quarta-feira, 29 de abril de 2015

JÁ É TEMPO DE SABIÁS!

Sabiá-laranjeira; sabiá-galinha. (Arquivo JRS)

            Desde o mês passado, no meu quintal, já vejo e escuto sabiás. Estou admirado; parece tão cedo para essa maravilhosa manifestação da natureza. Por enquanto tenho escutado apenas seus piados, mas aguardo ansiosamente suas  belas cantorias a cada manhã. O certo é que, no meu espaço, há fartura de alimentos e árvores atraentes aos seus ninhos. Deve ser por isso que sou recompensado por ilustres visitantes.
            Sempre é tempo de apreciar a natureza, sobretudo quando temos consciência do quanto dependemos dela. Assim ensinaram nossos pais, nossos avós... A cultura caiçara é uma simbiose de séculos entre a natureza e o homem. Infelizmente, na onda consumista da atualidade, o ritmo nosso já não é aquele ditado pelo tempo. Assim, falta tempo para prestar atenção aos demais seres que convivem conosco. Sempre ocorrem fenômenos que se repetem continuamente, que passam despercebidos para a maioria das pessoas.
            Vale a pena se dedicar mais intensamente em escutar os cantos dos pássaros, as marcas deixadas pelos bichos. São muitas as manifestações, as diversas formas de comunicação que eles (demais seres vivos) buscam estabelecer conosco. Outro valor inestimável são as manifestações de carinho que constantemente recebemos de tanta gente. Ontem, por exemplo, recebi a seguinte mensagem do primo Cláudio, morador do Rio de Janeiro há mais de trinta anos:

            “Grande abraço carinhoso primo José. Parabenizo você e todos os demais divulgadores de nossas tradições caiçaras. (Claudio Santos, nascido próximo do  ‘lagamar’ da praia da Fortaleza, abaixo da ‘badeja’, conhecedor do ‘causo da luz do Oliveira’, apreciador de um bom peixe com banana verde, guaiás, sacaritás, mariscos, sapinhauás e etc. rsrsrsrsrsrs. Nunca esquecer do bom ritmo da ‘chiba’).  

          Ah! Em tempo: Quem imagina o que é sorda (ó)? Era a estratégia para amaciar algum alimento com café. Exemplo: O beiju estava duro, custoso de mastigar, só restava esta alternativa: quebrar em alguns pedaços e colocar no café para amolecer e ser comido com colher. Tal procedimento valia também para biscoito tipo cangalha. Então, comer sorda é isto: se fartar com essa sopa, o resultado desse alimento encharcado, usando uma colher. Os desdentados eram os que mais recorriam a isso.

sábado, 25 de abril de 2015

O HOMEM DA MALETA

Igara açu, a canoa grande do Carneirinho, no jundu da Praia do Acaraú. (Arquivo JRS)
                   Marulhos - Companhia teatral e Memória Bairro Escola: bem-vindos ao blog!

               Hoje, depois de curtir bem a família, de ver o meu filho tão bem entrosado com alguns de seus  colegas adolescentes, pensei nos meus colegas de outros tempos, quando tínhamos um pouco mais de quinze anos. Logo me veio à mente a estimada Fátima que sempre tinha suas histórias, o querido primo Cláudio, a saudosa Margareth e outros que há tempos não tenho notícias.
               A Fátima, agora curtindo o seu recanto e o seu companheiro, foi a mais ousada da nossa turma, publicando as suas gostosas crônicas reunidas no livro Arrelá Ubatuba. De acordo com o Luiz Moura, editor de O Guaruçá, ela “é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local”. Hoje, cheio de saudade dessa amiga desde a adolescência, resolvi apresentar, de sua autoria...

