilegíveis e por cortesia pediu para as crianças estenderem em cima das pedras do quintal para que secassem. Logo depois o home acordou, passou a mão na maleta, recolheu os papéis ainda úmidos e foi-se embora. Assim como chegou, mudo, depois do banho, foi embora calado. Nem até logo deu.

Um comentário:

  1. Grande abraço carinhoso primo José, e parabenizo vc e todos os demais divulgadores de nossas tradições caiçaras. (Claudio Santos, nascido próximo do "lagamar" da praia da Fortaleza, abaixo da "badeja", conhecedor do "causo da luz do Oliveira", apreciador de um bom peixe com banana verde, guaiás, sacuritás, mariscos, sapinháuas e etc. rsrsrsrsrsrs nunca esquecer do bom ritmo da "chiba").

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