sábado, 29 de julho de 2017

A MULHER FANTASMA

         
A casa vai se ruindo (Arquivo JRS)
Olha as marditas aí, gente! (Arquivo JRS)

         A minha amiga Néia, caiçara do pé rachado, mora no mato, no caminho para a cachoeira. Defronte à sua casa tem um terreno grande, uma grande chácara, "quase uma fazenda". Um casal morava lá até pouco tempo, coisa de cinco anos atrás. Eram os caseiros, tomavam conta da propriedade. O dono ninguém conhece. Eram felizes ali, sempre cuidando da plantação e zelando pela limpeza do terreiro. Não tinham filhos. Com o passar do tempo alguma coisa aconteceu entre eles, a mulher começou a beber muito. O marido foi se entristecendo com aquela situação, pois a mulher depois de bêbada enchia a saco de todo mundo, ficava na porta do bar até fechar. Diziam que até batia no companheiro. Ninguém entendia porque ela foi se acabar assim.  "Uma tristeza que dava dó".
         Num dia chuvoso novamente ela encheu a cara até cair. "Tomou o rumo da casa em pandarecos", de acordo com a Néia. "Foi a mardita, né Zé?". A casa deles, feita de pau a pique, era no alto. "Um morrote antes da tiguera". Era uma subida ruim. "Em tempo chuvoso ficava tão liso quanto gudião da costeira". Ela foi subindo, escorregando, subindo, escorregando... de repente escorregou feio e bateu a cabeça numa pedra da beira do caminho. Morreu na hora. Do marido ninguém sabe contar nada. "Não era gente daqui". De lá para cá ninguém mora na casa. Na verdade, ninguém nem passa por aquele caminho. Muitos já viram, na pedra do acidente fatal, um fantasma. Dizem que todas as noites, naquele horário do acidente, a alma dela está por ali. É por isso ninguém mais entrou naquele terreno. Eu resolvi entrar lá por estes dias. Por um tempo fiquei na cozinha e imaginei os muitos momentos do casal ali.  Vi as marcas dos pobres que vão se esvaindo no tempo. Tudo vai se arruinando. É a vida, né?

domingo, 23 de julho de 2017

OLHANDO AS BANDEIRINHAS


          
Cercando tainha no Itaguá -1960 (Arquivo Igawa)
     Ontem, conforme a nossa tradição, chamamos o parentada e fizemos a nossa fogueira no quintal. Agora, olhando as bandeirinhas que tremulam na varanda, retomo uma reflexão que nem é de tanto tempo assim.

               March Bloch e Lucien Febvre, dois importantes estudiosos contemporâneos apelam para que se estude “o homem e todos os seus vestígios, e não somente as grandes personalidades, isto é,  passaram a  considerar toda a produção material e espiritual humana como possibilidade de contato com esse homem do passado”. Assim, após vivenciar mais uma noite em família, dentro de uma tradição, reescrevo a respeito da cultura do pitirão (multirão), da relação de comunhão, de reciprocidade genuína. “É um adjutório que vem desde os mais antigos dessa terra”.

               “Cruzei o Cabo da Boa Esperança”. Fiz favores, recebi favores porque assim aprendi a cultura do pitirão. Neste ideal marquei presença em construções de casas e em roçados de muita gente. “Lembra-se daquela casa, da Dona Irene, na estrada do Monte Valério?”. Era favor que a gente esperava ser retribuído: “Pobre tem de se ajudar”, “Uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto”. Agora, pensando em sábias palavras e exemplos de nossos antigos, sei que ajuda é outra coisa. Os velhos caiçaras ensinam que ajuda não se diz, só se sente. Porque, “se uma boa obra (ajuda) se torna pública, ela perde o seu caráter de bondade, de não ter sida feita por outro motivo além do amor à bondade”. Registro isto aqui porque desconfio que, dentre os poucos caiçaras que encontro nos diversos ambientes, quase ninguém recebeu/assimilou tal aspecto. Por quê?
               O advento do turismo e a chegada da televisão coincidem com a vinda dos migrantes em busca de melhores condições de vida. Estes deixaram suas realidades de roças, suas culturas (caipira, sertaneja...); alguns vieram até de outros países. A maioria da população ubatubense se encaixa neste contexto. Quem chega assim, buscando a sobrevivência, dificilmente respeitará a cultura que já se encontra no novo lugar, não vai considerar a sacralidade da terra, do mar, dos rios e dos demais seres. “Farinha pouca meu pirão primeiro”. Acaba se instalando a sociedade de consumidores incapazes de cuidar deste entorno, deste mundo caiçara (interdependência homem-natureza). E o pior: justifica o injustificável (omissão, ganância, egoísmo, perda de sensibilidade dos favores e da ajuda etc.).

