terça-feira, 3 de março de 2015

MUSICALIDADE CAIÇARA


Meu povo da Praia Grande do Bonete (Arquivo JRS)

                A década de 1980 terminou com um belo trabalho da Kilza Setti sob o título de Ubatuba nos cantos das praias. Foi o seu doutoramento em Antropologia Social.  Após 35 anos, vale a pena reler os detalhes desse trabalho, ver as fotografias e as conclusões da autora que percebeu o quanto alguns fatores alteravam a cultura caiçara. Em especial, transcrevo o capítulo nomeado de Produção e destruição da música caiçara. Ah! Quem quiser pode conferir o seu arquivo doado para a Fundart, em Ubatuba.

                De todo o elenco de componentes diluidores do sistema sociocultural da vida caiçara em Ubatuba, um fato deve ser destacado aqui como diretamente relacionado com o tema desse trabalho. Trata-se da ação do protestantismo como agente destruidor do fazer musical caiçara. Em primeiro lugar, o impedimento do culto aos santos elimina a possibilidade da prática musical ligada aos antigos santos da devoção. Já se falou anteriormente da importância do culto aos santos, na medida em que  resulta, de um modo ou de outro, na produção da música. Se o fiel, porém, aceita a ideia de que não há mais devoção possível, estão esterilizadas as principais fontes de produção musical.
                Se, de outro lado, se quiser considerar a atividade musical profana como virtual válvula de escape, também ao crente está vedada esta saída, pois a adesão ao protestantismo exige uma renúncia total. “O conceito de ‘mundanismo’ está intimamente relacionado com muitos dos valores negativos adotados pelo grupo (...) Em geral é mundano tudo aquilo que é não-cristão’, isto é, não-protestante”. Festas, funções, encontros musicais, danças, cantorias, bate-pés, são consideradas atividades  “mundanas”, portanto, proibidas. Há, pois, uma quebra dos encantos da vida. Os depoimentos recolhidos dos músicos praticantes e dos apreciadores de música revelam total desprezo pelos dogmas e preceitos protestantes. Referem-se aos crentes com indivíduos acabados para a vida:
                “_ O Dito não toca mais? Virô crente? O que ganhou de virá crente? Bobagem... Gente assim não tem prazer de nada, de nada, de nada...
                Ao novo crente só é permitido cantar durante os cultos, tocar algum instrumento aceito pelo guia espiritual, ou participar dos cultos coletivos nas reuniões públicas acompanhadas de banda de música. Para uma avaliação de grau de preservação do repertório tradicional ubatubano, é de se notar que este vem sendo transformado ou mesmo substituído por canções montadas a partir de textos bíblicos. São canções ou orações cantadas, sem nenhuma feição estilística local, mas com empréstimos estilísticos do hinário protestante, estranho ao repertório caiçara ubatubano.
                Diante do que foi aqui exposto, resta como alternativa ver a religião em Ubatuba em dois polos contraditórios, antagônicos em sua própria essência e que conduzem a produção musical da região para duas forças diametralmente opostas. A religião católica (que em geral correu paralelamente às tradições culturais desde a  Colônia) está de um lado – e embora nem sempre intencionalmente -  preservando a música e fornecendo sempre novas forças de produção musical: através de festas, de procissões, de romarias, de danças sagradas, de orações cantadas. As seitas protestantes, de outro lado, agem como força destruidora, na medida em que proíbem o culto aos santos e impedem ou condenam a realização de festas ou reuniões que resultem em ocasiões musicais de caráter sagrado ou profano. Além de proibirem a prática musical coletiva, agem também sobre os músicos solistas, pois muitos destes músicos entrevistados abstêm-se hoje da prática musical por motivos religiosos.

                Resta pensar nas forças jovens que não parecem dispostas a renunciar aos encantos da música e que, por um sentido de preservação de suas tradições culturais, sentem o compromisso de dar continuidade ao seu patrimônio cultural. 

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