segunda-feira, 28 de novembro de 2016

AS CRÔNICAS





               Gostar de escrever eu gosto mesmo! Que maravilha é poder registrar fatos, sentimentos, aventuras e coisas específicas da nossa terra, do meu povo caiçara! Meu primeiro caderno de anotações (de histórias, poesias e causos) data de quando eu tinha 16 anos. Antes disso, qualquer motivação era para desenhos (carvão pelas paredes, rabiscos em papel de pão, figuras em páginas de caderno...). Ainda bem que Maria Eugênia e Estevan avançaram muito mais que o pai neste particular! Adoro seus desenhos!

               Meus escritos brotam das observações, das vivências e das prazerosas prosas do dia a dia. Também há os livros inspiradores. E são tantos! Mas voltando um pouco, parece que foi ontem que o pessoal do setorial de literatura (da Fundart – Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba) fez a indicação do meu nome para o concurso de crônicas. Depois me consultaram para saber a reação. A princípio não queria aceitar, mas alguém disse: “Aceita, Zé. O pessoal indicou o seu nome porque você é estimado, escreve coisas interessantes. Será uma desfeita não aceitar essa honra”. Aceitei. Agradeci muito pela consideração. Agora, após a premiação na última sexta-feira (25/11), já estou motivando mais gente a participar da próxima edição. Há talentos escondidos, sem oportunidades para se apresentar.


               Os premiados desta vez: O enigma de Andrômeda (Maria Helena Barreto Luiz), Os que conduzem e os que são conduzidos (Guilherme Carmona) e Estrela (André Telukazu Kondo). Parabéns a todos que participaram! Aguardo mais gente para o próximo ano. 

sábado, 26 de novembro de 2016

OUTRAS PÁGINAS

Outras páginas do guia turístico de Ubatuba, de 1951.

Nesse tempo, havia apenas a ligação rodoviária pela Estrada de Taubaté (Rodovia Oswaldo Cruz) ou pelo mar (navegação de cabotagem, canoa de voga...). Depois de alguns anos, após metade da década de 1950, aconteceu a construção da rodovia que nos ligou até Caraguatatuba. A BR-101 (Rodovia Rio-Santos) se completou por volta de 1977. Aí já podíamos ir até Paraty e apreciar as mais lindas paisagens da nossa terra. 



Carlos Borges Schmidt vendo o Corcovado, do Morro da Berta, em 1945.

Na semana passada, do Sertão das Cotias, o Corcovado (Arquivo JRS)



terça-feira, 22 de novembro de 2016

O PRIMEIRO GUIA TURÍSTICO



O meu amigo José Iraedson, ao receber um material relativo a Ubatuba, diz: "Isto o Zé tem que ver. É a cara dele". E acertou! Sobretudo ao me trazer este guia publicado em 1951, dando a conhecer as belezas do nosso município! Que legal, né? Digo que é o primeiro guia turístico da nossa terra. Se existir outro anterior, me avisem.



A praia da frente (Cruzeiro/Iperoig) era imprópria para banho porque era um mar bravio, praia de tombo, de perau como dizemos.





E este sobrado está na esquina onde um prefeito construiu um Centro do Professorado e depois o transmutou em teatro. Uma metamorfose que ainda não deu certo.



Eis o Perequê-açu! Praia maravilhosa! Nem dá para acreditar que hoje, sobretudo no verão, se torne um lugar de tantas sujeiras. 

sábado, 19 de novembro de 2016

EDUCAR PARA A DIVERSIDADE

Ricardo ordenando as peças (Arquivo JRS)

Uma amarração muito especial (Arquivo JRS)

Umas peças do Mestre Ricardo (Arquivo JRS)

               O meu amigo Ricardo, passando agora por momentos ruins, me ensinou neste semestre coisas maravilhosas a partir do bambu.

               Ricardo, professor de Educação Física, afrodescendente, tem uma história triste. Aos quatro anos foi abandonado na rua pela mãe. Por isso chorei ao ouvi-lo num dos seus muitos momentos difíceis: Só o meu primeiro nome eu sei que é meu. O restante, inclusive data de nascimento, foi o governo quem me deu. Fui criado em orfanato; nunca ninguém me adotou. Nunca soube de parente nenhum nesta vida. Você e outros que me consideram, que demonstram carinho, são os meus parentes”.