                    O homem da maleta
               Numa tarde de agosto, as refegas de vento lambiam o lagamar da praia. O mandiocal se desdobrava simultaneamente como um balé de ramas. O bambuzal do caminho da bica chiava e dava estalos. O capim melado se dividia em touceiras, e o mar ficou crespo como uma saia de babados de renda.
               O corre-corre da vizinhança era abafado pelo barulho das vasilhas despencando dos tendais. A galinhada se refugiava às pressas no galinheiro. O tempo estava ficando feio. O sudoeste estava vindo sem piedade, nem clemência. Mais algumas horas ele chegaria.
               No rancho de canoas, meu avô ajeitava seus apetrechos de pesca. Tudo teria de estar certinho em seu lugar para ficar protegido da tempestade que se formava. Foi aí que sentiu a falta de um rolo de canoa que esquecera na praia. Saiu para buscar. Uma nuvem de areia encobriu-lhe o rosto. Refeito da visibilidade, deparou com um vulto de um homem que vinha praia abaixo carregando uma maleta. Quem poderia ser àquela altura? Esperou o forasteiro se aproximar. Usando da hospitalidade caiçara, o inspetor de quarteirão fez com que o homem entrasse no rancho e se refizesse do cansaço de andar na praia e contra o vento.
               Já refeito, este senhor expôs o seu caso. Precisava que o meu avô o levasse de canoa para ser mais rápido. Impossível, falou o velho pescador. Seria suicídio essa aventura. Nem por todo dinheiro do mundo. Eu exijo, respondeu o homem. É em nome da Pátria. E o senhor, como um representante da Guarda Nacional, tem que obedecer. Meu avô com sua simplicidade e calma, olhou para o mar, olhou para o céu, olhou para o caminho que dava para a sua casa, como quem quer se despedir, e disse:
               - O senhor é quem sabe, depois não vá dizer que eu não avisei. E seja lá o que Deus quiser. Botou a canoa para baixo, mandou o homem se ajeitar no fundo da piroga, pulou na proa equilibrando-se como podia para não virar. A luta começou.  O vento jogava de um lado, a força do remo do outro. Quando chegaram na ponta que dava para a Praia Brava do Sul, o homem quis ajudar. Começou a remar com as próprias mãos. Não deu outra. A canoa alagou e virou de boca para baixo. Meu avô mais do que depressa agarrou o homem pelo paletó e ficaram os dois grudados junto ao casco que ainda boiava. E assim ficaram até o mar jogar os dois em cima de um parcel.
               Salvos pela graça de Deus, tomaram o caminho de volta para casa. O jeito foi hospedar o homem até o tempo se acalmar. Todo esse tempo o estranho não abriu a boca para dizer um Ah!

               Passou a tempestade. O dia amanheceu ensolarado. Meu avô, curioso que estava, abriu a valeta que ainda estava encharcada. Tirou os papéis que estavam ilegíveis e por cortesia pediu para as crianças estenderem em cima das pedras do quintal para que secassem. Logo depois o home acordou, passou a mão na maleta, recolheu os papéis ainda úmidos e foi-se embora. Assim como chegou, mudo, depois do banho, foi embora calado. Nem até logo deu.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

INSATISFAÇÃO MORAL

Canto do Camaroeiro - Caraguá -  na maré baixa (Arquivo JRS)

                Eu e meus irmãos fomos privilegiados por termos vividos em comunidades pequenas, onde o conceito de família caiçara era mais abrangente e todos se sentiam no dever de contribuir com a nossa educação, de nos corrigir quando era necessário. Nossos pais nem precisavam ser notificados dessas correções/lições rotineiras.
                Quando os caiçaras mais velhos recomendavam atenção (“bote reparo”), era para entender que algo precisava ser corrigido, revisto em vista de um viver coletivo. Pensar no outro ainda é componente da nossa identidade. 
                          E hoje...
              Todos se sentem inconformados com os grandes escândalos divulgados nas mídias, mas poucos se atém aos pequenos deslizes e corrupções que preenchem o nosso cotidiano. Os infratores até chegam ao cúmulo de se fazerem de vítimas e de se acharem nos seus direitos.
                Um exemplo: há algum tempo, já tem mais de um ano, escutei  seguidamente um canto de passarinho que vinha da minha calçada. Sei que não é normal isso, sobretudo onde tem sempre gente circulando. Saí para ver e constatei a minha desconfiança: um vizinho se achou no direito de pendurar a gaiola no meu canteiro, no galho de resedá (ou minerva). Imediatamente eu pedi que a retirasse. “Eu não admito isso. Vai fazer o que você quiser no seu espaço”.
                Nesta semana que passou, depois de muito tempo, novamente a coisa se repetiu. De novo eu chamei o autor e pedi que retirasse a gaiola. Agora, preste atenção à sua fala: “Ó, me desculpe, eu não sabia que estava atrapalhando”.
              É lógico que está! Está porque sou eu quem cuida  e quem paga pelo espaço da calçada. Está porque foi reincidência, que já sabia que eu não compactuo com pássaros engaiolados. Está porque nem sequer imaginou, nem aprendeu que precisava solicitar o uso de espaço que não é dele.  Na verdade, as árvores que mantenho na calçada, são símbolos de resistência após tantos passantes que as maltratam no cotidiano, enquanto que a minha intenção ao plantá-las para oferecer sombras e flores a todos. Ainda bem que tem muita gente a reconhecer isso! Está desculpado  quem não foi ensinado, principalmente pelos pais, a respeitar o espaço alheio. Mas que não se repita essas pequenas corrupções. Está desculpado quem não teve uma comunidade, uma cultura estabelecida para seguir a recomendação de "botar reparo". Coitado daqueles que estão ao sabor da indústria cultural!
                São essas “pequenas corrupções” que me causam maior insatisfação moral. Então está certo o Walcyr Carrasco ao dizer que “a corrupção maior é apenas a expressão de um tipo de vida que achamos até normal”.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

