Meu povo da Praia Grande do Bonete (Arquivo JRS) |
A década de 1980 terminou com um
belo trabalho da Kilza Setti sob o título de Ubatuba nos cantos das praias. Foi o seu doutoramento em
Antropologia Social. Após 35 anos, vale
a pena reler os detalhes desse trabalho, ver as fotografias e as conclusões da autora que percebeu o quanto alguns fatores alteravam a cultura caiçara. Em especial, transcrevo o capítulo nomeado de Produção e destruição
da música caiçara. Ah! Quem quiser pode conferir o seu arquivo doado para a Fundart, em Ubatuba.
De
todo o elenco de componentes diluidores do sistema sociocultural da vida
caiçara em Ubatuba, um fato deve ser destacado aqui como diretamente
relacionado com o tema desse trabalho. Trata-se da ação do protestantismo como
agente destruidor do fazer musical caiçara. Em primeiro lugar, o impedimento do
culto aos santos elimina a possibilidade da prática musical ligada aos antigos
santos da devoção. Já se falou anteriormente da importância do culto aos
santos, na medida em que resulta, de um
modo ou de outro, na produção da música. Se o fiel, porém, aceita a ideia de
que não há mais devoção possível, estão esterilizadas as principais fontes de
produção musical.
Se,
de outro lado, se quiser considerar a atividade musical profana como virtual
válvula de escape, também ao crente está vedada esta saída, pois a adesão ao
protestantismo exige uma renúncia total. “O conceito de ‘mundanismo’ está
intimamente relacionado com muitos dos valores negativos adotados pelo grupo
(...) Em geral é mundano tudo aquilo que é não-cristão’, isto é,
não-protestante”. Festas, funções, encontros musicais, danças, cantorias,
bate-pés, são consideradas atividades “mundanas”,
portanto, proibidas. Há, pois, uma quebra dos encantos da vida. Os depoimentos recolhidos
dos músicos praticantes e dos apreciadores de música revelam total desprezo
pelos dogmas e preceitos protestantes. Referem-se aos crentes com indivíduos acabados
para a vida:
“_
O Dito não toca mais? Virô crente? O que ganhou de virá crente? Bobagem...
Gente assim não tem prazer de nada, de nada, de nada...”
Ao
novo crente só é permitido cantar durante os cultos, tocar algum instrumento
aceito pelo guia espiritual, ou participar dos cultos coletivos nas reuniões
públicas acompanhadas de banda de música. Para uma avaliação de grau de
preservação do repertório tradicional ubatubano, é de se notar que este vem
sendo transformado ou mesmo substituído por canções montadas a partir de textos
bíblicos. São canções ou orações cantadas, sem nenhuma feição estilística
local, mas com empréstimos estilísticos do hinário protestante, estranho ao
repertório caiçara ubatubano.
Diante
do que foi aqui exposto, resta como alternativa ver a religião em Ubatuba em
dois polos contraditórios, antagônicos em sua própria essência e que conduzem a
produção musical da região para duas forças diametralmente opostas. A religião
católica (que em geral correu paralelamente às tradições culturais desde a Colônia) está de um lado – e embora nem
sempre intencionalmente - preservando a
música e fornecendo sempre novas forças de produção musical: através de festas,
de procissões, de romarias, de danças sagradas, de orações cantadas. As seitas
protestantes, de outro lado, agem como força destruidora, na medida em que
proíbem o culto aos santos e impedem ou condenam a realização de festas ou
reuniões que resultem em ocasiões musicais de caráter sagrado ou profano. Além
de proibirem a prática musical coletiva, agem também sobre os músicos solistas,
pois muitos destes músicos entrevistados abstêm-se hoje da prática musical por
motivos religiosos.
Resta
pensar nas forças jovens que não parecem dispostas a renunciar aos encantos da
música e que, por um sentido de preservação de suas tradições culturais, sentem
o compromisso de dar continuidade ao seu patrimônio cultural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário