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Elias e seu cavaquinho (Arquivo JRS) |
Um
novo ano pode significar muitas coisas. Também pode não dizer nada,
ser somente vida que segue. Tem gente que se lança a novos
propósitos, mas desconfio que muitos não pretendem se desacomodar. Para me
inspirar, assisti com a minha Gal o filme Os dois papas.
Ótimo! Recomendo-o aos pretendentes a novos desafios. Antes disso,
fui visitar a mana Ana e o primo Elias que anda com a saúde
fragilizada há tempos, mas que sempre tira uns ponteados no
cavaquinho, me fazendo relembrar de muitos tempos atrás.
Quando
eu era bem criança, a nossa casa era no morro da Fortaleza. A casa
do tio Dário, pai do Elias, era a mais próxima da nossa. Bastava
atravessar uma grota cheia de bananeiras e superar apenas um pequeno
capão de mato para alcançar o terreiro deles. Tia Maria Estefânia,
a “Maria do Dário”, sempre nos acolhia muito bem, fazia um
agrado, nos queria por perto. Além de conversar sozinha, de estar
sempre em preces, ela gostava de cantar. E de vez em quando também
ponteava a viola! É isso mesmo! Na verdade, naquela casa todos
tocavam instrumentos de corda: o pai, a mãe e os três filhos:
Elias, Toninho e Ditinho. Na sala espaçosa, eu silenciava para
escutar seus instrumentos e as vozes do pai e da mãe.
Numa
delas, fazendo a introdução, o titio explicava: “É um chiba.
Quem canta sempre é o Chiquinho Barbosa, que tem casa na “Rampa” [zona do mercado de peixes], perto do armazém do Zequita”.
O
Paulista naufragou,
A
Companhia perdeu (ai, ai, ai).
Saiu
da Barra de Santos,
Foi
pra Barra do Rio.
Saiu
não sei quantos tripulantes
Pra
dirigir o navio (ai, ai, ai).
Em
seguida, animada na viola, a titia puxava um verso de São Gonçalo:
Ó
meu padre São Gonçalo
Casamenteiro
das velhas
Por
que não casais as moças?
Ó
que mal fizeram elas?
Ó
meu São Gonçalinho
Ele
é tão bonitinho
Ele
come o seu pão,
Ele
bebe o seu vinho.
Ai
meu santo São Gonçalo.
Depois, todos silenciavam para escutar a história de São Gonçalo.
A titia sabia muitas do gênero. Só bem mais tarde eu descobri que
ela sabia ler, coisa rara para uma mulher pobre nascido no alvorecer
do século XX. “Ela aprendeu com os irmãos”, segundo o
Elias. “Os irmãos aprendiam com um professor e ensinavam a ela,
em casa”.
Outro
pedaço de uma cantiga da titia:
Deixai-me
contar estrelas, Ianhinha:
Dois
navios na vela vão.
Naquele
mais dianteiro, Ianhinha,
Navega
meu coração.
E o
tio Dário, na rabeca, cantando sorrindo:
Que
rei sou eu
Sem
reinado, sem rainha,
Sem
castelo, sem coroa.
Afinal,
que rei sou eu?
Ontem, antes de me despedir, ainda tive o prazer de escutar o Elias no cavaquinho:
Canoa,
minha canoa,
De
Marica Sivirina,
Lá
no mato estão tirando
Um
pranchão com quatro quinas.
Remando
minha canoa,
Meu
reminho de mamão,
Enfrento
qualquer refrega,
Suspiros
que as moças dão.
E eu, agora crescido, me recordo
do encantamento naquela casa de pau a pique, onde nem notava o tempo
passar com esses meus parentes estimados, quando sempre pedia: “Canta
mais, tia Maria”. Neste ano espero seguir o exemplo da titia,
ou seja, além de contar mais, eu também pretendo cantar mais. Com
carinho. Feliz ano novo, amigas e amigos!