               Hoje, na véspera de celebrar o Dia da Consciência Negra, preocupado com a situação atual do meu amigo, faço questão de refletir sobre preconceito, linguagem e ação.

               Ao nascermos já temos uma herança cultural por pertencermos a uma família, a um grupo social. Com a nossa vivência vamos nos afirmando, revendo aspectos, refazendo essa herança. Nisso a linguagem é essencial. Por ela absorvemos e expressamos o mundo. Nossas necessidades essenciais e nossos anseios étnico nos permitem criar e recriar a linguagem.
               Foi o anseio étnico de Sartre, na segunda metade do século XX, que criou o conceito de negritude, fomentando a autoestima e os movimentos sociais negros decorrentes disso. O filósofo Albert Memmi, filósofo tunisiano, questionou, na mesma época o conceito de racismo. “O racismo é a valorização generalizada e definitiva de diferenças biológicas, reais ou imaginadas, em benefício de alguém a fim de justificar seus privilégios e suas agressões”. Para ele, o seu uso só se justificava se houvesse mais de uma raça humana. Ou seja, o mais adequado seria preconceito , discriminação, perseguição étnica etc.
               Algumas pessoas, miseráveis culturais eu diria, acreditam que os direitos devem variar de acordo com as diferenças étnicas. Nessa ideologia se tolera o sofrimento de alguns povos, inclusive a escravidão. Foi o caso do Brasil que se fez com suor dos indígenas, dos degredados e das etnias africanas. Quantos povos foram dizimados nesse processo? Caso semelhante fizeram os católicos da Península Ibérica contra o judaísmo. Os nazistas seguiram o mesmo princípio contra diversos segmentos étnicos, culturais e religiosos. No fundo, tudo converge para garantir a exploração, os privilégios de uma minoria. E a História continua neste rumo!

               De acordo com as pesquisas sérias, os negros, descendentes daqueles africanos trazidos à força para o Brasil durante mais de trezentos anos, continuam sendo os mais explorados; às mulheres se aplicam salários menores; os índios são discriminados porque suas terras são cobiçadas pelos latifundiários etc. Ensinamos que o ponto de partida dessas formas de exploração está na construção dos arquétipos (ideias, imagens, concepções que fazemos das pessoas e de quase tudo que nos rodeiam). Nós aprendemos, repetimos e criamos sem avaliar essas visões. Ou seja, criamos rótulos que muitas vezes, por nascer de pensamentos artificiais, não correspondem à realidade. Ciro Marconde Filho, sociólogo, chama estereótipo de vício de raciocínio. É o que está na base gerando leis, alimentado ideologias que resultam naquela falta de caráter, no problema patológico generalizado como racismo. Em pesquisa de 2003 (Fundação Perseu Abramo), 87% dos brasileiros consideram que o país é racista, mas só 4% se assumem racistas. Apesar de nossa Constituição dizer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, os negros continuam marginalizados, discriminados etc. No artigo 5º, inciso XLII está escrito: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”.

               Nos embates contra qualquer tipo de preconceito, nunca é demais relembrar o Dalai Lama, líder de uma etnia perseguida há tempo pelo governo chinês: “A meta da ética secular é nos libertar do sofrimento momentâneo, e, de longo prazo, é desenvolver a capacidade de apoiar o outro na busca da felicidade”.
               Nesta ocasião celebrativa, de luta dos movimentos sociais negros, que tal refletir a respeito da alteridade, do homem em ralação de interação e interdependência com o outro? Que tal, caros colegas, entender que alteridade implica se colocar no lugar do outro, numa relação de diálogo e de valorização das diferenças? Que tal repensar nossas atitudes nessa problemática enquanto educadores e gestores? Já dizia o Velho Brand:" Um simples gesto de aceitação pode ser decisivo para a felicidade de alguém".


