Olha a perseguição às tainhas, no Canto do Acaraú, em 1960! (Arquivo Igawa) |
Num
arranjo de última hora, quando faltou o artista principal, fui convidado para
falar a respeito de ser caiçara a um grupo de alunos e professores.
Para
começar, parti de uma frase da Laura Igawa, que agora se encontra na Tailândia,
num trabalho voluntário: “Quando há
envolvimento com as pessoas e a comunidade local, você só tem a aprender”.
É o que a Antropologia denominou de alteridade, ou seja, ver o outro, enxergar
o outro, respeitar o outro, aprender a viver em comunhão com os diferentes de
nós.
Dois
conceitos são complementares neste assunto: caipira e caiçara. Caipira deriva
de caipora, de morador do mato. Então, caipira é quem está mato adentro.
Caiçara deriva da caiçara, o cercado que protegia as ocas indígenas e demarcava
o terreiro coletivo do grupo tupinambá em Iperoig (Ubatuba).
E
onde está esse cercado hoje, que justifica a denominação da nossa cultura? Está
muito visível! Basta olhar para um lado e ver o mar e para o outro e divisar a
serra! Entre esse cercado natural se formou a cultura caiçara. Ou seja, caiçara
é povo que, nessas condições específicas, entre a serra e o mar, se formou.
Fácil assim! Logo, caipira é todo aquele que tem sua origem além da serra. “Gente
de serra acima”, como diziam os meus antigos. São Luiz do Paraitinga,
Paraibuna, Bairro Alto, Vargem Grande, Catuçaba, Taubaté, Sorocaba, Araraquara
etc. são espaços de cultura caipira. Pobre daquele que se envergonha das suas
origens!
Indígenas,
portugueses pobres e negros trazidos como escravos aqui se juntaram para a
sobrevivência, fizeram parceria com o meio ambiente. Cada um entrando com as
suas contribuições e criando muitas outras. “A necessidade é mãe da
criatividade”. São marcas da cultura,
dentre outras mais: entender os fenômenos naturais, técnicas de cultivo e de
caça e pesca, artesanato, festas e religiosidade. Hoje eu escolhi explicar um traço cultural nosso: o pitirão.
Pitirão vem de pitirum, dos indígenas. O sentido moderno é conhecido como
mutirão, trabalho realizado por muita gente. No nosso caso, era um ajutório (uma relação de comunhão que
tem como princípio a reciprocidade genuína).
Fiz
favores, recebi favores porque assim aprendi na cultura do pitirão. Trabalhei nesse ideal em casas e roçados de um tanto de
gente, de “uma porção de gente” como dizia a mamãe. Era favor que a gente esperava
ser retribuído. Exemplo: Viajo regularmente de ônibus para trabalhar no
município vizinho de Caraguatatuba. Quando alguém me oferece carona, eu
retribuo sempre pagando ao menos aquilo que eu pagaria à empresa de ônibus. É
favor. O que ficou além disso é ajuda. Expliquei desta forma ao amigo Carlos
Laureano, um caiçara de Caraguatatuba.
Ajuda
é outra coisa! Os velhos caiçaras ensinam que ajuda não se diz; só se sente. “Uma
boa obra, se tornada pública, deixa de ser bondade”. Minha vó Eugênia, em
muitos serões recordava: “A bondade não tem sentido para esta vida, mas só para
quem deseja a vida eterna. Fazer propaganda dela é não desejar a eternidade”. Disse isso porque, desconfio que, dentre os
poucos caiçaras que se orgulham de ser caiçara, quase ninguém faz questão de
rememorar esse aspecto cultural nosso. E sabe por que é assim? Porque veio o
turismo, veio a televisão, veio a propaganda, veio o migrante em busca de
melhores condições de vida! Gente que deixou sua realidade de roça, sua cultura
caipira ou sua cultura de outras regiões deste Brasil afora querendo melhorar
de vida, querendo consumir mais etc.
Quem
chega buscando a sobrevivência, dificilmente respeitará os valores culturais do
outro, não vai considerar as sacralidades
da terra, do mar, dos rios, das pessoas e dos demais seres. O dizer do meu povo
resume isso: “Farinha pouca... meu pirão primeiro!”. É quando se instala a
degradação, a sociedade de consumidores que não é capaz de saber cuidar desse
mundo caiçara. E, pior, justifica o injustificável (omissão, ganância, egoísmo,
perda de sensibilidade dos favores e da ajuda, etc.). Assim, joga esgoto no
rio, desmata sem nenhuma razão plausível, invade locais vitais aos outros
seres... tudo em nome da lucratividade! E quantos filhos da terra continuam
embarcando nessa!
Enfim,
eu quase que improvisei para a tal palestra, dentro da religiosidade caiçara: ajuda é o que você não vai dizer para ninguém,
pois acredita que só à eternidade diz respeito; favor é aquilo que você espera
retribuição. Sabiamente, a vovó Eugênia não se cansava de repetir esta frase
bíblica: “Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita”.
No
final, o Carlos me pergunta:
-
Essa sua fala foi favor ou ajuda?
-
Foi favor porque eu espero ser retribuído. Pode ser ajuda porque eu não sei o
que provocou ou pode provocar nas atitudes de quem participou, de quem ouviu
com muita atenção.
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