quarta-feira, 26 de março de 2014

SER CAIÇARA (II)

Tia Baía, liderança caiçara na comunidade do Puruba (Arquivo JRS)


      Prosseguindo na contribuição do Diegues, um caiçara de Iguape que galgou os altos postos na Universidade de São Paulo, acrescento agora mais uma dose reflexiva ao nosso ser caiçara.

     Uma das ameaças a essas comunidades caiçaras e ao exercício de suas atividades tradicionais provém do avanço da especulação imobiliária, iniciada na década de 1950 e 1960, sobretudo com a construção de residências secundárias ao longo do litoral. A especulação imobiliária privou grande parte dos caiçaras de suas posses nas praias, obrigando-os tanto a trabalhar como caseiros e pedreiros, quanto a se mudar para longe do local de trabalho, dificultando as atividades pesqueiras. Além disso, o turismo de massa, sobretudo no litoral norte do Estado de São Paulo, contribuiu para a desorganização das atividades tradicionais, criando uma nova estação ou safra nos meses do verão, quando muitos caiçaras se transformam em prestadores de serviços.

       Outro processo responsável pela desorganização da cultura caiçara é o fato de grande parte de seu território ter se transformado em áreas naturais protegidas. A modificação do espaço de reprodução material e social para parques e reservas naturais resultou em graves limitações às atividades tradicionais de agricultura itinerante, caça, pesca e extrativismo. Emergiram assim, conflitos com os administradores das unidades de conservação, além de uma migração ainda maior para as áreas urbanas, onde os caiçaras, expulsos de seus territórios, passaram a viver em verdadeiras favelas, fadados ao desemprego e ao subemprego.

       Essas contínuas agressões à cultura e  ao modo de viver caiçara não aconteceram sem alguma reação dessas comunidades. A partir da década de 1980, quando a pressão dos órgãos governamentais ambientalistas sobre as comunidades caiçaras se fez maior, várias organizações não-governamentais e institutos de pesquisa passaram a apoiá-las no esforço para permanecerem em seus territórios. Começaram a surgir em alguns locais associações de moradores, as quais se fizeram ouvir em reuniões governamentais e congressos, dando inicio a um processo de reafirmação da identidade caiçara, abafada por décadas de discriminação por parte das autoridades e das elites urbanas interessadas na expropriação de suas terras.

     As iniciativas na área ambiental, caracterizadas por pesquisas inovadoras, partiam do pressuposto que os caiçaras não eram adversários da conservação, mas seus aliados, e constataram a existência de grande cabedal de conhecimento acumulado sobre a biodiversidade na floresta e no mar e de engenhosos sistemas tradicionais de manejo.

   Os meios de comunicação também descobriram a importância da cultura caiçara. e veicularam em emissoras de televisão, particularmente na TV Cultura (São Paulo) e na TVE (Rio de Janeiro), programas sobre vários aspectos do modo de vida dessa população.  Também na área especificamente cultural, deve-se destacar o papel de algumas prefeituras (com a criação de centros de cultura) e de organizações não-governamentais.

domingo, 23 de março de 2014

RELEMBRANDO O ROGÉ

         
Casarão do Porto - Ubatuba (Arquivo JRS)

            De vez em quando, relendo uns textos, acho por bem reeditá-los. Deve ser saudade das pessoas que passaram por nossa vida e que deixaram suas marcas em nossa história. Este é em memória do saudoso Rogé, cujos pais eram donos da Praia das Sete Fontes, mas que venderam essa maravilhosa posse de terra e foram em busca de novas oportunidades de vida na Baixada Santista, na primeira metade do século XX. No entanto, o Rogé viveu a maior parte de sua vida muito pobremente entre os parentes caiçaras ubatubanos, circulando entre o Rio Escuro, a Estufa, o Ipiranguinha, a Praia da Fortaleza e outros lugares onde recebia acolhida.