               Agradeço ao meu angustiado amigo pelas lições. Acho que eu aprendi bem, Ricardo! Você é o nosso (eu, Egléia, Christiane, Luciane e Ayla) homenageado nesta celebração! Muita paz, muita saúde, continue na luta e seja feliz.

domingo, 13 de novembro de 2016

O CADERNO DE HAMAKO (IV)

Buscando lenha - Arte: Estevan

                  Dia chuvoso. Silêncio, tempo ideal para passar mais algumas histórias da Dona Helena. De repente busco o meu filho Estevan de outra atividade e lhe peço para ler esta parte e produzir um desenho. Adorei e creio que a Mirtes, o Minoru e os demais da Família Honda irão gostar. Na verdade, acho que todo mundo vai gostar!


O meu irmão Yassuo

               Todos os dias precisava socar arroz para a janta e almoço do outro dia. Nessa época não tinha aula de japonês. Eu e meu irmão Yassuo éramos os que socavam arroz. Mas Yassuo fazia hora para não ajudar a socar o arroz. Então eu lhe falava para comer logo e vir me ajudar a socar arroz. Eu falei várias vezes, mas ele não vinha. No fim, ele ficou com tanta raiva que jogou o garfo que segurava. Bateu bem no meu cotovelo e começou a sair sangue. Aí ele foi buscar o iodo, passou no machucado e amarrou com o pano. Depois disso foi socar sozinho. Ele ficou tão preocupado, pedia desculpas várias vezes. Depois que estava socado, eu fui fazer a janta. Eu era pequena, mas fazia de tudo. Tirava água do poço para fazer tudo. Fazia ofurô também.


               O ofurô era esquentado com lenha. A lenha a gente ia buscar na roça: levava um saco de estopa e enrolava num pau comprido e trazia para casa. Depois cortava e fazia fogo no ofurô. Quando chovia, a lenha ficava molhada e não fazia fogo. Eu soprava, mas só saía fumaça preta, nada de fogo. À noite, quando ia dormir e fechava os olhos, eles ardiam, saíam lágrimas.

NEIDE, CECÍLIA, ELIZABETH... ENFERMEIRAS DA MINHA VIDA!

A.L.A.: escola das Irmãs Agostinianas. Olha a Lira Padre Anchieta! (Arquivo Histórico)

               Eu tive muitas oportunidades de comprovar o sacerdócio que é a enfermagem! Testemunhei a Neide indo pelos caminhos ao atendimento dos pobres caiçaras, me submeti às agulhas da Cecília nas muitas doações de sangue, encarei o desafio da Beth ao dizer: “A Dona Irene vai deixar o hospital, mas antes disso precisamos lhe dar uma moradia digna, no Monte Valério”. E lá fomos nós, gente da Estufa, em mutirão, construir a casa da mulher.

               No século passado, logo depois do fim da segunda guerra mundial, a filosofa Hannah Arendt quis entender o que sustentava as atrocidades do nazismo, chegando à conclusão o absurdo da banalidade do mal é “consequência de uma ação impensada, alienada e conivente, que propaga um tipo de normalidade, de hábito insensível. Esse mal faz ignorar as vítimas e pode se instalar tanto em regimes totalitários quanto democráticos”.

               O meu autor do momento, James Clavell, no livro Gai-Jin cita: “O dinheiro torna qualquer modo de vida possível. O dinheiro, sob a forma de ouro, prata, arroz ou seda, até mesmo esterco, o dinheiro é a roda da vida, faz as engrenagens funcionarem”. É preciso outras precauções, além da febre do ouro e da questão do poder, no combate à banalidade do mal.

