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Titio e o cará moela em formato de asa (Arquivo JRS) |
Tio
Neco é muito querido por nós. Desde pequeno o que muito me impressionou nele
foi um pé esquisito, faltando um dedo. “Foi picada de cobra, menino!”. Agora,
depois de tantos anos, ele próprio explica:
Em
1956, quando eu tinha oito anos, fui picado pela cobra. Foi assim: eu fui à
roça com o papai [meu avô Estevan], como era costume. Lá chegando, armei a
gaiola no lugar que mais tarde o Lúcio [outro tio] morou. Logo estava cheia de tiés. Na
volta, pelo caminho da vargem, papai trazia nos ombros um cacho de bananas; eu seguia
na frente, distraído, depenando passarinho. Não muito longe de casa, ao
atravessar o Rio Ingá, pela baobeira que servia de ponte, bem na cabeceira, eu
não vi uma jaracuçu amarelo. Distraído
que estava, pisei em cima da cobra. Aí ela se enrolou até a metade da minha canela
e deu duas picadas em cima do pé. Eu a sacudi longe e atravessei a pinguela sem
nem saber como consegui. O meu pai largou o cacho de banana, cortou um cambará
e matou a cobra. Depois atravessou pela baobeira, viu o pé e a perna inchada. O
veneno agia: bateu íngua na hora e inchou. Todas as picadas de borrachudos
foram se abrindo e sangrando. Papai voou na pinguela, me carregando e eu chorando,
preocupado com injeção (porque todo mundo tinha medo, né?). Bateu nervoso no
velho, não conseguia me carregar. Foi correndo na frente em busca de ajuda; eu fui
seguindo manquitolando, devagar. Quem me buscou foi o seu pai [Leovigildo] após
a notícia. Na época, o Mané Belo tinha
uma carroça, vendia peixe. Alguém foi atrás dele para me levar ao Hipólito, que
tinha um armazém no Sertão da Quina e entendia de farmácia, tinha remédio. O
seu pai, que capturava cobras para o Instituto Butantan, amontoou as caixas e meteu fogo nelas. Tudo desapareceu em
cinzas. A mamãe, vendo que demorava o
carroceiro, me pôs nas costas e foi me levando para o Sertão. Ao chegar no
Morro do Foge, dois quilômetros depois, se encostou no barranco para tomar um fôlego e
retomou a caminhada. Bem em frente à
casa do tio Antônio Amorim, onde é a hoje é a escola [Áurea Moreira Rachou], fomos
alcançados pela carroça do Antônio Belo. Assim que chegamos, o Hipólito aplicou
duas injeções, depois de fazer um teste nos olhos. Foi uma em cada braço. Nisso
eu já estava com febre a variação. O Hipólito foi prender o gado e sofreu uma prensada na mangueira pelo touro reprodutor, quebrando as costelas. Ficamos os dois precisando de socorro. Já era noite
quando uma ambulância veio de Caraguatatuba para nos levar. Não sei se o
Hipólito foi logo medicado, mas eu fiquei desprezado no hospital. No dia
seguinte, quando o padrinho Antônio foi me visitar, ficou indignado me vendo
naquela situação em que eu estava largado num banco do corredor. Ficou bravo. Arrumou um táxi do Pacheco (Ford 50) e me
trouxe para a Ana Cruz, no Sapê, que era enfermeira da prefeitura. Na casa dela
eu fiquei quinze dias; o pé foi pretejando. Maria Cruz tinha a minha idade;
Clemente era pequeno; João Paulo, o pai, ajudava no desempenho da mulher. Passando
por lá o doutor Benedito, vendo a gravidade do caso, o pé gangrenado, imediatamente
ordenou para que me levassem para a cidade, ao hospital de Ubatuba, onde fui
examinado com mais atenção. Foi determinado o procedimento, mas não fiquei no
hospital. Eu, mamãe e padrinho Antônio ficamos instalados na casa da prima Zica
[Luzia], no final da rua Cunhambebe, próximo do matadouro. Ali moramos por oito
meses. O padrinho Antônio trabalhou para
ajudar nas despesas da casa. A mamãe ajudava em tudo. O médico cortou a pelanca
podre desde o pé até o tornozelo. “Começou a funilaria do pé”. A Ana do Bastião Migué, mulher do Antenor
disse assim: “Aí, Maneco, você parece mulher que ganhou nenê!” (Porque
precisava de muito pano para enxugar o pé, saía muita água). O doutor Benedito
e o enfermeiro Juscelino iam todos os dias para cuidar de mim. Era uma injeção
de penicilina todo dia, lavavam o pé com água oxigenada, retiravam uma espécie
de geleia que se formava todo dia no local, enchiam de pó antisséptico,
tornavam a medicar e enfaixavam. No
total, tomei doze soros de cobra. O ano era 1956. Após a recuperação da carne, nas pontas dos
dedos ajuntava um líquido que fedia demais. Quando estava bem cheio, até redondo,
uma “boca” aparecia debaixo do dedo que ficou duro, apontando para cima, e
vazava. Era um fedor só. Em 1956 passei por uma cirurgia na Santa Casa de São
José dos Campos. O dedo foi amputado, nunca mais se formou aquele líquido
horrível.