quarta-feira, 28 de setembro de 2016

RETORNO À OCASIÃO

     

     
Ubatuba em época de tainha (Arquivo Igawa)
       Há dois anos, respondendo ao colega Chico Abelha, publiquei o presente artigo para maiores informações a respeito da Caçandoca. Só esqueci de lhe dizer o quanto foi importante, na luta local, a entrevista com a Dona Maria Galdino, feita pelo mano Mingo no começo de 1990. Acho que cabe a ele publicar essa riqueza por ele escavada. Aguardemos!

     Olá, Chico! Está acompanhando essa narrativa? Ela é localizada, ou seja, a partir do lugar, das pessoas e da problemática da minha ascendência paterna (da região da Caçandoca). Porém, se aplica ao macrocosmo de Ubatuba. É por isso que, numa audiência pública das terras caiçaras, um representante da promotoria pública estadual afirmou que “não existe um pedaço de terra em Ubatuba que não tenha pelo menos três documentos brigando entre si”. 

      É bom saber: até o princípio do século XX, o caiçara era semi nômade: só parava num lugar para cultivar e pescar por um tempo. Isto significa que, cansando dali, cansada a terra, dando saudade de alguém em outro lugar, ia-se. Os pertences eram poucos; cabiam numa canoa. Logo, naquele lugar que ele ocupou,  se arruinava a casa de pau-a-pique coberta  de sapê. Tudo voltava a ser mato fechado. Era uma movimentação, a bem dizer, espontânea. O que eu comecei a lhe explicar na primeira parte da presente questão tem uma forte correlação com a história de um povo bem distante: os judeus, cuja diáspora, “esparramação”, conforme explicação do saudoso tio Maneco Mesquita, “se deu por volta do ano setenta depois do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo”.


       Dentro do conceito de diáspora, eu fiz questão de visitar os parentes em Vicente de Carvalho, em São Vicente, nos morros (do Funhanhado, do Algodão, das Moças, do Querosene), na Estufa, no Porto Novo, nos Tourinhos etc. Ainda tenho gravações - em fitas cassete! - inéditas de muita gente, inclusive do patriarca Gabriel e da matriarca Benedita do Caliano. "Tudo gente que foi morar em lugares feios!".  Como diria a vovó Martinha ao escutar as minhas narrativas naquela época: “É tristeza de dá dó”.
      Mais triste foi a condição de quem se fez de capacho dos ricos.       Se tornar capacho, lugar de se pisar, provoca a perda da identidade, a renúncia aos muitos valores seculares. Também impede a tomada de consciência de sua condição de exploração. Passam a valer os ditados: “Quem puder mais chora menos”, “Farinha pouca, meu pirão primeiro”...E por aí vai.  

          Copiar os exemplos de outros pobres que vão chegando de outras regiões empobrecidas, desde a década de 1970,  passa a ser uma alternativa. Por isso vale avançar nos espaços que ainda não estão com os ricaços. “Questão de sobrevivência” justifica a cobiça que vai danando ainda mais a vida dos irmãos, chegando ao ponto de se colocar a favor dos proprietários de mansões nos jundus.  Até que um dia, esgotadas as já minguadas tetas, passando por condições degradantes, o pensamento se volta às origens. “Que saudade das cebolas do Egito!”. De repente, as opiniões mudam: “Estava certo aquele que tentou se agarrar na sua posse, no seu modo de vida”; “O compadre é pobre, não tem carro, nem luz em casa, mas vive em paz, pode pescar e plantar”...

         Começa o entendimento e a vontade de voltar no tempo. Só que agora o tempo é outro, as necessidades são outras. A cultura também já se modificou. 
     Diante das impossibilidades em face do consumismo ambicionado, o assistencialismo público se apresenta como a solução.
         O ruim disso é que a volta ao espaço original não significa retorno à cultura raiz. E o que se vê, mesmo causando melindres, é “comunidade” bem nos rumos globalizantes, onde o discurso “ideológico” não condiz com a prática. Quando aparece alguém apresentando questões em torno disso, as reações evidenciam a realidade de quem que não é capaz de identificar a sua condição de submetido. O pior: pode conseguir o apoio daqueles ignorantes da condição de exclusão e inferioridade de que foram vítimas. O que eu quero dizer se resume ao seguinte, parafraseando o vovô Estevan dando uma moral após uma certa história de castelo: 

       “Não se mata sapo, menino! Ele pode ter um aviso pra você!”.  Melhor dizendo (ou atualizando o dizer do vovô): podemos estar matando o sapo que somente está mostrando uma realidade muito maior que a nossa lagoa. E o que pode acontecer? Depois do sapo exterminado, os mosquitos e outras denominadas pragas podem se refestelar.

       É só. Tenho dito. Um abração.

sábado, 24 de setembro de 2016

FEIRA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL - RELATOS (VII)

1993- Eu, Fábio e comunidade na escola do Saco do Sombrio (Arquivo JRS)

A ESCOLA DA VIDA  -  Regina Natividade de Azevedo
(Parte II)

Partindo daí, as aulas tornaram-se ricas, tanto para mim como para os alunos. Na verdade, o que acontece é que o saber contido no ler, escrever e contar dessa gente é toda uma cultura já definida. A cultura é a do lugar, e, a escola, ao que parece, desvaloriza todo um valor cultural contido na vida dessas pessoas. Eis então a dificuldade que surge: “Saber levar a vida dessa gente para dentro da escola e a escola transformar-se em vida”. No início acharam estranho o fato de eu estar interessada em conhecer seus costumes, o modo de vida para, a partir daí, trabalhar esses dados no currículo. Porém, aos poucos foram me aceitando.