       Rogério Mesquita, o Rogé, “anda por todo canto, sabe um monte de coisa só de escutar”. Foi o que eu escutei da minha vó Eugênia. E o Rogé sabia mesmo!
                Certa vez, enquanto olhava para o mar, ele contou do “sobrado velho” (que eu nem tinha ideia de onde era), porque era importante etc. Bem mais tarde eu descobri a referência: era o Casarão do Porto, antiga casa de Manoel Balthazar, na boca da barra do Rio Grande de Ubatuba. Hoje é parte da Fundart, mas desde 1959 foi tombado como patrimônio histórico e arquitetônico.
                De acordo com o Rogé, ele era moleque quando conheceu o lugar:
                “Naquele  lugá ali era o Hotel Boidapeste [Budapeste]. A gente mais velha dizia que aquela era a casa mais bonita da cidade. O primeiro dono foi um português que vendia e comprava;  dali despachava e arrecebia mercadoria. A língua do povo diz que o hómi enricou com café ainda no tempo que o Brasil tinha imperadô – que aparece em livro com barba branca! Esse portuga teve umas filha bonita pra perdê! Só que não era pra bico de pobre! Arrumaro marido, faiscaram daqui! Só uma ficô na nossa terra... terminô sua vida em Taubaté. A propósito, foi gente dessa cidade, o Guisado [Guisard] que mais tarde, adespois do tempo da revolução do Getulho [Getúlio], comprô  o velho prédio pros tempo de férias. Naquele trecho, entre a igreja e o sobrado, em tempo assim, ficava cheio de gente se tecendo: era um tal de querê vê gente de fora e querê sê visto também! Tinha gente nova na cidade por um tempo: tanto no frio como no tempo quente. O boato dizia que a maioria era empregado do dono do sobrado. Agora, se acreditá no que disse o Zequita [José Alves Barreto], vão fazê não sei o que lá de curtura. Acho que o sobrado velho tá sobrando”.

sábado, 22 de março de 2014

SER CAIÇARA (I)

     
Eu e amigos da Praia Mansa, na Ilhabela (Arquivo JRS)
  
         Vez por outra alguém me pergunta o que é caiçara. Hoje, me aproveitando de uma contribuição do Diegues, repasso a mais gente que talvez possa se interessar:

     Entende-se por caiçaras aquelas comunidades formadas pela mescla étnico-cultural de indígenas, de colonizadores portugueses e, em menor grau, de escravos africanos. Os caiçaras têm uma forma de vida baseada em agricultura itinerante, de pequena pesca, do extrativismo vegetal e do artesanato. Essa cultura se desenvolveu principalmente nas áreas costeiras dos atuais Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e norte de Santa Catarina. Alguns autores afirmam que as comunidades caiçaras se formaram nos interstícios dos grandes ciclos econômicos do período colonial, fortalecendo-se quando quando essas atividades voltadas para a exportação entraram em declínio. Sua decadência, em particular no setor agrícola, incentivou as atividades de pesca e coleta em ambientes aquáticos, sobretudo os de água salobra, como estuários e lagunas. No interior do espaço caiçara surgiram cidades como Parati, Santos, São Vicente, Iguape, Ubatuba, Ilhabela, São Sebastião. Antonina e Paranaguá, as quais em vários momentos da história colonial funcionaram como importantes centros exportadores. As comunidades caiçaras sempre mantiveram com essas cidades, em maior ou menor intensidade, contatos e intercâmbios econômicos e sociais, delas dependendo também para o aprovisionamento de bens não produzidos nos sítios e praias. Esses contatos se conservaram por vias terrestres (caminhos), fluvial e marítima, sobressaindo, do século passado até as primeiras décadas do século XX, as chamadas canoas de voga, onde eram transportados produtos agrícolas, peixe seco, aguardente, entre outros.
     A maioria desses centros e áreas rurais litorâneas correspondentes entrou em decadência no final do século XIX, principalmente com a abolição da escravatura [...] As comunidades caiçaras mantiveram sua forma tradicional de vida até a década de 1950, quando as primeiras estradas de rodagem interligaram as áreas litorâneas com o planalto, ocasionando o início do ciclo migratório.
       As comunidades caiçaras passaram a chamar a atenção de pesquisadores e de órgãos governamentais mais recentemente em virtude das ameaças, maiores a cada dia, a sua sobrevivência material e cultural, e também por causa da contribuição histórica que essas populações têm dado à conservação da biodiversidade, pelo conhecimento que possuem da fauna e da flora e pelos sistemas tradicionais de manejo e recursos naturais que dispõem.

sábado, 15 de março de 2014

OUTRA YPEROIG



    De acordo com a definição predominante da palavra yperoig,  de origem tupinambá, ou seja, dos antigos moradores desta terra denominada de Ubatuba, o significado é água de cações (tubarões). Dá para imaginar, se tecendo por aquelas águas em tempos longínquos,  anequins, cambebas, caçoas, galha preta, treme-treme, caceteiro etc. Hoje, ao falar yperoig, lembramos da avenida entre o mar e a cidade. Avenida Yperoig. 