               No sábado, dia 12 de novembro, na casa da minha amiga escutei o seguinte: “Qual é o trabalho das enfermeiras num hospital? Não é zelar pelos pacientes, medicá-los conforme determinação médica e estar sempre atenta aos possíveis chamados de intervenção nos variados quadros dos pacientes, com suas situações mais graves?”. “É, acho que também é isso!”. “Pois é, amigo! E o meu irmão está lá, nos últimos suspiros de vida; o próprio médico já nos preparou para isso. Agora, o que podemos fazer senão lhe transmitir a solidariedade?”. “É, concordo. O que se espera em momentos assim é apenas paz consigo mesmo. Por isso é importante os familiares demonstrarem ao menos um semblante de aceitação, de despedida,  de perdão pelos momentos de fraqueza do doente. Se os amigos também fizerem isso será melhor ainda!”. “Agora entenda amigo: somos pobres como você bem sabe, o quarto que meu irmão divide com outra pessoa é pequeno, mas tem leito para mais um. Ele não tem a idade que a lei do estabelecimento permite ter acompanhante. Nem sei se seria útil alguém a mais só para olhar o seu definhar. Eu, pessoalmente, não aguento aquele pesar do ambiente. Expliquei isso para a enfermeira que, mais atenta ao seu celular, queria me impor como acompanhante, que eu ficasse de vigília durante a noite, depois de estar por ali o dia inteiro. Ela, continuando mais de olho no seu aparelho do que em mim, disse que tem uma solução: há cuidadores; o preço é de cento e dez reais durante o dia e cento e cinquenta por noite. Será que ela pensa que somos ricos?”. “É lógico que não, amiga! Rico vai ficar nesse hospital, num quarto apertado, com um assento rústico para seu acompanhante passar a noite? E vai achar normal duas ou três profissionais velando suas mensagens nos celulares em um recôndito esbranquiçado, mal percebendo as lamúrias que por ventura escapam pelos corredores? Acho que passa da hora de recordar o sacerdócio das primeiras enfermeiras formadas em Ubatuba, atendendo até na tragédia ocorrida na cidade vizinha de Caraguatatuba, em março de 1967, sob o comando da Irmãs Agostinianas. É comovente ler uma delas relatar: ‘Para chegarmos a Caraguá tivemos que atravessar um mar de lama. E só quem aventurava numa dessas eram os homens. De saída, nos apresentamos na cadeia local, onde estavam reunidos os voluntários. Fomos de caminhão. Os homens bebiam antes, para aguentar, pois a chuva continuava caindo e penetrava até os ossos. No lugar que recebia os voluntários trocamos de roupa e logo nos mandaram para o Clube XV, onde se achavam umas trezentas pessoas abrigadas, pois suas casas tinham sido destruídas. Havia ali muitas crianças e idosos. Era um choro contínuo de crianças e de adultos. Uma havia perdido isto, o outro mais aquilo, um terceiro familiares!... Lembro-me de um senhor que chegou acalentando um pedaço de madeira, como se fosse uma criancinha. Aproximei-me e lhe perguntei o que estava fazendo: - É o meu bebê, a mãe dele foi na correnteza’. 

      -  Amiga, o que vemos é a atualização da banalidade do mal. Ainda bem que existem as exceções!

               Isto ensina-se na escola, nas aulas de Filosofia: “Hannah Arendt encontrou-se diante de um enigma assim quando escreveu a tese da banalidade do mal, na tentativa de compreender a maldade praticada pelos homens”. Muitas das maldades nem são percebidas como maldades. Seus praticantes são jovens, adultos ou idosos, esposas ou maridos exemplares, pais dedicados, praticantes de alguma religião, alguém que se julga devidamente civilizado, cumpridor de seus deveres, sobretudo de seus horários que justificam seus salários e asseguram seus empregos. Nem percebem que são aliados de um sistema que está aniquilando as pessoas, a começar dos mais pobres, que mereceriam essa atenção devotada aos seus celulares.

               Neide, Cecília, Elizabeth, Isabel, Balbina e Mercedes estão entre as enfermeiras da minha vida. Agradeço-lhes pelos exemplos em minha vida. Parabéns aos profissionais da saúde que não se afastam do desafio de zelar pela vida de tanta gente na Santa Casa da Misericórdia de Ubatuba.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

E AÍ COMPADRE?

             
Lhe digo uma coisa, Joban: essa caiçarada gosta de história e de causos!

               Quanta honra poder publicar um causo do JOBAN, caiçara da praia da Enseada!