Houve crianças que deixaram de frequentar a escola por achar que eu não deveria me envolver efetivamente com outras famílias da praia vizinha. Aos poucos é que fui conseguindo entender o que estava acontecendo. Houve ainda um ponto de dificuldade no desenvolvimento do trabalho, quando começaram a surgir problemas de relacionamento, que foram gerados pelo choque cultural professor/comunidade.

Eu queria partir da realidade deles, mas por esbarrar nestes problemas, ficou difícil principalmente por eu não ter com quem desabafar e/ou trocar experiências, ou mesmo dar continuidade a um sistema construtivista. Sei que eles não estavam acostumados com o sistema que adotei, pois estávamos deixando de lado velhos costumes como o uso da cartilha, cópias e partindo para um trabalho mais exigente – em grupinhos, com discussões – enfim, atividades que passaram a explorar mais o conhecimento.
Eu trabalho com uma classe multisseriada, com atividades desenvolvidas em conjunto. Toda a produção das crianças é exposta como forma de se autovalorizarem.

Fizemos trabalho como desenhar mapas e o local de moradia, procurando fazer o máximo de observações como: o tipo de vegetação, as construções das casas, o trajeto casa-escola, a escola e sua localização etc. Chegamos até a pesquisar um pouco sobre a história da vida de cada um, o que fazem em relação a trabalho, lazer, escola. Dessas atividades, cada criança elaborou seu próprio livrinho de história. Antes, porém, trabalhamos em cima de diversas leituras, de diversos autores. A meu ver, no exercício de leitura, era  e é preciso saber trabalhar os conteúdos antes da mesma (da leitura), de forma que as crianças possam assimilá-los. Não foi fácil porque nem tudo que para nós é bom e interessante tem para essas crianças a mesma importância. E como desenvolver um trabalho que agradasse a todos ao mesmo tempo, inclusive a alguns pais que pareciam no início estar preocupados com a validade do novo método. Haja fôlego!

Depois de um tempo participei de um curso sobre alfabetização na pré-escola, cujo tema central era não desvincular as disciplinas umas das outras, e nem da realidade das crianças. Voltei para a escola mais confiante, trabalhando assim a interdisciplinaridade. Passei a usar alguns livros que me ajudavam no preparo das aulas quanto ao objetivo, conteúdo, estratégia, interdisciplinaridade e avaliação no decorrer das atividades. “A Proposta Curricular para a Educação na Pré-escola”, da CENP, 2ª edição, 1991. E também as propostas curriculares para o ensino das diversas disciplinas.

Resultados
Como principais resultados e/ou mudanças tivemos:
1º) O registro de algumas informações sobre a comunidade do Sombrio.
2º) Um maior conhecimento das crianças sobre a história do lugar onde moram e onde nasceram.

Durante o ano também fizemos planos para outras atividades que não puderam ser realizadas, como a horta por exemplo. Pretendo retomar essas atividades no próximo ano.

Conclusão
É nessas escolas, com essas condições, que professores recém-formados, sem experiência, dão início à carreira, no Sistema de Educação. Geralmente o professor não faz a escolha. Essas escolas são “sobras”. Sem falar que assumir essas escolas é fazer também uma opção de vida, que vai além da opção de trabalho, porque é aqui que passamos a maior parte do nosso tempo, dependendo de “canoa” dos pescadores para sair, o que às vezes é difícil, mesmo em época de pagamento, reuniões e caso de emergência. E, por mais que a gente se infiltre na vida dessa gente, acho que jamais deixaremos de ser “estrangeiros” aos olhos deles. Afinal, o que trazemos e temos para oferecer é bastante diferente. O nosso padrão cultural é outro. E, mesmo que achemos que temos a mesma condição de classe, embora façamos parte de uma mesma classe social (dos oprimidos, uma classe tão lesada e castrada de seus direitos), ela se diferencia um pouco.


É também aqui, nestas ou em condições até piores, que vivemos e, dependendo da maneira com que assumimos o trabalho e a vida no trabalho, vale a pena viver essa experiência apesar de tudo a que estamos sujeitos. O desafio é grande. Porém, se aprendermos a superar as dificuldades, o resultado é ainda maior! E é por isso que vale a pena continuar. 

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

FEIRA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL - RELATOS (VII)

1993 - Regina, Pedro e pescadores do Saco do Sombrio (Arquivo JRS)
Bem-vindo ao blog, Luciano Camargo!

A ESCOLA DA VIDA  -  Regina Natividade de Azevedo

(Parte I)

Relato de uma experiência vivida por uma professora numa escola isolada localizada ao norte da Ilhabela – EEPGER Paranabi

Como é o nosso espaço físico 
A EEPGER Paranabi é uma escola de emergência rural e/ou isolada. O nome por si só já  traduz o significado dessas pequenas escolas espalhados por todo o nosso litoral. Muitas delas mal construídas por falta de verba do estado, que parece nem saber que elas existem.
A escolinha em que trabalho fica localizada ao norte da Ilhabela, gastando-se em média para chegar lá, de duas horas e meia a três horas de viagem de barco, costeando a ilha. Nela já foram realizadas três reformas por membros da comunidade local. Homens, mulheres e até crianças participam. Parte do material é doado pela prefeitura (tinta, cimento, telhas) e parte, em alguns casos, pela própria comunidade (madeiramento e mão de obra).
A água que tomamos corre de uma nascente para a caixa d’água. Como em outras escolas isoladas, não há eletricidade. Vivemos à base de óleo diesel, muito usado pelos pescadores dessas comunidades.
Nessas escolas funcionam principalmente as séries iniciais, pois os alunos frequentam o curso até no máximo a 4ª série quando, por algum motivo (geralmente trabalho), abandonam o s estudos. Às vezes não chega a completar a 3ª série ou apenas dão início aos estudos, sem assiduidade.

O início
A chegada foi um tanto quanto difícil. A dificuldade foi me adaptar às pessoas, seus costumes e aos acontecimentos do cotidiano, como por exemplo, enfrentar ataques de morcegos, de formigas, de traças e borrachudos, o que é bastante comum. No início parece que tudo seria fácil, porque o número de alunos era pequeno e a força de vontade bastante grande, tanto da minha parte como da parte das crianças. Para elas, tudo era novidade, segundo o que diziam a respeito de outras experiências com professores que haviam estado por ali. Não havia em mãos nenhum planejamento para início e/ou continuidade de trabalho.
No começo tive de impor algumas regrinhas básicas como a limpeza da sala de aula, da caixa d’água, do terreiro das escola, a higiene antes e após merenda, o respeito pelos colegas e por mim. Após um tempo, iniciamos a experiência de deixar os alunos ajudarem no preparo da merenda, inclusive com alimentos do lugar (peixe, farinha e banana).
Tê-los como ajudantes foi uma experiência que deu certo, de forma a não sobrecarregar a professora, já que aqui temos de ser de tudo um pouco (faxineira, merendeira, secretária etc.). Na avaliação deles, disseram que com  isso aprenderam a cozinhar e também aprenderam sobre o valor dos alimentos. Após a refeição, todos ajudam na limpeza da cozinha para então darmos sequência aos estudos.

Desenvolvimento do trabalho
Não adotei métodos tradicionais, como a cópia mecanizada, sem leitura ou entendimento, nem mesmo a cartilha, cujo aprendizado limita todo o conhecimento da criança. Procurei aos poucos mostrar a importância de se expressarem através da música, da pintura, do desenho e do manuseio de papéis, como a dobradura. Teve também o trabalho com sucatas. Também procurei trabalhar as diversas atividades envolvendo todos os alunos, sem que houvesse qualquer tipo de discriminação ou preconceito entre eles por motivo de idade ou diferenças de série, pois, sob um certo aspecto, estão todos no mesmo barco.
Uma das dificuldades encontradas foi a falta de orientação pedagógica de como e por olnde começar a trabalhar e, já que não tive, resolvi buscar informações a respeito da comunidade junto a mesma, envolvendo os alunos e demais moradores do Sombrio. Parti de um roteiro cujo tema central era conhecer a história do Sombrio. Eis o roteiro:
Aspectos geográficos, localização, espécies de árvores e plantas nativas.
História do Sombrio: o porquê do nome, o número de moradores (antigamente e atualmente).
Atividades de trabalho: a pesca, a roça, a caça, a criação.
Aspectos sociais:  as superstições, os relacionamentos, o lazer, a relação com a natureza, uso de plantas medicinais, artesanato, religiosidade, histórias do local, festividades, principais problemas enfrentados pelos moradores.
A história da escola: em que ano surgiu, datas das reformas, participação da comunidade, movimento ou atividade envolvendo professor.

Sozinha e quase sem experiência como professora, me vi numa comunidade que passou por um processo de alterações peculiares. Muitos dos moradores tradicionais saíram de lá. O que se encontra lá hoje é uma comunidade em formação, em processo de acomodação e, portanto, não se consegue resgatar a história do local. Quando cheguei, em fevereiro deste ano (1993), moravam cerca de 12 famílias e hoje este número está reduzido a 7 famílias, somando um total de 28 pessoas. Com essas e mais algumas informações que as pessoas me passavam, eu me animava em dar continuidade ao estudo do local, um estudo que fosse iniciado com os próprios alunos, passando por seus pais, avós e ex-moradores do Sombrio, hoje jogados sabe lá Deus como e onde... 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

UM PATRIMÔNIO CAIÇARA

Se despedindo do nosso lugar (Arquivo Edson Silva)

Família do pescador Antônio Athanásio: Virgínia (esposa), Antônio Athanásio, Alzira “Santinha” (filha), João Barroso (sobrinho), Maria da Lapa (Maria Antônia dos Santos Rosa (tia do Antônio Athanásio). Agachados: Idir e Edson (filhos).

               Edson é um patrimônio caiçara! Alguém duvida?

           O seu pai  Athanásio, que hoje empresta o nome à rua onde se localiza o Projeto Tamar,  era proprietário da área do atual aeroporto, recebida como herança de Maria da Lapa. Em 1940,  o governo começou  a retirada das famílias que residiam na área para construir o Campo de Aviação, sob pretexto de emergência de guerra. Na foto de 1942, a Família Athanásio desmanchava a casa e posava para a última recordação do local, no jundu, onde nasceram todos.

               Muito à vontade, numa manhã de sábado, eu, Andréia e Ernani nos encontramos com o Edson da Silva para uma agradável prosa. Para quem não sabe: o Edson é quem possui um maravilhoso acervo de fotografias antigas de Ubatuba. Muitas delas certamente você já viu, mas em nem todas aparece o crédito, o nome de quem as fez. São registros de lugares e de pessoas que marcaram a história desta cidade, da nossa Ubatuba. Ouçamos um pouco da prosa deste caiçara sempre disposto a repartir conhecimento:



Edson da Silva (Arquivo JRS)


               " Eu sou caiçara, nasci aqui perto, na Barra da Lagoa. O meu pai era Antônio Athanásio da Silva. Toda essa área que hoje engloba o Campo de Aviação, a avenida Guarani, até o loteamento Parque Vivamar era da minha família. Por ali era nossos roçados de mandioca e nossas plantações de banana, de cana e de outras culturas. A casa da minha avó era bem perto da lagoa que mais tarde foi aterrada. Hoje é a parte chique, a avenida Guarani. Onde está o aeroporto, bem ali, era onde criávamos cabras. Era um terreno de altos e baixos, de gamboa com caxetas, taboa, peixes e aves. Foi muito aterro; quase tudo com areia da praia. Naquele tempo podia, né?”.



               “Eu estudei num colégio Diocesano, em Taubaté. Fui para lá em 1948, sob recomendação do Dr. José Cembranelli, um médico que tinha casa na avenida [Iperoig], na esquina com a rua Condessa de Vimeiro, onde atualmente é a Sucolândia. Ele costumava recomendar ‘leite de cabra e ar de Ubatuba’ aos pacientes com problemas respiratórios. Na época, ele disse ao meu pai da escola dos padres, em regime de internato, onde eu seria bem acolhido. E assim eu fui. Naquele tempo, a viagem até Taubaté durava até seis horas, num ônibus tipo ‘jardineira’ que transportava gente, criação (galinha, pato...). Numa ocasião, o jacá [grande cesto de taquara] das galinhas caiu no chão e elas saíram desesperadas, correndo pra todo lado, voando pelas janelas abertas, ganhando o mato. Foi uma correria do pessoal atrás delas, catando uma por uma para poder continuar a viagem".

domingo, 18 de setembro de 2016

DAS DORES...DO ITAGUÁ!




A amiga Fátima, com muita inspiração e lembranças, nos presenteia - mais uma vez! - com belíssimo texto. Viva a mulher caiçara!


Viva capela Nossa Senhora das Dores do Itaguá!


      Ainda me vejo correndo pelo pátio da capelinha de Nossa Senhora das Dores no Itaguá durante o recreio das aulas de catequese. Ainda ouço os chamados da catequista, para retornarmos as aulas sob a observação e descontentamento de nossas algazarras do senhor Albino Alexandrino. É assim todas as vezes que fecho os olhos e me ponho a relembrar toda uma vida vivida sob os olhares da santa.

      Lembro-me como se fosse hoje aqueles idos de 1967, quando fizemos a primeira comunhão. Os dias que antecediam ao evento, Seu Albino meteu o martelo num cofrinho de madeira que ficava atrás da porta de entrada da capela e recolheu todo o dinheiro, entregou a mim, para que comprasse cera pro chão e velas para a cerimônia de comunhão. Isso depois de todo um ano ralhando conosco para não detonar com as plantas do jardim durante nossas brincadeiras de pique - esconde, queimada etc. foi uma cerimônia linda. Seu Albino fez questão de sair em todas as fotos com todos o catecúmenos.

    Lembro-me das rezas de maio, quando nós crianças levávamos flores e pétalas de flores para sua coroação. E em junho era festa de Santo Antônio, São João e São Pedro. Fogueiras gigantes, tiração de festeiros, capitão do mastro e bandeira. Meu pai produzia uma bandeira toda iluminada com lâmpadas a pilha. Ah! A quadrilha irreverente por seus trajes inusitados. A dança da fita. A quermesse cheia de guloseimas. Era impossível resistir ao quentão de Dona Celeste, o bolo de mandioca com goiabada da Salete, a empadinha e pizza enrola da saudosa Dona Antônia, e os bolos de pão de ló, recheados de creme com abacaxi, cobertos com muito chantilly que só as meninas de mãos de fadas sabiam fazer, para as festas das crianças. Não é Lilinha, Luizinha, Néia e Cia?

      Crescemos com esse apego carinhoso que nos foi passado. Entra em cena eu e Lúcia Elisa. Companheira de ideal. Por muito tempo envolvemos toda a comunidade católica do bairro com nossas idéias de agregar sempre mais evangelizando nossas crianças através do teatro. Talvez síndrome de Anchieta. Durante as missas a homilia era feita com a encenação do evangelho com a conotação dos dias de hoje. Assustamos todo mundo! Mas tivemos todo apoio do pároco Frei Angélico, que viu ali um novo veículo de inclusão. Depois construímos um palco fora da capela para encenarmos os causos do bairro durante as festas. Eu escrevia e dirigia as peças. Lúcia, era a camareira, cabeleireira, maquiadora, figurinista, psicóloga, produtora, amiga, e ainda atuava.

     Uma vez fechamos a Av. Capitão Felipe para a passagem de uma noiva que adentrava todos os estabelecimentos comerciais atrás de seu noivo. Arrastando assim todo mundo para a festa da capelinha. Só não contávamos com o estreitamento do portão de entrada. Foi um tumulto só. Contamos a vida de São Francisco de Assis dentro e fora de Ubatuba. E foi seguindo o exemplo de São Francisco que a comunidade se tornou forte até hoje. Sempre uma pedra e uma benção!

   Ainda posso ouvir os vozeirões masculinos cantando: ”João sois tão puro e bom, senhor de tanta valia... E as cálidas vozes femininas cantando: “Santa Maria mãe de Deus rogai a Jesus por nós...”

    Ainda posso ouvir o capelão Joracy rezar a ladainha de Nossa Senhora em latim, Só lembro do: ”Ora pro nobis”.

      Ainda posso ouvir o bramir das ondas do mar na praia no silêncio total da capelinha, elas ecoam no altar, rememorando a força e o poder de Deus.
E agora quando vejo o progresso conquistado em todos esses tempos e me defronto com tamanha beleza, me vem uma vontade imensa de cantar em altos brados: 

     “Bendita sejais, Senhora das Dores, coroada nas estrelas, cercada de flores!”

       Sua benção Mãe Santíssima!

FONTE: O GUARUÇÁ
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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

ETNOCÍDIO TUPINAMBÁ

Um painel numa moradia em Ubatuba (Arquivo JRS)

Hoje é feriado no município de Ubatuba. Qual a razão?

               Em 1563, os padres Anchieta e Nóbrega, após uma estadia confabulando com os senhores de engenhos (líderes políticos do Brasil colonial) na Baixada Santista, partiram numa comitiva, sob o patrocínio de José Adorno, um desses líderes, para negociar a paz com os índios confederados (Confederação dos Tamoios).
                A aldeia de Yperoig que, segundo especialistas, significa “água de tubarões”, localizada onde é a atual cidade de Ubatuba, foi escolhida como território de negociação devido a presença de um cacique por nome de Koakira, considerado amistoso pelos jesuítas.

                O velho Catarino dizia: 

             “Neste chão de Ubatuba, logo ali onde era a lagoa (que deu o nome da Barra da Lagoa), era onde os índios tinham as suas ocas. Suas canoas subiam pelo rio e logo ganhavam a lagoa. Yperoig foi escolhido pelos padres e por quem mandava porque era um lugar estratégico, de onde partiam as frotas de canoas e as tropas a pé a partir do Caminho das Antas, onde hoje se conhece como Cachoeira dos Macacos. Desse lugar saía um mundaréu de gente brava que aterrorizava os portugueses!”.

                       Depois de uma tomada de fôlego, Catarino retomava a prosa-aula:

                “Entre os líderes confederados, os ânimos variavam: uns lutariam até a morte; outros já estavam cansados. Por isso que a presença dos padres e a disposição de Anchieta em ficar como refém deu-lhes uma esperança. O padre até que gostou da ideia! Afinal, era só ele entre a indialhada pelada, não é mesmo?”. Todos riam do humor do contador de causos.

                Com a desculpa de que as exigências dos índios tinham de ser decidida pelos patrões, uma comitiva se dirigiu à Baixada Santista. Enquanto isso, para sufocar os desejos da carne, entreter as mãos e os olhos, Anchieta foi escrevendo e memorizando poemas nas areias da praia. [Depois de séculos, há muitos anos passados, vi a dona Idalina Graça fazendo o mesmo na praia do Itaguá, bem perto do rancho do Florindo. Segundo ela, eram ensaios para um livro que estava escrevendo].

                Os pontos defendidos pelos confederados não pareciam conter algo tão extraordinário. Queriam a libertação dos prisioneiros que se encontravam no trabalho forçado dos engenhos, o fim da prática de escravização, a entrega dos chefes traidores e que deixassem os Tamoios viver em paz, como verdadeiros donos da terra.

      O acordo de paz, considerado o primeiro do continente americano, foi selado em Yperoig, futura cidade de Ubatuba, em 14 de setembro de 1563, dia  da Exaltação da Santa Cruz.

                Aylton Quintiliano, na obra A guerra dos Tamoios, diz que “a partir de Iperoig, e por muitos meses, houve um período de relativa calma. Aimberê, o bravo cacique de Uruçumirim, auxiliado pelo francês Ernesto, que se tornara um deles ao casar-se com Potira, retornou ao seu grupo, onde hoje é a cidade do Rio de Janeiro. Havia esperança de volta aos bons tempos da produção, das expedições de caça e pesca”.

                Em sua Carta ao Colégio de Coimbra, o padre Manuel da Nóbrega diz: “De tudo o que mais me alegra o espírito é ver por experiência o fruto que se faz nos escravos [índios] dos cristãos, os quais com grande descuido dos seus senhores, viviam gentilicamente em graves pecados. Agora, ouvem missas cada domingo e festa e têm doutrina e pregação na sua língua às tardes”.

                Vou concluindo com a fala do velho  Catarino que nos ensinou num dia distante, no jundu, no barranco da Barra da Lagoa, em frente da pobre, mas honrada casa do velho Dito Camburi:

                “Depois de um ano daquele acordo, quando receberam tropas de Lisboa, sentindo falta de mais índios para o trabalho escravo, a portuguesada acaba com tudo a partir da traição de Yperoig. Dos tupinambás só ficaram rastros!”.

                É por isso que eu não duvido que as coisas aconteceram aproximadamente do jeito descrito na Guerra dos  Tamoios:
                “Ao chegar em Iperoig, para verificar a produção de algodão, Ernesto deparou-se com um quadro que lhe fez correr  lágrimas nos olhos: todas as ocas haviam sido queimadas, vários nativos mortos em meio aos escombros ou pela praia. Alguns poucos que escaparam à fúria sanguinolenta dos brancos, contaram a ele que os portugueses haviam levado centenas de prisioneiros para São Vicente. O velho cacique Coaquira lutara como um bravo e foi um dos primeiros a morrer”.

                Agora, você decide:
                a) Comemora a Exaltação da Santa Cruz porque os Tamoios foram dizimados com a colaboração dos religiosos.

                  ou...

                b) Rememora a data como Traição de Yperoig porque a paz tão exaltada nunca houve. O que ocorreu foi o etnocídio dos tupinambás. 

domingo, 11 de setembro de 2016

CHEGANDO E FICANDO POR AQUI.


               Escutando a narrativa a respeito do Sr. Igawa, fiquei sabendo de muitas coisas relativas ao seu empreendimento (Iwashi – Indústria e Comércio Ubatuba S/A, e, depois, Iwashi –Irmãos Igawa S/A), no Canto do Acaraú, no tempo em que aquela avenida ainda tinha o nome de 9 de julho. Mais tarde a denominação passou a ser Avenida Leovegildo Dias Vieira. Na verdade, tenho um monte de pistas para outros textos, outras pesquisas. O seu filho (Nelson Igawa) me animou mais ainda ao apresentar alguns documentos interessantes. É com base neles que eu começo outra linha na história desse japonês que muito apostou em Ubatuba, desde final da década de 1950, quando tinha um armazém no centro da cidade, bem no cruzamento das ruas Coronel Domiciano e Condessa de Vimeiro, indo depois para o negócio das sardinhas, da fábrica de gelo e do camping (Itaguá), o qual continua sendo da família. As fotografias são do Arquivo Igawa. Agradeço muito ao Nelson e sua esposa Mary pela participação na pesquisa.

               Hoje, me valendo do que tenho em mãos, vou relembrar que, conforme depoimento do Nelson, “carecendo de mão de obra para a edificação da salga e não conhecendo bem as pessoas daqui, o meu pai fez oferta de serviço aos funcionários da sua terra natal, da região de Santa Mariana, no Estado do Paraná. Muitos vieram, e, depois da obra concluída, continuaram na salga”. As fichas de registros dos funcionários mostram isso mesmo. Então, veremos a Família Tudan, com variações de Todan e Todão.

               O patriarca Jorge Tudan, nascido em 18/11/1913, em Jacutinga (MG), filho de Fernando Tudan e Genoefa Cattae, já veio casado com Zoraide Camargo Tudan. Seus filhos, seguindo a ficha de registro (nº 057), são: Dirceo, Geraldo, Jairo, Luzia, Luís, Clarice, Marina, Paulo, André e Alice. Em 01/7/1962 ele foi admitido como pedreiro. A data de rescisão de contrato é de 21/4/1967. Na ficha de salário-família estão: Marina Tudan (18/2/1952 – Santa Mariana – PR), Paulo Tudan (30/4/1954 – Santa Mariana – PR), André Todão (18/4/1957 – Santa Mariana – PR) e Alice Todan (28/3/ 1959 – Maringá – PR).


               A ficha 001 é de Dirceo Ambrózio Todan, nascido em 22/11/1938, na cidade de Bandirante - PR. Nela consta como pais: Jorge Todan e Zoraide de Camargo. Foi admitido como motorista em 10/11/1959, se demitindo por livre e espontânea vontade em 15/12/1960. Em seguida, foi readmitido como mecânico em 2/1/1962 e permaneceu até 21/11/1966. Ou seja, foi o primeiro da família a topar vir para Ubatuba e a se registrar na “Salga do Igawa”.

           

             Na sequência, com a ficha nº 055, consta que Jairo Todão, filho de Jorge Todão e Zoraide Todão, nascido em 21/9/1941, em Santa Mariana – PR, foi admitido em 1/7/1962 na função de servente geral. Neste emprego ficou até 5/1/1963.









               No número de ordem nº 086 está Geraldo Todão, filho de Jorge Todão e Zoraide Camargo Todão, nascido em 21/7/1943, em Santa Mariana – PR. O nome da esposa é Neli Castro Tenório Todão. O filho, nascido em Ubatuba em 27/3/1966 é Eraldo Carlos Tenório Todão. Foi admitido em 16/11/1966 como servente geral. Ficou na firma até 31/5/1967.