UM CAUSO DO EUGÊNIO - PARTE II

               


              Eugênio Inocêncio era negro dos olhos verdes. Viveu quase toda a vida nas ilhas. Era um caiçara-ilhéu.
                A partir daquela exclamação (“Como eu gostava daqueles grandalhões esbranquiçados!”), no jundu da Praia do Perequê-mirim, continuou o saudoso primo Eugênio:

                “Foi com um daqueles peixes-luas que aconteceu o fato que até hoje mais me impressionou. Era na metade da tarde, já perto do serão, quando eu jogava uma linhada na Pedra da Moreia. Três ou quatro salemas já estavam no balaio, mas eu insistia com isca de bonito moído na esperança de uma garoupa para a janta. Esperando bem paciente, notei que boiava um peixe grande. Vinha do fundão. Era peixe-lua. Parecia desassossegado, fora do normal. De repente vem mais coisa dos lugares remotos, das profundezas: eram lulas gigantes. Nem deu tempo de contar quantas eram porque num instante a água empretejou pela tinta que soltavam.
                Não sei dizer quando media ou pesava cada uma daquelas lulas, mas eram medonhas e estavam ali com a intenção de dar um fim no peixe-lua. Ele se desesperou em vão, pois eram muitos tentáculos que o abraçavam. Num instante o coitado parecia uma grande bola de fio grosso. E assim foi puxado para o fundo, naquela água enturvada. Eu só consegui  fazer uma coisa: rezar para nunca mais ver coisa assim.  Quando contei em casa, o meu pai apenas disse que não era a primeira vez que isso acontecia por ali. É, Zezinho, o mar manso é só ilusão. Cruz-credo!”.
               
            Agora, eu aqui no jundu da Praia da Cocanha... O Eugênio é parte de um antigo instante. E o mar bravio? Está reboante!

quinta-feira, 9 de abril de 2015

UM CAUSO DO EUGÊNIO – PARTE I

               

       O presente texto surgiu de uma  tarde  bem  nublada,  sob uma amendoeira, na Praia  da  Cocanha,  em  Caraguatatuba.  Neste ano (2015),  por  descompasso  nos horários,  terei   muitos   momentos assim. Que sacrifício!
                Por vezes me pego pensando nas pessoas que leem as coisas de caiçara. Me pergunto se não é muita pretensão minha esperar dos leitores o máximo de entendimento do contexto caiçara, das malhas dessa cultura que se produziu ao longo do tempo.  Decidi. “Deixa isso de lado, Zé!”.
                Vou continuar escrevendo a partir das inspirações que me sensibilizam, das recordações que valem a pena.
                Agora, daqui da areia, olhando a Ilha da Cocanha, uma parte da Ilha do Tamanduá, a Ilha dos Búzios e a maior parte da Ilhabela em névoas, penso nas minhas pessoas queridas que estão em casa enquanto escuto o mar que me remete  a um fragmento de uma poesia da Cecília Meireles:

                O mar, de língua sonora,
                sabe o presente e o passado.
                Canta o que é meu, vai-se embora:
                que o resto é pouco e apagado.