            Antigamente, há muitos anos atrás, antes da construção da BR-101, popularmente conhecida como Rodovia Rio-Santos, rodovia que liga Santos ao Rio de Janeiro pelo litoral, era muito difícil visitar as praias ao lado norte do município. O acesso a essas praias era através de uma trilha passando por montanhas e praias, muitas vezes íngreme e levava-se quase um dia todo para ir a uma dessas praias, e por isso normalmente ia-se a cavalo para adiantar a jornada. Jacundino, morador do bairro do Itaguá onde tinha uma vendinha, resolveu visitar seu compadre Jacozinho casado com Dona Dinda, moradores da praia do Prumirim e levar a ele uma resma de fumo e palha de milho para seu cigarrinho habitual que ele gostava de pitar no fim de tarde para espantar os mosquitos, também usar o fumo para umas mezinhas. Na manhã seguinte levantou com o raiar do dia porque a jornada seria longa e cansativa, tomou seu café, selou o cavalo emprestado do seu vizinho Zé do Pinho, pensou se devia levar uma matula porque na última visita que fez o compadre não ofereceu nem um café, dizendo que já tinha almoçado e a comadre estava cansada da lida na roça não podia ir para o fogão preparar um de comer, na verdade o compadre era um pão duro, sovina, todos diziam isso, pensou em cortar um pouco de salame e por no pão amanhecido que sobrou da vendinha, mas depois decidiu, afinal ele ia levar fumo e palha, talvez o compadre se condoesse dele e oferecesse alguma coisa, então desistiu. Montou no cavalo e iniciou sua jornada rumo ao Prumirim. Depois de enfrentar muito sol nas costas e amassar muito mato chegou à casa do compadre, era perto do meio dia, o sol estava quase a pino. Chamou o compadre:
            – Cumpadre Jacozinho! Ó de casa!!!
            Nesse momento surgiu seu compadre Jacozinho com a enxada suja de barro às costas parecendo que vinha da roça e disse:
            – Se apeie desse cavalo cumpadre e vamos entrando pra gente proseá um pouco.
            Jacundino desceu do cavalo, deu ao compadre o fumo e palha que trouxe esperando o convite do mesmo para almoçar. Entraram na casa e ele perguntou pela comadre.
            – Cadê a cumadre Dinda, cumpadre, tá na roça?
            – Tá não, tá na cama doente, com constipação.
            Pelo visto com a comadre doente, posso dar adeus ao almoço, pensou Jacundino.
            – Cumpadre Jacozinho vou-te contá as novidades lá da cidade, muita confusão na política você nem imagina o balaio de gato que tá acontecendo lá.
            – É mesmo, cumpadre? Me conta, tô morrendo de curiosidade.
            – Conto sim, se for regado com um bom cafezinho de cana fica melhor.
            – Me adiscurpe cumpadre Jacundinho, mas a garapa acabou hoje de manhãzinha, e o café precisa torrá os grãos e adispois moê, e com a Dinda de cama não dá pra fazer um café de cana, mas se quisé água da bica tem ali na moringa é só pegá.
Jacundino viu que não conseguiria nada do compadre, essa doença da Dona Dinda talvez fosse mais uma desculpa, esqueceu-se da fome e começou a prosear, contando os fatos verídicos e inventando outros. A conversa estava tão animada que eles nem perceberam que a tarde entrou noite adentro. Só perceberam quando viram o pisca-pisca dos vagalumes pela moldura da janela aberta em contraste com o céu começando a estrelar.
            – Preciso ir mi já, anoiteceu cumpadre Jacozinho, vou pegar o cavalo e vou mimbora.
            – Vai não cumpadre Jacundino, viaja a noite a cavalo nessa trilha é arriscado demais, pode o cavalo quebra a pata, vosmicê cair em argum barranco. É melhor vancê dormi por aqui e ir amanhã cedinho. Pode deitá nessa esteira de taboa, mas lava o rosto e os pés, para não sujá e estraga a esteira.
            – Tá bom cumpadre Jacozinho – e vendo que não seria servido nada e a fome estava demais, seu estomago roncava mais que garoupa presa em anzol e entocada na pedra, viu na lavagem dos pés uma dica para pedir um de comer – mas posso lhe aperguntá uma coisa?
            – Apergunte homem, diga lá o que é?
            – Será cumpadre Jacozinho que não faz mal lavá os pés com a barriga vazia?
            – Faz não cumpadre –fingindo não ter entendido a indireta – faz mal lavar com a barriga cheia.
            Lá do quarto a comadre Dinda, vendo que o compadre iria dormir na pura esteira aconselhou.
            – Sinhô Jacozinho, meu marido, arranja um cobertô pro cumpadre não passá frio.
            – Cumadre Dinda – prontamente respondeu o Jacundino no desespero da fome – não precisa se incomodá, tendo arroz com farinha já tá bom pra mata a fome.