              

           A ficha seguinte (nº 098) é de Clarice Aparecida Todão, filha de Jorge Todão e Zoraide Camargo. Nascida em 28/12/1949, em Santa Mariana – PR, foi admitida como servente em evisceramento no dia 22/11/1966 e demitida em 01/04/1967.







               Por fim, a ficha nº 099 pertence a Marina Tudan, filha de Jorge Tudan e Zoraide Camargo, nascida em 18/02/1952, em Santa Mariana – PR. Ficou pouco tempo registrada como servente de evisceramento: de 22/11/1966 a 31/12/1966.






               E assim Ubatuba foi acolhendo tanta gente. O meu apelo é que todos amem esta cidade e se esforcem para a felicidade das novas e futuras gerações.

Em tempo: espero contribuição dos descendentes desta família para poder entender melhor o nosso ser  e o espaço caiçara hoje. Desde já agradeço. Um forte abraço a todos os descendentes de Fernando e Genoefa, migrantes em busca de melhores condições de sobrevivência!

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

AS CARAVANAS (I)

Meu povo caiçara na escola  (Arquivo Ir. Iolanda)

                        Bem-vinda ao blog, Mel Fulli Frias!

               Conversando com a amiga Neide, do Saco dos Morcegos, da família Antunes de Sá, recordamos do tempo em que ela e outras meninas foram acolhidas na A.L.A (Assistência ao Litoral de Anchieta), sob os cuidados das religiosas Cônegas de Santo Agostinho, cuja obra começou em 1957 e se findou em 1986, quando a prefeitura comprou o prédio onde funcionou essa importante obra assistencial e educacional da caiçarada. Vou me valer do livro Semeadoras da esperança, escrito por Liz Cintra Rolim, umas das freiras que aqui exerceu a sua missão, para dar a conhecer outros detalhes da nossa cultura. Vale também saber como fomos recompensados por pessoas fantásticas, tal como a Dª Virgínia Lefèvre, que tive o prazer de entrevistar em 1980, na praia do Canto do Acaraú, onde era a sua moradia. Que mundo de livros ela tinha!

               Tudo começou com as famosas Caravanas, que proporcionavam o “mergulho” num mundo diferente, contribuindo para confirmar a própria identidade posta em face ou confrontada com outras alteridades. E, numa época em que não se pensava, nem se falava em “INCULTURAÇÃO”, as Caravanas foram o meio prodigioso para se descobrir não só a riqueza e os valores, mas também as limitações de uma forma de ver, sentir, viver, transformar e se comunicar com o mundo.

               Esta experiência foi vivenciada no litoral norte. O trabalho congregou esforços da “Caravana Social Litorânea”, dirigida pelo Pe. João Beil e os da “Sociedade Pró-Educação e Saúde de São Paulo”. O relatório nos diz:

               “No barco do Sr.Albino rumamos para a praia da Almada, a duas horas distante de Ubatuba. Mar grosso. Natureza belíssima. Um esplendor do Criador que não se repete! Ao passar pela praia do Félix, o diretor da Caravana Social Litorânea, Pe. João Beil, ex-vigário de Ubatuba, , serviu de um chifre de boi para chamar os pescadores que se encontravam na praia. Imediatamente uma frágil barquinha é lançada ao mar. Alegria de ambas as partes ao se reconhecerem. O Padre pede que os moradores de Ubatumirim sejam avisados que haverá missa, confissões, batizados, casamentos e crismas. Seguimos viagem para aportarmos na Almada.
               Pertinho da praia, a Escola pequenina; mais adiante algumas casas de pescadores, cobertas de telhas e bem apresentadinhas. As crianças achavam-se em hora de recreio e brincavam alegremente. Acorreram para receber as visitas, mas ao me verem vestida com hábito – pois fui uma das primeiras a descer, - recuaram, pois nunca haviam visto uma religiosa. Aproximei-me deles amigavelmente e logo fizemos amizade.


               Padre João é recebido com muito entusiasmo por todos que o consideram e estimam com um pai e amigo. Os adultos são todos analfabetos. Só as crianças se beneficiam da aprendizagem na escolinha aberta há pouco tempo pela “Sociedade Pró-Educação e Saúde” cuja presidente é Dª Virgínia Lefèvre, que se tornou a advogada do lugar. A ela recorrem em caso de dificuldade e de doença. Todos ali vivem da pesca e da lavoura. Lutam com a vida rude do mar e as dificuldades da plantação, facilmente devoradas pelas formigas saúvas. Na praia, uma capelinha de telha vã abre suas portas para o mar e contempla um panorama grandioso cercado por montanhas que se perdem na bruma do horizonte. 
                Após o almoço, recreação com as crianças, finalizando com uma aula de catecismo, todos sentadinhos em semicírculo na areia. Fiz algumas visitas domiciliares às famílias dos pescadores, acompanhada pela professora local, moça católica e muito gentil (...)  À noite, eu e Dª Virgínia, ficamos alojadas na sala da escola. Algumas carteiras foram recuadas e duas largas esteiras estendidas no chão. Nenhuma instalação sanitária. Água a ser buscada numa bica bem distante dali. Tudo primitivo e rústico”. 
               