                Lá no passado, na Ilha da Maranduba, o meu parente Chico Cabral criava suas cabras. Quando eu nasci, outros parentes – os Inocêncio – faziam parte do povoamento da Ilha do Mar Virado, do mesmo lugar de onde saiu num tempo mais distante o Lourenço da Ilha. “Você é dessa cepa, Ostinho!”. Outra ilha -  a do Tamanduá – acolheu a turma dos Mesquitas, do saudoso Aristeu. Muitos outros ilhéus eu poderia elencar. Certamente me emocionaria demais.
                O primo Eugênio Inocêncio, depois do Mar Virado, quase findou os seus dias na Ilha da Vitória. É o responsável pelas tantas “histórias de mar aberto”, depois das ilhas. O sumiço do peixe-lua é uma das que me marcou muito. Assim ele me contou:
                “Na Ponta do Sul, perto do nosso mandiocal, ficava a Pedra da Moreia. Era um pesqueiro bom, dava em lugar bem fundo. Em época de água clara se enxergava longe, se via as lajes profundas. Vez e outra os peixes-luas apareciam, boiavam naquele ponto.

                Peixe-lua é bicho manso. Tem um olho que parece querer enxergar a nossa alma. É manso mesmo! Como eu gostava de contemplar aqueles grandalhões esbranquiçados!”. 

domingo, 5 de abril de 2015

MAMÃE, A ANTROPÓLOGA


 
Papai e mamãe (Arquivo JRS)
            Há alguns anos eu estudei um pouco de Antropologia, também chamada de ciência da alteridade.
            Alteridade é a concepção que define um jeito especial de olhar o mundo, de  compreendê-lo a partir de um olhar diferenciado, considerando o(s) ponto(s) de vista do outro enquanto indivíduo e enquanto cultura diferente da minha. Ah! Quantas riquezas eu continuo adquirindo na convivência, na interação com os outros! Na verdade, amo esta interdependência!

            A Dona Laurentina, minha saudosa mãe, sempre nos dava a seguinte recomendação:

            “Vocês certamente vão andar muito por este mundo. Nele tem muita coisa boa, mas também tem coisa que não presta. Aproveitem tudo daquilo que poderá aperfeiçoá-los. Pensem que em qualquer ocasião estamos dando e recebendo algo que torna a nossa vivência melhor. Na verdade, estamos sempre somando para fazer a diferença neste mundo. Assim será no trabalho, no lazer e nas muitos momentos que vocês ainda têm por viver. Porém, não se descuidem porque até na mansidão é preciso astúcia. É quase certo que em qualquer lugar terá gente esperando um bambeamento das pernas de vocês para dar uma rasteira e derrubá-los”.

            Ah! Quanta saudade dessa mamãe antropóloga!

quarta-feira, 1 de abril de 2015

SOPA DA VOVÓ

Vovó Martinha (Arquivo JRS)

                No livro Navegando, o saudoso  Rubem Alves pergunta   (e esclarece!):
                “Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma”.
                Ah! Fiquei imaginando essa iguaria lusitana! No mesmo instante me recordei de uma sopa que, de vez em quando, a Vovó Martinha preparava. Era assim:
                Numa panela com água ela punha alho, cebola, coentro do mato, hortelã-gorda, tomatinho de peixe e sal. Se usava outros ingredientes, agora não me vêm à memória.  Só sei que aquele caldo fervia por pouco tempo, mas espalhava cheiro pela vizinhança. Então ela destampava a vasilha, quebrava três ou quatro ovos e mexia bem rapidamente. Em seguida apagava o fogo e dizia:

                “Tá pronto. Agora é só pegar o prato e se servir. Na cuia tem beiju pra molhar no cardo. Quem quiser escardado, despeje logo farinha no prato antes que esfrie. Pra quem gosta  também tem pimenta”. Era simples assim. Desse modo se atravessava a vida. Faz-me lembrar de outro escritor, do Guimarães Rosa que escreveu que “a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia”.