               Enfim, ajuda é o que você não vai dizer para ninguém, pois acredita que só à  eternidade diz respeito. Favor é aquilo que você faz esperando retribuição. A frase preferida da vovó Eugênia encerra a prosa: “Que a tua mão direita não saiba o que faz a tua mão esquerda”. A tradição da fogueira é parte dessa cultura em pitirão.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

JARACUÇU AMARELO

Titio e o cará moela em formato de asa (Arquivo JRS)

               Tio Neco é muito querido por nós. Desde pequeno o que muito me impressionou nele foi um pé esquisito, faltando um dedo. “Foi picada de cobra, menino!”. Agora, depois de tantos anos, ele próprio explica:


               Em 1956, quando eu tinha oito anos, fui picado pela cobra. Foi assim: eu fui à roça com o papai [meu avô Estevan], como era costume. Lá chegando, armei a gaiola no lugar que mais tarde o Lúcio [outro tio] morou. Logo estava cheia de tiés. Na volta, pelo caminho da vargem, papai trazia nos ombros um cacho de bananas; eu seguia na frente, distraído, depenando passarinho. Não muito longe de casa, ao atravessar o Rio Ingá, pela baobeira que servia de ponte, bem na cabeceira, eu não vi uma jaracuçu amarelo.  Distraído que estava, pisei em cima da cobra. Aí ela se enrolou até a metade da minha canela e deu duas picadas em cima do pé. Eu a sacudi longe e atravessei a pinguela sem nem saber como consegui. O meu pai largou o cacho de banana, cortou um cambará e matou a cobra. Depois atravessou pela baobeira, viu o pé e a perna inchada. O veneno agia: bateu íngua na hora e inchou. Todas as picadas de borrachudos foram se abrindo e sangrando. Papai voou na pinguela, me carregando e eu chorando, preocupado com injeção (porque todo mundo tinha medo, né?). Bateu nervoso no velho, não conseguia me carregar. Foi correndo na frente em busca de ajuda; eu fui seguindo manquitolando, devagar. Quem me buscou foi o seu pai [Leovigildo] após a notícia.  Na época, o Mané Belo tinha uma carroça, vendia peixe. Alguém foi atrás dele para me levar ao Hipólito, que tinha um armazém no Sertão da Quina e entendia de farmácia, tinha remédio. O seu pai, que capturava cobras para o Instituto Butantan, amontoou as caixas  e meteu fogo nelas. Tudo desapareceu em cinzas.  A mamãe, vendo que demorava o carroceiro, me pôs nas costas e foi me levando para o Sertão. Ao chegar no Morro do Foge, dois quilômetros depois,  se encostou no barranco para tomar um fôlego e retomou a  caminhada. Bem em frente à casa do tio Antônio Amorim, onde é a hoje é a escola [Áurea Moreira Rachou], fomos alcançados pela carroça do Antônio Belo. Assim que chegamos, o Hipólito aplicou duas injeções, depois de fazer um teste nos olhos. Foi uma em cada braço. Nisso eu já estava com febre a variação. O Hipólito foi prender o gado e sofreu uma prensada na mangueira pelo touro reprodutor, quebrando as costelas. Ficamos os dois precisando de socorro.  Já era noite quando uma ambulância veio de Caraguatatuba para nos levar. Não sei se o Hipólito foi logo medicado, mas eu fiquei desprezado no hospital. No dia seguinte, quando o padrinho Antônio foi me visitar, ficou indignado me vendo naquela situação em que eu estava largado num banco do corredor. Ficou bravo.  Arrumou um táxi do Pacheco (Ford 50) e me trouxe para a Ana Cruz, no Sapê, que era enfermeira da prefeitura. Na casa dela eu fiquei quinze dias; o pé foi pretejando. Maria Cruz tinha a minha idade; Clemente era pequeno; João Paulo, o pai, ajudava no desempenho da mulher. Passando por lá o doutor Benedito, vendo a gravidade do caso, o pé gangrenado, imediatamente ordenou para que me levassem para a cidade, ao hospital de Ubatuba, onde fui examinado com mais atenção. Foi determinado o procedimento, mas não fiquei no hospital. Eu, mamãe e padrinho Antônio ficamos instalados na casa da prima Zica [Luzia], no final da rua Cunhambebe, próximo do matadouro. Ali moramos por oito meses.  O padrinho Antônio trabalhou para ajudar nas despesas da casa. A mamãe ajudava em tudo. O médico cortou a pelanca podre desde o pé até o tornozelo. “Começou a funilaria do pé”.  A Ana do Bastião Migué, mulher do Antenor disse assim: “Aí, Maneco, você parece mulher que ganhou nenê!” (Porque precisava de muito pano para enxugar o pé, saía muita água). O doutor Benedito e o enfermeiro Juscelino iam todos os dias para cuidar de mim. Era uma injeção de penicilina todo dia, lavavam o pé com água oxigenada, retiravam uma espécie de geleia que se formava todo dia no local, enchiam de pó antisséptico, tornavam a medicar e enfaixavam.  No total, tomei doze soros de cobra. O ano era 1956. Após a recuperação da carne, nas pontas dos dedos ajuntava um líquido que fedia demais. Quando estava bem cheio, até redondo, uma “boca” aparecia debaixo do dedo que ficou duro, apontando para cima, e vazava. Era um fedor só. Em 1956 passei por uma cirurgia na Santa Casa de São José dos Campos. O dedo foi amputado, nunca mais se formou aquele líquido horrível.

terça-feira, 18 de julho de 2017

CABEÇA, IRMÃO!

Tradição da fogueira (Arquivo JRS)

               Jorge “Cabeça”, filho do tio Izídio Antunes de Sá e da tia Luzia agora está sepultado no Morro do Cemitério, acima da costeira da Maranduba. Há pouco mais de dois meses nos encontramos no ônibus; voltava para a sua casa, no Sertão da Quina. Estava animado para a prova pedestre, prevista para o dia 13 de junho, da subida do Morro de Santo Antônio, em Caraguatatuba. “Ainda ontem treinei com o filho do Mário, viemos correndo desde a Caçandoca até o Sapê. Logo vou completar 71 anos. Acho injusta a minha categoria (acima dos 60 anos): 10 anos faz diferença. Poderia ter uma categoria de 70 anos acima.  Mesmo assim, no ano passado eu fiquei com a terceira colocação.  Você sabe que eu sempre tentei estar em todas. Moderei nos meus vícios; já não bebo muito faz tempo. Agora me dedico mais às minhas corridas”.

               Numa ocasião, quando eu era bem moleque, também escutava uma conversa entre o frei Pio e o comerciante João Pimenta, o “Incréu”, conforme dizia papai. O armazém dele me encantava. Na minha lembrança tinha mais de dez pessoas assistindo e participando da prosa. Jorge, bem jovem ainda, também estava por ali, meio que embalado pela “mardita branquinha”.  Só que prestava bem atenção, balançando de espaço em espaço o vantajoso beiço ou para o lado do frei ou concordando com o comerciante. Em frente era o Largo do Sapê, com vista para o mar e o Porto do Cruzeiro (ao lado da casa da Maria Balio). De repente, cansado do assunto, o Jorge falou: “Quem sou eu para julgar quem tá mais certo ou mais errado?! Entendo quase nada de religião! Mas para mim Deus é um sonho. Um sonho é assim: pode ser interpretado de todo jeito. O Seo João tá certo e o frei Pio também tá certo. Aquilo que o mano Tobias disse acho que não tá errado. Não discordo da opinião do Clóvis. O Calixto deu o seu ponto de vista que é muito interessante. Também tá certo. Um sonho permite tudo. Agora eu vou indo porque a mamãe, a esta altura, já cozinhou a garoupa que o Chico Félix levou. A fome é maior que este papo de religião, entenderam? Sou cabeça, viu? Num assunto desse, assim costuma dizer o papai: ‘A gente usa muitas mentiras bonitas para encobertar as coisas que podem causar vergonha’ Cabeça, né? Cabeça, filho de Cabeça! Cabeça, bicho!”.

               Pelas notícias, A sua morte foi causada por alguém que dirigia bêbado e nem habilitação tinha. Jorge Cabeça, meu primo. Pedreiro. No último dia de vida terminou a casinha de cachorro da dentista. Cabeça, irmão!

domingo, 9 de julho de 2017

É O PROGRESSO, MEU FILHO!

Puxada de rede (Arquivo ACO)
Garça branca, rio... (Arquivo JRS)