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

PITIRÃO: COISAS DA CULTURA

Olha a perseguição às tainhas, no Canto do Acaraú, em 1960! (Arquivo Igawa)

               Num arranjo de última hora, quando faltou o artista principal, fui convidado para falar a respeito de ser caiçara a um grupo de alunos e professores.

               Para começar, parti de uma frase da Laura Igawa, que agora se encontra na Tailândia, num trabalho voluntário: “Quando há envolvimento com as pessoas e a comunidade local, você só tem a aprender”. É o que a Antropologia denominou de alteridade, ou seja, ver o outro, enxergar o outro, respeitar o outro, aprender a viver em comunhão com os diferentes de nós.

               Dois conceitos são complementares neste assunto: caipira e caiçara. Caipira deriva de caipora, de morador do mato. Então, caipira é quem está mato adentro. Caiçara deriva da caiçara, o cercado que protegia as ocas indígenas e demarcava o terreiro coletivo do grupo tupinambá em Iperoig (Ubatuba).

               E onde está esse cercado hoje, que justifica a denominação da nossa cultura? Está muito visível! Basta olhar para um lado e ver o mar e para o outro e divisar a serra! Entre esse cercado natural se formou a cultura caiçara. Ou seja, caiçara é povo que, nessas condições específicas, entre a serra e o mar, se formou. Fácil assim! Logo, caipira é todo aquele que tem sua origem além da serra. “Gente de serra acima”, como diziam os meus antigos. São Luiz do Paraitinga, Paraibuna, Bairro Alto, Vargem Grande, Catuçaba, Taubaté, Sorocaba, Araraquara etc. são espaços de cultura caipira. Pobre daquele que se envergonha das suas origens!

               Indígenas, portugueses pobres e negros trazidos como escravos aqui se juntaram para a sobrevivência, fizeram parceria com o meio ambiente. Cada um entrando com as suas contribuições e criando muitas outras. “A necessidade é mãe da criatividade”.     São marcas da cultura, dentre outras mais: entender os fenômenos naturais, técnicas de cultivo e de caça e pesca, artesanato, festas e religiosidade.   Hoje eu escolhi explicar um traço cultural nosso: o pitirão.
               Pitirão vem de pitirum, dos indígenas. O sentido moderno é conhecido como mutirão, trabalho realizado por muita gente. No nosso caso, era um ajutório (uma relação de comunhão que tem como princípio a reciprocidade genuína).

               Fiz favores, recebi favores porque assim aprendi na cultura do pitirão. Trabalhei nesse ideal em casas e roçados de um tanto de gente, de “uma porção de gente” como dizia a mamãe. Era favor que a gente esperava ser retribuído. Exemplo: Viajo regularmente de ônibus para trabalhar no município vizinho de Caraguatatuba. Quando alguém me oferece carona, eu retribuo sempre pagando ao menos aquilo que eu pagaria à empresa de ônibus. É favor. O que ficou além disso é ajuda. Expliquei desta forma ao amigo Carlos Laureano, um caiçara de Caraguatatuba.

               Ajuda é outra coisa! Os velhos caiçaras ensinam que ajuda não se diz; só se sente. “Uma boa obra, se tornada pública, deixa de ser bondade”. Minha vó Eugênia, em muitos serões recordava: “A bondade não tem sentido para esta vida, mas só para quem deseja a vida eterna. Fazer propaganda dela é não desejar a eternidade”.  Disse isso porque, desconfio que, dentre os poucos caiçaras que se orgulham de ser caiçara, quase ninguém faz questão de rememorar esse aspecto cultural nosso. E sabe por que é assim? Porque veio o turismo, veio a televisão, veio a propaganda, veio o migrante em busca de melhores condições de vida! Gente que deixou sua realidade de roça, sua cultura caipira ou sua cultura de outras regiões deste Brasil afora querendo melhorar de vida, querendo consumir mais etc.

               Quem chega buscando a sobrevivência, dificilmente respeitará os valores culturais do outro, não vai considerar  as sacralidades da terra, do mar, dos rios, das pessoas e dos demais seres. O dizer do meu povo resume isso: “Farinha pouca... meu pirão primeiro!”. É quando se instala a degradação, a sociedade de consumidores que não é capaz de saber cuidar desse mundo caiçara. E, pior, justifica o injustificável (omissão, ganância, egoísmo, perda de sensibilidade dos favores e da ajuda, etc.). Assim, joga esgoto no rio, desmata sem nenhuma razão plausível, invade locais vitais aos outros seres... tudo em nome da lucratividade! E quantos filhos da terra continuam embarcando nessa!
               Enfim, eu quase que improvisei para a tal palestra, dentro da religiosidade  caiçara:  ajuda é o que você não vai dizer para ninguém, pois acredita que só à eternidade diz respeito; favor é aquilo que você espera retribuição. Sabiamente, a vovó Eugênia não se cansava de repetir esta frase bíblica: “Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita”.

               No final, o Carlos me pergunta:
               - Essa sua fala foi favor ou ajuda?

               - Foi favor porque eu espero ser retribuído. Pode ser ajuda porque eu não sei o que provocou ou pode provocar nas atitudes de quem participou, de quem ouviu com muita atenção.