Igara açu, a canoa grande do Carneirinho, no jundu da Praia do Acaraú. (Arquivo JRS) |
Hoje,
depois de curtir bem a família, de ver o meu filho tão bem entrosado com alguns
de seus colegas adolescentes, pensei nos
meus colegas de outros tempos, quando tínhamos um pouco mais de quinze anos. Logo
me veio à mente a estimada Fátima que sempre tinha suas histórias, o querido
primo Cláudio, a saudosa Margareth e outros que há tempos não tenho notícias.
A
Fátima, agora curtindo o seu recanto e o seu companheiro, foi a mais ousada da
nossa turma, publicando as suas gostosas crônicas reunidas no livro Arrelá Ubatuba. De acordo com o
Luiz Moura, editor de O Guaruçá, ela “é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua
geração a escrever sobre temas do cotidiano local”. Hoje, cheio de saudade dessa
amiga desde a adolescência, resolvi apresentar, de sua autoria...
O homem da maleta
Numa tarde de agosto, as refegas de vento
lambiam o lagamar da praia. O mandiocal se desdobrava simultaneamente como um
balé de ramas. O bambuzal do caminho da bica chiava e dava estalos. O capim
melado se dividia em touceiras, e o mar ficou crespo como uma saia de babados
de renda.
O corre-corre da
vizinhança era abafado pelo barulho das vasilhas despencando dos tendais. A
galinhada se refugiava às pressas no galinheiro. O tempo estava ficando feio. O
sudoeste estava vindo sem piedade, nem clemência. Mais algumas horas ele
chegaria.
No rancho de
canoas, meu avô ajeitava seus apetrechos de pesca. Tudo teria de estar certinho
em seu lugar para ficar protegido da tempestade que se formava. Foi aí que
sentiu a falta de um rolo de canoa que esquecera na praia. Saiu para buscar.
Uma nuvem de areia encobriu-lhe o rosto. Refeito da visibilidade, deparou com
um vulto de um homem que vinha praia abaixo carregando uma maleta. Quem poderia
ser àquela altura? Esperou o forasteiro se aproximar. Usando da hospitalidade
caiçara, o inspetor de quarteirão fez com que o homem entrasse no rancho e se
refizesse do cansaço de andar na praia e contra o vento.
Já refeito, este
senhor expôs o seu caso. Precisava que o meu avô o levasse de canoa para ser
mais rápido. Impossível, falou o velho pescador. Seria suicídio essa aventura.
Nem por todo dinheiro do mundo. Eu exijo, respondeu o homem. É em nome da
Pátria. E o senhor, como um representante da Guarda Nacional, tem que obedecer.
Meu avô com sua simplicidade e calma, olhou para o mar, olhou para o céu, olhou
para o caminho que dava para a sua casa, como quem quer se despedir, e disse:
- O senhor é quem
sabe, depois não vá dizer que eu não avisei. E seja lá o que Deus quiser. Botou
a canoa para baixo, mandou o homem se ajeitar no fundo da piroga, pulou na proa
equilibrando-se como podia para não virar. A luta começou. O vento jogava de um lado, a força do remo do
outro. Quando chegaram na ponta que dava para a Praia Brava do Sul, o homem quis
ajudar. Começou a remar com as próprias mãos. Não deu outra. A canoa alagou e
virou de boca para baixo. Meu avô mais do que depressa agarrou o homem pelo
paletó e ficaram os dois grudados junto ao casco que ainda boiava. E assim
ficaram até o mar jogar os dois em cima de um parcel.
Salvos pela graça
de Deus, tomaram o caminho de volta para casa. O jeito foi hospedar o homem até
o tempo se acalmar. Todo esse tempo o estranho não abriu a boca para dizer um
Ah!
Passou a
tempestade. O dia amanheceu ensolarado. Meu avô, curioso que estava, abriu a
valeta que ainda estava encharcada. Tirou os papéis que estavam ilegíveis e por
cortesia pediu para as crianças estenderem em cima das pedras do quintal para
que secassem. Logo depois o home acordou, passou a mão na maleta, recolheu os
papéis ainda úmidos e foi-se embora. Assim como chegou, mudo, depois do banho,
foi embora calado. Nem até logo deu.
Grande abraço carinhoso primo José, e parabenizo vc e todos os demais divulgadores de nossas tradições caiçaras. (Claudio Santos, nascido próximo do "lagamar" da praia da Fortaleza, abaixo da "badeja", conhecedor do "causo da luz do Oliveira", apreciador de um bom peixe com banana verde, guaiás, sacuritás, mariscos, sapinháuas e etc. rsrsrsrsrsrs nunca esquecer do bom ritmo da "chiba").
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