               A partir de 1970, mais ou menos, começamos a escutar sobre ecologia, preservação ambiental, ecodesenvolvimento etc. Passamos a ver com outros olhos as formas de ocupação do espaço, de como íamos jogando um monte de coisas (lixo) na natureza e de que forma usávamos os recursos que nos rodeavam, que faziam parte essencial do espaço caiçara. Passamos a entender que o progresso também fazia estragos. Agora, depois de algumas décadas, creio que a causa ecológica não é uma moda passageira, ela começa nas mínimas atitudes em volta da nossa casa, se alastra para o nosso município e ganha o mundo. Há uma ordem na casa e no mundo. O mundo é a nossa casa: ecologia. Somos cidadãos do mundo!
               Meus avós começavam o dia visitando o tresmalho. Seus apetrechos de pesca eram carregados em balaios que, depois de velhos, iriam servir como lugar para as galinhas se aninharem. Depois, ao perceberem alguma tábua encalhada, trazida pela maré, levavam para casa, iria servir para algo. Até mesmo pregos, caso tivessem, seriam depositados numa cumbuca e aproveitados em alguma ocasião. As linhadas eram desembaraçadas e duravam muito tempo. Os pescados eram consertados  no rio, onde os patos devoravam quase tudo que a gente  não aproveitava, sendo o restante comido por camarões e peixes de água doce. Urubu e garoçá comiam da miuçalha que ficava na praia. Não havia detergente, nem desinfetantes, nem todos esses produtos que usamos em nossos cabelos.  O sabão, desde o de cinza feito pela vó Martinha,  era o rei da limpeza. As vasilhas de barro não exigiam muito, mas as de alumínio eram areadas para brilharem.  Hoje sabemos que tudo era dificultoso, mas na época, conforme as palavras do Seo Zé Pedro, “a vida não tinha dificuldade porque a gente não conhecia facilidade”.

               Um exemplo de aproveitamento que me marcou muito foi me dado por Seo Dito Coimbra, morador do sertãozinho do Perequê-mirim. Ele era morador único dali, sozinho mesmo! Bem mais tarde é que o Miguel da Maria Clarinda foi morar naquele lugar.  A água vinha do morro numa bica de bambu, formava um pequeno charco onde ele cultivava agrião e escorria sem nenhuma pressa para o cercado das criações (pato, galinha...). De lá passava pelos canteiros da horta bem cercada de bambus e escorria para o bananal. A cada dia, exceto nos dias santos e domingos, o Seo Dito saía com uma cesta para vender ou trocar seus produtos. Ainda tenho bem na lembrança o seu andar tranquilo, o seu lugar aprazível. Agora, passando por cada córrego do nosso município, sentindo em muitos deles o cheiro de esgoto que segue para o mar, sinto o quanto é urgente pesar os prós e os contras, de avançar com cuidado, mas avançar mesmo em defesa da natureza! Imagine que tem "gente sabida" defendendo a verticalização, mais esgoto ainda para o nosso mar! "Ah! Depois a gente cobra do governo um tratamento adequado do esgoto!".

               Naquele tempo, meados de 1970, quando veio uma ordem para cortar as árvores que enfeitavam as margens da rodovia, o Seo Dito parou onde eu estava junto ao balaio da rede e disse: “É o progresso, meu filho! Aonde vamos parar?”

               Não chego a ser pessimista, pois, conforme o ditado, “o pessimista é um otimista bem informado”, mas desconfio que, a a partir dos abusos do sem-noção do meu entorno e dos poderosos devastadores da natureza em nível mundial, a política dos pequenos passos não salvará o mundo, mas... sigo fazendo a minha parte.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

A CASA

 
Sardinhas (Arquivo JRS)

                  Fui novamente ao Festival de Inverno de Campos do Jordão. Maravilhoso! Nenhuma família deveria deixar de apreciar músicas tão bem executadas! Ao passar pela placa da estrada indicando Renópolis, lembrei-me da Dona Hamako, da Mirtes e do pessoal dela. Foi onde eles cresceram. "Era um tempo muito bom!. A nossa casa foi construída com muito esforço pelos meus pais. No fim do dia, papai tirava as roupas e entrava no ofurô na maior paz". Assim me resumiu a estimada Mirtes (Harumi Honda). Por isso, publico outra lembrança, do Caderno de Hamako:

               A nossa casa era feita de tábuas. Meu pai ia no mato procurar a madeira mais dura para fazer as tábuas. Ele media no comprimento certo para cortar, depois colocava no cavalete mais alto do que a gente, deixando bem firme a madeira. Uma pessoa ficava em cima e outra ficava em baixo. O serrote era bem grande: era um traçador, tinha mais ou menos dois metros de comprimento. O telhado da nossa casa também era de madeira.
           A tábua comum da parede se chama ita, do telhado se chama maça, na medida de 50 centímetros por 15 centímetros de largura. Para pregar a maça, meu pai colocava um monte de pregos na boca, para ficar mais fácil e rápido o trabalho. Tinha dia que meu pai trazia porção de manjuba para comer. O que sobrava era salgado para secar. Era colocado no telhado de maça. Eu subia lá em cima da casa para virar a manjuba. À tarde era para guardar numa cesta. Secava mais ou menos dois dias e estava pronto para fritar, para comer.

               Tinha um senhor, amigo do meu pai, que comia tudo: rabo, cabeça... Depois falava que não tinha comido nada. Era para brincar com a gente.