segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

OLÁ, SEO GUARDA!


Meu pai e a canoa do último grande capurubu do Itaguá (Arquivo JRS)

           Sempre acontece surpresa na vida da gente, né? Tempos atrás, quando eu andava apressado pela cidade devido ao horário do próximo ônibus para o bairro, escutei alguém falar da beirada de uma loja: “Não  é o filho do Gildo Carpinteiro? Aonde vai o apressadinho?”. Parei e não pude acreditar: “Olá, Seo Guarda! Que surpresa!”.

         Soldado Lemos era o nome escrito no bolso da camisa da farda, mas seguindo o exemplo respeitoso de meus pais, eu sempre o tratei como Seo Guarda. Natural de Vale do Paraíba, mas não sei de qual cidade, o Lemos passou um bom tempo morando em Ubatuba até se aposentar. Tinha pedra nos rins, de vez em quando caía em dores, era internado. Lembro-me bem do papai lhe recomendar: “Conhece jamelão? Ali na rua Taubaté, próximo de onde mora o pai do Ireno, tem dois pés enormes. Passa lá, pega umas folhas, faz chá e toma como água. Faz isso por um mês e depois você conta pra mim”. Acho que deu certo a receita do meu velho pai. Mas voltando aos dias atrás, prontamente eu me esqueci do ônibus porque a prosa pegou o primeiro lugar da pressa. Me sentei com o Seo Guarda no primeiro banco desocupado e o tempo voou. Primeiramente lhe falei da morte da mamãe e do papai. Depois do meu casamento, dos meus filhos, do trabalho etc. “E você, Seo Guarda, o que me conta da vida? Tá forte ainda!”. E ele, falando bem devagar, parecendo com poucas forças: “Que forte o quê, Zezinho!?! Tô bem velho. Agora a gente vai vivendo na espera do último dia neste mundo. Estou passeando por aqui neste fim de semana, a cidade mudou muito desde quando eu me aposentei. Vim com o meu filho. Ele tem uma casinha no Perequê-açu, perto do estádio. Sabe que ontem eu tive uma surpresa? Conheci um rapaz, pintor dos bons, puxei conversa como se estivesse com o meu neto. Depois de prosear bastante, fiz uma descoberta que está ligada ao tempo que cheguei, quando fui destacado para trabalhar patrulhando o centro da cidade. A história é a seguinte: eu e o companheiro da viatura recebemos a denúncia de que uma mulher e duas crianças estavam morando debaixo da ponte do rio, perto da Ressaca, na BR 101. Fomos averiguar. Era verdade mesmo! Era uma jovem mãe, a criança maior era menina, o mais novo era menino. Os pertences eram quase nada. Começamos a escutar a história dela: veio para a esta cidade em busca de trabalho. Um jovem daqui se engraçou e a levou para morar com ele, na casa da velha mãe dele. Logo nasceu a primeira criança e não demorou muito para a nova gravidez, a do menino. Depois disso, o companheiro começou a destratá-la, de nada valendo a intervenção da mãe dele. Por fim, ficou sabendo que o motivo era que ele estava namorando outra moça e queria se livrar dela e das crianças para poder levar a nova companheira para casa. Não aguentando a pressão, sendo maltratada demais, ela saiu de casa. Morar debaixo da ponte foi a primeira solução que apareceu, pois ela disse que tinha muita vergonha, era tímida demais para bater à porta de alguém e pedir abrigo. Na mesma hora, conhecendo bem quem tava envolvido, e, com o coração partido ao ver aquela mulher e as crianças naquela situação, nós a levamos de volta à casa da sogra. Ela acolheu muito bem aquela coitada, a sua nora. O tal marido apareceu, mas não discutiu muito porque viu a nossa disposição em até mesmo conduzi-lo à delegacia caso fosse preciso. O meu parceiro de farda cheio de raiva disse isto: ‘De hoje em diante nós iremos sempre passar por aqui para saber da situação dessa coitada e dos seus filhos. Pensa que é só se aproveitar de mulher, fazer filho e largar por aí? Toma cuidado para não precisar da sua velha mãe levando marmita na cela para você. Eu faço questão de acompanhar de perto isso! A cidade não merece gente com esse comportamento, abandonando inocentes ao Deus dará’. E assim fizemos, Zezinho. Depois ele acabou levando a outra moça para morar na mesma casa, mas a primeira se manteve lá, mesmo passando muita vergonha, porque a sogra lhe queria bem e amava as crianças. Aquele menino, filho daquela mulher que estava debaixo da ponte naquele tempo, hoje é o tal pintor, o rapaz que conheci por acaso”. 

          Fiquei impressionado com a história do Seo Guarda. E o que dizer da coincidência, do reencontro com uma daquelas crianças daquela triste situação? Pior é saber que quem agiu assim é caiçara, está por aí. Faz me lembrar de uma antiga lenda, do rapaz que maltratava os pais e que depois de morto se transformou no corpo seco da Barra da Lagoa, quando até a terra caiçara se recusou a recebê-lo. Voltei a me preocupar com o horário do ônibus. Acabrunhado, me despedi de Seo Guarda quase na certeza de que não o veria mais. Adivinhando os meus pensamentos, ele me abraçou com a frase: “Zezinho, a vida dá muitas voltas… Quem sabe a gente não se encontra outra vez numa dessas voltas?!?”. 

           Me emocionei. Eu  bem que gostaria de voltar a ter outra chance de dizer “Olá, Seo Guarda!”.

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