Sempre
acontece surpresa na vida da gente, né? Tempos atrás, quando eu andava
apressado pela cidade devido ao horário do próximo ônibus para o
bairro, escutei alguém falar da beirada de uma loja: “Não é o filho do Gildo Carpinteiro? Aonde vai o apressadinho?”. Parei e não pude acreditar: “Olá,
Seo Guarda! Que surpresa!”.
Soldado Lemos
era o nome escrito no bolso da camisa da farda, mas seguindo o
exemplo respeitoso de meus pais, eu sempre o tratei como Seo Guarda.
Natural de Vale do Paraíba, mas não sei de qual cidade, o Lemos
passou um bom tempo morando em Ubatuba até se aposentar. Tinha pedra
nos rins, de vez em quando caía em dores, era internado. Lembro-me
bem do papai lhe recomendar: “Conhece jamelão? Ali na rua
Taubaté, próximo de onde mora o pai do Ireno, tem dois pés
enormes. Passa lá, pega umas folhas, faz chá e toma como água. Faz
isso por um mês e depois você conta pra mim”. Acho que deu
certo a receita do meu velho pai. Mas voltando aos dias atrás,
prontamente eu me esqueci do ônibus porque a prosa pegou o primeiro
lugar da pressa. Me sentei com o Seo Guarda no primeiro banco
desocupado e o tempo voou. Primeiramente lhe falei da morte da mamãe
e do papai. Depois do meu casamento, dos meus filhos, do trabalho
etc. “E você, Seo Guarda, o que me conta da vida? Tá forte
ainda!”. E ele, falando bem devagar, parecendo com poucas
forças: “Que forte o quê, Zezinho!?! Tô bem velho. Agora a
gente vai vivendo na espera do último dia neste mundo.
Estou passeando por aqui neste fim de semana, a cidade mudou muito desde quando eu me aposentei. Vim com o meu filho.
Ele tem uma casinha no Perequê-açu, perto do estádio. Sabe que
ontem eu tive uma surpresa? Conheci um rapaz, pintor dos bons,
puxei conversa como se estivesse com o meu neto. Depois de prosear
bastante, fiz uma descoberta que está ligada ao tempo que cheguei,
quando fui destacado para trabalhar patrulhando o centro da cidade.
A história é a seguinte: eu e o companheiro da
viatura recebemos a denúncia de que uma mulher e duas
crianças estavam morando debaixo da ponte do rio, perto da Ressaca, na BR 101. Fomos
averiguar. Era verdade mesmo! Era uma jovem mãe, a criança maior
era menina, o mais novo era menino. Os pertences eram
quase nada. Começamos a escutar a história dela: veio para a esta
cidade em busca de trabalho. Um jovem daqui se engraçou e a levou para
morar com ele, na casa da velha mãe dele. Logo nasceu
a primeira criança e não demorou muito para a nova gravidez, a do
menino. Depois disso, o companheiro começou a destratá-la, de nada
valendo a intervenção da mãe dele. Por fim, ficou sabendo que o
motivo era que ele estava namorando outra moça e queria se livrar
dela e das crianças para poder levar a nova companheira para casa.
Não aguentando a pressão, sendo maltratada demais, ela saiu de
casa. Morar debaixo da ponte foi a primeira solução que apareceu,
pois ela disse que tinha muita vergonha, era tímida demais para
bater à porta de alguém e pedir abrigo. Na mesma hora, conhecendo
bem quem tava envolvido, e, com o coração partido ao ver aquela
mulher e as crianças naquela situação, nós a levamos de volta à
casa da sogra. Ela acolheu muito bem aquela coitada, a sua nora. O
tal marido apareceu, mas não discutiu muito porque viu a nossa
disposição em até mesmo conduzi-lo à delegacia caso fosse
preciso. O meu parceiro de farda cheio de raiva disse isto: ‘De hoje em diante nós
iremos sempre passar por aqui para saber da situação dessa coitada
e dos seus filhos. Pensa que é só se aproveitar de mulher, fazer
filho e largar por aí? Toma cuidado para não precisar da sua
velha mãe levando marmita na cela para você. Eu faço
questão de acompanhar de perto isso! A cidade não merece gente com
esse comportamento, abandonando inocentes ao Deus dará’. E assim
fizemos, Zezinho. Depois ele acabou levando a outra moça para morar
na mesma casa, mas a primeira se manteve lá, mesmo passando muita
vergonha, porque a sogra lhe queria bem e amava as crianças. Aquele menino, filho daquela mulher que estava debaixo da ponte naquele tempo, hoje é o tal pintor, o rapaz que conheci por acaso”.
Fiquei
impressionado com a história do Seo Guarda. E o que dizer da
coincidência, do reencontro com uma daquelas crianças daquela
triste situação? Pior é saber que quem agiu assim é caiçara, está por aí. Faz
me lembrar de uma antiga lenda, do rapaz que maltratava os pais e que
depois de morto se transformou no corpo seco da Barra da Lagoa,
quando até a terra caiçara se recusou a recebê-lo. Voltei a me preocupar com o horário do ônibus. Acabrunhado, me despedi de Seo Guarda quase na certeza de que não o
veria mais. Adivinhando os meus pensamentos, ele me abraçou com a
frase: “Zezinho, a vida dá muitas voltas… Quem
sabe a gente não se encontra outra vez numa dessas voltas?!?”.
Me emocionei. Eu bem que gostaria de voltar a ter outra chance de dizer “Olá, Seo Guarda!”.
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