sexta-feira, 2 de setembro de 2016

PITIRÃO: COISAS DA CULTURA

Olha a perseguição às tainhas, no Canto do Acaraú, em 1960! (Arquivo Igawa)

               Num arranjo de última hora, quando faltou o artista principal, fui convidado para falar a respeito de ser caiçara a um grupo de alunos e professores.

               Para começar, parti de uma frase da Laura Igawa, que agora se encontra na Tailândia, num trabalho voluntário: “Quando há envolvimento com as pessoas e a comunidade local, você só tem a aprender”. É o que a Antropologia denominou de alteridade, ou seja, ver o outro, enxergar o outro, respeitar o outro, aprender a viver em comunhão com os diferentes de nós.

               Dois conceitos são complementares neste assunto: caipira e caiçara. Caipira deriva de caipora, de morador do mato. Então, caipira é quem está mato adentro. Caiçara deriva da caiçara, o cercado que protegia as ocas indígenas e demarcava o terreiro coletivo do grupo tupinambá em Iperoig (Ubatuba).

               E onde está esse cercado hoje, que justifica a denominação da nossa cultura? Está muito visível! Basta olhar para um lado e ver o mar e para o outro e divisar a serra! Entre esse cercado natural se formou a cultura caiçara. Ou seja, caiçara é povo que, nessas condições específicas, entre a serra e o mar, se formou. Fácil assim! Logo, caipira é todo aquele que tem sua origem além da serra. “Gente de serra acima”, como diziam os meus antigos. São Luiz do Paraitinga, Paraibuna, Bairro Alto, Vargem Grande, Catuçaba, Taubaté, Sorocaba, Araraquara etc. são espaços de cultura caipira. Pobre daquele que se envergonha das suas origens!

               Indígenas, portugueses pobres e negros trazidos como escravos aqui se juntaram para a sobrevivência, fizeram parceria com o meio ambiente. Cada um entrando com as suas contribuições e criando muitas outras. “A necessidade é mãe da criatividade”.     São marcas da cultura, dentre outras mais: entender os fenômenos naturais, técnicas de cultivo e de caça e pesca, artesanato, festas e religiosidade.   Hoje eu escolhi explicar um traço cultural nosso: o pitirão.
               Pitirão vem de pitirum, dos indígenas. O sentido moderno é conhecido como mutirão, trabalho realizado por muita gente. No nosso caso, era um ajutório (uma relação de comunhão que tem como princípio a reciprocidade genuína).

               Fiz favores, recebi favores porque assim aprendi na cultura do pitirão. Trabalhei nesse ideal em casas e roçados de um tanto de gente, de “uma porção de gente” como dizia a mamãe. Era favor que a gente esperava ser retribuído. Exemplo: Viajo regularmente de ônibus para trabalhar no município vizinho de Caraguatatuba. Quando alguém me oferece carona, eu retribuo sempre pagando ao menos aquilo que eu pagaria à empresa de ônibus. É favor. O que ficou além disso é ajuda. Expliquei desta forma ao amigo Carlos Laureano, um caiçara de Caraguatatuba.

               Ajuda é outra coisa! Os velhos caiçaras ensinam que ajuda não se diz; só se sente. “Uma boa obra, se tornada pública, deixa de ser bondade”. Minha vó Eugênia, em muitos serões recordava: “A bondade não tem sentido para esta vida, mas só para quem deseja a vida eterna. Fazer propaganda dela é não desejar a eternidade”.  Disse isso porque, desconfio que, dentre os poucos caiçaras que se orgulham de ser caiçara, quase ninguém faz questão de rememorar esse aspecto cultural nosso. E sabe por que é assim? Porque veio o turismo, veio a televisão, veio a propaganda, veio o migrante em busca de melhores condições de vida! Gente que deixou sua realidade de roça, sua cultura caipira ou sua cultura de outras regiões deste Brasil afora querendo melhorar de vida, querendo consumir mais etc.

               Quem chega buscando a sobrevivência, dificilmente respeitará os valores culturais do outro, não vai considerar  as sacralidades da terra, do mar, dos rios, das pessoas e dos demais seres. O dizer do meu povo resume isso: “Farinha pouca... meu pirão primeiro!”. É quando se instala a degradação, a sociedade de consumidores que não é capaz de saber cuidar desse mundo caiçara. E, pior, justifica o injustificável (omissão, ganância, egoísmo, perda de sensibilidade dos favores e da ajuda, etc.). Assim, joga esgoto no rio, desmata sem nenhuma razão plausível, invade locais vitais aos outros seres... tudo em nome da lucratividade! E quantos filhos da terra continuam embarcando nessa!
               Enfim, eu quase que improvisei para a tal palestra, dentro da religiosidade  caiçara:  ajuda é o que você não vai dizer para ninguém, pois acredita que só à eternidade diz respeito; favor é aquilo que você espera retribuição. Sabiamente, a vovó Eugênia não se cansava de repetir esta frase bíblica: “Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita”.

               No final, o Carlos me pergunta:
               - Essa sua fala foi favor ou ajuda?

               - Foi favor porque eu espero ser retribuído. Pode ser ajuda porque eu não sei o que provocou ou pode provocar nas atitudes de quem participou, de quem ouviu com muita atenção.

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