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Sununga - Arquivo Nerci |
Dia de trabalho; colegas me convidaram
para uma contação de história. Onde? Na praia da Sununga!
A prosa naquele ambiente encantador tinha
um objetivo específico: que no ano letivo que se inicia o grupo docente e a
equipe gestora não deixem de aproveitar essa natureza e esses recursos
culturais para o efetivo exercício da aprendizagem, do sucesso escolar. E a
Gruta que Chora, creio eu, é o recurso
cultural mais próximo de nós. Por isso, o grupo docente se dispôs a fazer uma
caminhada até a Sununga para sentir a energia naquela praia, para escutar a
Lenda da Serpente. Foi emocionante!
Sununga, desde os povos originários, era
local de mar bravo, onde o barulho e as características das ondas sempre
assustaram. É a razão do nome. O professor William deu um testemunho que
comprovou isso: “Eu não conhecia esta
praia apesar de ser caiçara. No tempo da escola primária, quando houve uma
excursão com a finalidade de vir até a Sununga, a minha mãe não deixou porque
tinha medo do mar bravo”. É isso
mesmo! Minha mãe e tantas outras se comportavam desse modo. Sununga ainda é lugar
que mete medo. De vez em quando alguém desaparece nas forças que dão as
características do lugar, da praia inigualável do território caiçara.
Só que, dias atrás, a Sununga estava mansa, sem nenhum barulho, sem nenhuma
onda lambendo os costões e arrebentando no lagamar. Era Sununga sem justificativa. Assim contei da lenda da Gruta
que Chora.
Quantas viagens nós fizemos escutando nossos pais, nossos avós? Minha
mãe, minha avó, no tempo da minha infância, quando morávamos na praia da
Fortaleza (de onde se avista a Sununga), contavam muitas histórias. Uma delas
era a da Toca da Serpente, da Gruta que Chora. É uma lenda, tem um ou mais
sentido por trás das narrativas seculares. Mas o que é lenda?
Lenda deriva da palavra legenda. O livro Legenda Áurea, de Jacopo de
Varazze, é do século XII; reúne as histórias a serem lidas nos mosteiros católicos
durante as refeições. Tinham o objetivo de edificar as almas dos ouvintes.
Legenda...lenda...histórias a serem lidas...tradições a serem contadas...sentidos
a serem recuperados para apoiarem a nossa existência atual. E eu sou
categórico: muitos dos nossos primeiros encantamentos literários provém de
lendas.
No meu caso, na minha tradição católica, nossos pais contavam a lenda da
Gruta que Chora para reforçar a ação do padre que livrou a comunidade daquele
bicho horrendo-apavorador do local. Mas bem cedo, graças à educação escolar, eu
aprendi que essa história vem de um tempo mais antigo, dos primeiros habitantes
desta terra batizada como Ubatuba. Ou seja: são histórias, tradições antigas
que se vestem com novas roupagens. Primeiramente eu contarei a versão que se
aproxima daquela contada pela minha saudosa mãe e avó da praia da Fortaleza. É
a mesma que eu escutei mais tarde contada pelo Seo Filhinho (Washington de
Oliveira, irmão da professora Semíramis Prado de Oliveira que nomeia a escola estadual
do bairro, do Saco da Ribeira). Trata-se da moça, da Marcelina, moradora daqui
de perto, que numa noite se angustiava suplicando para que alguém não se fosse,
ficasse mais um pouco no seu quarto etc. Ouvindo-a, a mãe abriu a porta.
Marcelina estava só, chorando. Foi quando ela revelou: “Sabe daquele bicho que o Seo Antero viu na Gruta que Chora, metade
cobra metade dragão, do mesmo tipo que foi derrotado por São Jorge? Ele tem
aparecido nas madrugadas neste quarto, mas se transforma num moço lindo, me
abraça e fica comigo umas horas. Só vai embora depois que o galo canta pela
terceira vez. Eu me apaixonei por ele. Estou desesperada porque ele foi embora,
voltou para a toca”. Sorte da
família - e da comunidade! - foi ter aparecido por ali um monge. Ele dizia que
o padre Anchieta, em tempo passado, havia profetizado que “a Ordem dos Jesuítas expulsaria o monstro que habitava aquela
gruta, nas paragens de Ubatuba”. Assim, depois de umas oração forte e de um
emocionante sinal-da-cruz, todos escutaram um barulho semelhante a um estrondo
de trovão, com a água do mar invadindo a toca e um caminho se abrindo mar
afora, por onde aquela criatura horrível se foi. Portanto, graças à força desse
religioso e a fé dos caiçaras, todos se viram livres da maldição. A minha mãe concluía
assim: “Aquele bicho era praga de mãe”.
Agora contarei a versão indígena que eu escutei na adolescência:
No tempo que só o povo primitivo ocupava este território de Ubatuba,
ninguém podia se aproximar desta praia (Sununga) porque o mar ficava bravo,
enxotava qualquer um por mais valente que fosse. Só moça nova chegava e não
acontecia nada. Parecia até que alguma coisa chamava essas donzelas para a toca
que está no canto da praia. Uma criatura enorme as abocanhava e sumia na toca. Era
como uma cobra gigante, gosmenta como uma lesma. De uma bocada só ela engolia a
moça. Depois sumia no buraco, fazendo por um longo tempo uns barulhos medonhos. Ela saía nas noites de lua cheia, se rolava nas areias e provocava ondas de
lamber o jundu. Os parentes ficavam desconsolados pelas perdas. Muitas moças
desapareceram naquele lugar. Dentro da toca, bem no fundo, tem um buraco que
desce muito. Hoje está soterrado, mas nunca ninguém teve coragem de chegar
perto dele, onde o bicho se escondia. Eis a razão do choro da gruta.
Quando criança, ao fazer mais perguntas, querendo saber mais coisa, a
mamãe dizia: “Tem mais coisa sim, mas é
história de gente grande, tá bom?”. A vovó assim concluía: “Desde antes, no tempo dos índios, esse
bicho estava lá. Sorte nossa que o nosso bom Deus enviou um padre para benzer
aquela toca e expulsar o bicho. Nunca mais nenhuma moça foi tocada nesse lugar”.
Legenda...lenda...história a ser contada, lida, que pode nos edificar, inclusive a partir das lições e
reflexões escolares. Que assim seja!