domingo, 6 de novembro de 2016

NINGUÉM É DONO DO MAR



Morro da Santa Rita; degradação até na costeira (Arquivo JRS)

      O mano Mingo, nesta poesia, nos remete à sustentabilidade, ao desenvolvimento que não é destrutivo, sobretudo do meio ambiente que é a nossa "galinha dos ovos de ouro". O mar não tem dono, a costeira é para todos, a vida tem de ser respeitada, inclusive dos demais seres que se desenvolveram neste planeta bem antes dos homens.

Ninguém é dono do mar - Domingos Fábio dos Santos

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Os dias emendam-se nas semanas,
o barco continua atracado ao porto
e o pescador está ancorado em casa
esperando o tempo ruim passar.
Por ordem de São Pedro
o céu despeja tanta água,
decerto para dar aos peixes uma trégua
e tempo para andejar pelos quatro cantos
da pátria líquida, oceânica,
que se alguém puser porteira,
ou fazer muro na fronteira,
construção de pedra ou cimento armado,
as ondas lá vão arrancar,
pois chão pode ter proprietário,
mas ninguém é dono do mar.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O CADERNO DE HAMAKO (III)

       
Olha nós no Recanto Casanossa!(Arquivo JRS)
         Hoje, apesar de todas as facilidades, a maioria dos alunos não valoriza escola, os estudos. Estudar é hábito que se cultiva a partir do primeiro impulso dado pela família e continuado por professores idealistas, daqueles que nos cativam a partir de sinceros acolhimentos, de leituras prazerosas e das descobertas do mundo dos números e das letras. É isso que nos faz andar quilômetros, viajar muito ou até mesmo buscar outras cidades ou países. Só a boa educação pode mudar o mundo para melhor! Por isso é lamentável o descaso dos governantes para com a educação brasileira!

         No CADERNO DE HAMAKO, na parte que eu escolhi para hoje, recordei da minha primeira escola, na casa da Tia Martinha (do Tio Cláudio), no morro da Fortaleza, onde chegávamos com as pernas encharcadas dos serenos nos capins, com um caderno e um lápis protegidos numa sacola plástica, num saco de arroz. Também levávamos nosso peixinho frito, nossa farofa para a hora do recreio. A sede a gente matava numa bica de bambu, da água que vinha da grota ali perto.  Lá estudavam crianças que vinham de longe (Praia Brava, morro do Bonete...), e, numa sala multisseriada, alimentaram seus sonhos, né Cláudio? Né, Clotilde? Né, Cida? Né, Rosângela? Né, Palmira? Né, Ana?

A escola
               A escola era longe, distante 6 quilômetros. A gente ia cedo e voltava à noite. De manhã, das 8 horas até 12 horas, aprendia aula em português. Das 13 horas até 16:30 horas as aulas eram em japonês. A gente levava marmita para comer ao meio dia. Quando acabava as aulas, era hora de fazer a faxina. Depois que tudo estava limpo, a gente ia embora. No inverno, quando chegava na casa, já tinha estrelas.
               Essa escola era uma escola mista: uma classe era dos meninos, outra era das meninas. Nós todos não sabíamos falar a língua portuguesa. Eu até que sabia um pouco porque meu pai tinha uma porção de camaradas para trabalhar na roça. Uma vez por mês eu trabalhava na enxada e na foice para limpar o campo. Tudo era serviço das crianças: os meninos roçavam em volta do campo e as meninas carpiam o mato.
               A escola era num lugar chamado Areado. O cabeçalho assim se escrevia: Escola Mista Rural de Sete Barras. Nela se estudava até o 3º ano. Depois fui para outra escola, um grupo escolar que tinha o 4º ano. Ficava a 6 quilômetros da nossa casa; eu andava 3 quilômetros e corria os outros 3. Nesta outra escola era só brasileiro; ficava na cidade de Sete Barras.

               Eu tinha dois irmãos que andavam 13 quilômetros para estudar. A gente nunca faltava às aulas, nem se atrasava. Crianças que moravam na cidade chegavam sempre atrasadas nas aulas.