quarta-feira, 14 de agosto de 2013

OS ANJOS DA SAÚDE


      Recebendo uma mensagem do Nenê Velloso, senti vontade de reler uns textos deste caiçara que está sempre a nos avivar a memória. Este é um dos que mais gosto, pois trata de ubatubanos que se devotaram à saúde no nosso pobre município (Ubatuba), na primeira metade do século XX. Parece tão longe o tempo em que nem banheiro era costume ter fora da zona central da cidade.

    Os quatro agentes da saúde responsáveis pela vermifugação da população eram os ubatubanos: Trajano Bueno Velloso, João Bordini do Amaral, João Serpa Filho (Fifo) e João Teixeira Filho (Joanito), que hoje eu os chamo de “Anjos da Saúde”. Eram chefiados pelo médico Dr. Antônio Abdalla, mas como a epidemia se alastrava rapidamente, o médico chefe, diante da gravidade, enviou Seu Trajano e Joanito, para colherem amostras de fezes, primeiro no subdistrito de Picinguaba. Só depois de contornada a situação lá, se estenderiam aos demais bairros e no Centro.
         Os “Anjos da Saúde” zarparam barra afora em um pequeno e frágil barco que se chamava “Iperoig”, de propriedade do pároco local, missionário Johannes Beil (este é o nome correto), mas que atendia pelo apelido de “Hans Beil” ou “padre João”. Em uma entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo”, em 1972, disse que gostava mesmo era de ser chamado de “padre João”, porque era assim que os caiçaras ubatubanos os chamavam. Diga-se de paisagem, foi em 1938 que este missionário teve a idéia do prolongamento da boca da barra até a laje, onde se encontra hoje o farol, jogando as primeiras pedras. E, a partir de 1948, quando foi eleito o primeiro prefeito pelo voto direto, o advogado Dr. José Alberto dos Santos, deu-se a continuidade. Após, cada prefeito jogava um punhado. No governo Pedro Paulo Teixeira Pinto, 1983 - 1988, a ligação até a laje foi completada. A conclusão final aconteceu no governo Paulo Ramos de Oliveira e ficou muito a desejar, devido aquele rejuntamento branco saliente. É simplesmente horroroso, deveria ser no sistema de junta seca.
        Seria a hora de se fazer ali, na boca da barra do rio Grande, uma boa homenagem ao padre: Farol padre João “Johannes Beil”, para que fique perpetuada sua passagem por Ubatuba. Ele que, com o seu frágil barco, dava assistência aos caiçaras das praias do norte ao sul de Ubatuba, distribuindo remédios, inclusive até Trindade, Ilha da Vitória e Ilhabela, no local chamado “Sombrio”. Só quem não gostava dessa distribuição de remédio, era o farmacêutico Seu Filhinho. Aliás, ele não gostava de ninguém que praticasse um ato de solidariedade na cidade.
Arquivo Nenê Velloso
O missionário Johannes Beil, conhecido como `padre João´. - Imagem: © Arquivo Nenê Velloso
O missionário Johannes Beil, conhecido como `padre João´.
     A pequena embarcação singrava aquelas águas revoltas da saída da barra que, com a maré vazante, agravava ainda mais porque no repuxo da maré o padre foi obrigado a imprimir força total “na chapa”, como dizem os pescadores, no frágil motor de centro, a gasolina, que mesmo rateando, ia vencendo a empreitada debaixo daquele sueste medonho. Na opinião dos mais velhos e experientes pescadores da cidade, e também dos mais jovens que lá estavam na hora da partida, juravam não terem a coragem de fazerem esta travessia naquelas condições meteorológicas. Era suicídio! A presença marcante do médico chefe Dr. Antonio Abdalla e dos colegas, João Bordini e João Serpa (Fifo), e mais um punhado de pescadores e algumas pessoas que foram ver a partida. O nevoeiro e a chuva rasteira não davam trégua. As rajadas de ventos assobiavam nas cordas de sustentação do mastro e Seu Trajano, na proa, abraçado ao mastro, ia recebendo todo aquele tranco de mar, na tentativa de orientar o rumo ao padre que ia ao leme. Apesar dos seus dois metros de estatura o padre ia em pé, com um pé na borda e o outro no leme, agarrado com as duas mãos na tolda. Joanito, sentado ao pé do mastro, também ia agarrado para não ser lançado fora do barco.
       Aos poucos foram saindo do sufoco do mar revolto e começaram, então, a entrar no mar aberto. O motor parou de ratear, a aceleração voltou ao normal. O padre traçou o rumo norte para a Picinguaba, naquela manhã de domingo tenebroso e inesquecível para os que lá estavam, em meados de 1953.
        Não só o motor voltou à aceleração normal, mas também todos os corações daquele pessoal que lá estava assistindo a partida dos “Anjos da Saúde”, que durante a passagem pela boca da barra, por alguns segundos, ficou com a respiração presa, ofegante. Foram minutos sufocantes até atingirem o mar aberto, dando graças a Deus. O médico Antonio Abdalla chamou os dois funcionários:

- O espetáculo terminou. Vamos embora cuidar dos empalamados da cidade.

O padre João, no leme, ia rezando em voz alta chamando por todos os santos e anjos para ajudá-lo. Seu Trajano gritou da proa:

- Padre! Não chame mais ninguém... senão o barco vai a pique!
- Isso não é hora para brincar! Eu faço este trajeto há 15 anos cravado e nunca vi este mar de águas tão revoltas como hoje, mas o pior ainda está por vir.

    Ele se referia a baía do Itamambuca. Aí o tempo fechou de vez. O nevoeiro e o vento cortante não davam trégua. O motorzinho a gasolina não se intimidava, roncando forte, ia empurrando o frágil barco de nome Iperoig; não se notava mais nenhum rateio e a confiança na máquina aumentou.
     Começaram então a se aproximar da Ponta dos Carneiros, do Respingador, na praia do Alto. Daí vem a baía do Itamambuca, em seguida, a Ponta da Jamanta. Esses são os trechos mais perigosos entre a cidade e a Vila de Picinguaba.
   Ondas imensas se formaram em sequência. Arrebentavam na proa lavando o pequeno convés de proa a popa da embarcação, que parecia uma casca de amendoim flutuando naquela imensidão. O sufoco só foi amenizado quando entraram na calma baía do Ubatumirim, e logo atingiram a vila dos pescadores na Picinguaba. Mesmo assim, colheram amostras das fezes dos 150 moradores da vila e retornaram no dia seguinte.
       O sueste já tinha perdido a força, mas o mar ainda estava revolto e o tempo fechado. Chegaram à cidade na boca da noite. Como não puderam entrar na boca da barra, fundearam o barco na Prainha.
No dia seguinte Seu Trajano ficou no posto de saúde fazendo os exames e Joanito foi para a cidade de Taubaté (SP), buscar mais um microscópio. Retornando por volta das 20 horas, já começou a trabalhar, e ambos vararam a madrugada direto, até o início da noite do dia seguinte. Disse Joanito:

- Nunca vimos tanta titica a nossa frente. Olhos, nariz e garganta ardiam. O cabelo ficou impregnado por vários dias, mesmo lavando todos os dias. O resultado dos exames foi de 100% contaminados.

(Fonte: O Guaruçá)


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