Praia (?) do Saco da Ribeira - Foto: Reinaldo Rodrigues |
Praia do Saco da Ribeira - 1945 (Ubatuba Histórica) |
De vez em quando,
relendo uns textos antigos, acho por bem divulgá-los. É o caso deste que relata
a importância da sabedoria popular, da vida difícil justificando que a
necessidade é mãe da criatividade.
Os
mais antigos falam das dificuldades dos “tempos d’antes”. É comum ouvir
algo sempre assim, ou parecido com isto: “Antigamente tudo era
dificultoso; não tinha estrada. Pra ir por mar dependia do tempo”. Eu fico
sempre imaginando a situação quando alguém ficava doente! Talvez fosse por isso
que quase todo mundo sabia um monte de remédios caseiros; tinham na memória
nomes de plantas, simpatias e outras coisas do gênero. Também havia elementos
estranhos, bizarrices no dizer de hoje. Você já imaginou chá feito a partir
do cupinzeiro? Ou do picumã e do colar de capiá?
E o que dizer do fumo com urina para curar frieiras? Porém, o que
mais me intrigava era ver em quase todas as casas, pendurado nas travessas,
chifres. Eles eram muito usados: geralmente depois de torrado e raspado, o pó
era usado para combater uma série de doenças, principalmente aquelas
relacionadas a vermes. Na casa do meu avô Armiro tinha dois: um curtinho,
queimado pela beirada; outro novinho, sem uso. Acho que servia como
sobressalente, para substituir o primeiro que já estava próximo do fim.
Então, lá vai o causo:
Armindo,
pescador do lado do Norte, num tempo de mar grosso, precisou vir às
pressas na cidade. Além de ter de resolver algumas coisas, tinha um filho
adoentado sem que nenhum chá fizesse efeito. Andava pelo centro apressado,
cumprimentando os conhecidos e prestando atenção nas novidades. Nisso encontrou
um compadre, justamente o padrinho do filho que não passava bem. Foi logo lhe
informando: “Ó compadre Zé Mesquita, foi bom encontrar o senhor!
O seu afilhado está muito doente. Ainda agora estou indo para a farmácia do
Filhinho para comprar um remédio. Tomara que ele tenha um bom, porque lá em
casa, desconfio eu, já se tentou de tudo. A mulher já começa a ficar
desesperada!”. O outro, meio sem jeito, se desculpou dizendo, como se
devesse alguma coisa: “Eu devo cortar banana nesta quinzena, mas
antes do tempo da tainha eu vou até a vossa casa ver o menino. Por enquanto não
posso fazer nada; só rezarei para que Deus olhe por ele, por nós todos”.
Despediram-se; cada qual tomando o seu rumo.
Depois de muitos meses, quando o Zé Mesquita, um bom pedreiro, morador
da praia da Fortaleza, até tinha se esquecido do afilhado doente, novamente os
dois compadres se encontraram perto da Mercearia Paulista. Era tempo de Festa
do Divino, mas a tainha já nem era tanta. O coração da cidade era só enfeite:
tudo tinha a cor encarnada e fitas coloridas. Na porta da igreja – a matriz -
ficava a guarda da bandeira, onde os devotos paravam para beijar a pombinha, se
demorando na admiração dos enfeites do interior do templo. Dito Bento,
consertando bicicletas ali perto, dizia: "É a beijação da pombinha
sagrada, onde as pessoas prendem suas fitas. Tem fila o dia inteiro na porta da
igreja". Ali se respirava o sagrado. O assunto dos dois compadres
sobre a festa do momento logo se esgotou. Então, meio sem jeito, o compadre que
morava mais perto da cidade perguntou do afilhado: “O menino está bom,
melhorou bem?”. Todo entusiasmado o pescador respondeu: “Está
uma maravilha! Curadinho, com a graça de Deus!”. “Ainda bem!” –
Suspirou o padrinho desnaturado. E continuou: “Quer dizer que o
Filhinho acertou no remédio? Qual é o nome?”. De pronto o Armindo respondeu
cheio de satisfação: “Ah! Não foi o Filhinho não quem indicou o
remédio”. Cheio de orgulho arrematou a conversa: “Eu
tirei da cabeça: peguei um chifre, torrei, raspei e dei na água morna para
tomar. Foi tomar e curar; uma luz que se acendeu! Não se deve esquecer das
coisas dos antigos, dos remédios que eles conheciam!”.
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