       O saudoso Maneco Hilário, ao se recordar de sua infância, dizia que a vó tinha, dependurada numa travessa de jacatirão, “um grosso couro de tintureira que servia para diminuir as rachaduras dos pés”. Imagine só! “A vovó era vaidosa. Aquela lixa de cação deixava os pés mais bonitos em ocasião de ir para a cidade. Ela também, por fim, passava banha de lagarto em volta do solado”. Mas voltando ao título - e no tempo ! -  por volta de 1975, a Avenida Yperoig superou a Praça da Exaltação da Santa Cruz na preferência dos jovens em busca de suas paqueras, diversões e outros encontros. 

     Muitos desse tempo, assim como os jovens de hoje, só ficavam “batendo perna”, “dando um rolezinho”. Outros sempre tinham um dinheirinho para curtir o Tom Bar, que era um restaurante dançante. Os restaurantes Princesa e Pata Praia também eram agradabilíssimos. Eu, por sorte de ser “filho do Carpinteiro”, até tinha o privilégio de curtir o Chez Vavá. Explico: o meu pai e eu trabalhamos na montagem deste ponto comercial. Era de um francês. Assim, ao cismar nas andanças, eu me adentrava naquele “ambiente chic”, onde prontamente admirava o remo especialmente feito pelo Ditão da Ditanha e entalhado por papai e a enorme garoupa empalhada no alto da parede. Era sempre atendido pelo amigo Guido. “A mesma de sempre: tônica com limão?”. Ah! Tempo bom!

       A avenida era limpa, silenciosa em comparação aos dias de hoje. As pessoas se conheciam de verdade. Toda a faixa de areia, com seus esparsos coqueiros e amendoeiras,  não impediam a visão maravilhosa da Baía dos Tubarões, da famosa Yperoig que se estendia da Ponta do Ocaraçu até a Ponta Grossa. Uns poucos mais afoitos até arriscavam uns beijos sentados nos bancos de granito que por ali se espalhavam. De vez em quando uma luzinha de baleeira rasgava o largo. Eram caiçaras que “pescavam quase no lagamar”. Tempo de fartura! E hoje, hein? Quem diria!!!

terça-feira, 11 de março de 2014

TEMPO DE MEXERICAS

Mexericas no meu quintal (Arquivo JRS)

         Ao chegar em casa num desses dias, após ter feito uma manutenção no apiário, o meu filho foi logo dizendo: 
      - Pai, tem um recado para você. É do Zezinho, o seu primo. Ele pediu para ligar ainda hoje. O número está anotado na agenda, perto do telefone.
       O Zezinho, filho da tia Maria e do tio Bernardino Barreto, da Praia Brava, perto  da Fortaleza, agora é quem cuida da plantação de pupunha deixada pelos pais. Logo dei um jeito de  saber do que se tratava. “Ah! É tarefa fácil de remover uma colmeia que se formou no meio de sua plantação!”
   No dia marcado, no fim da tarde, eu e mais dois companheiros nos deslocamos para o bairro do Corcovado, onde está o terreno com alta declividade, mas totalmente cultivado com essa palmeira que, precocemente, dá um robusto palmito. Antes de subirmos o morro, tendo tempo para uma prosa, fomos acolhidos na sala com uma refrescante água. E entramos numa gostosa prosa.
     O Zezinho fez um resumo do empreendimento dos pais, da ousadia poucos anos antes de morrerem. Narrou a disposição em desmatar morro acima para tentar um cultivo totalmente  alheio dos caiçaras, quando a pupunha foi apresentada como uma alternativa econômica interessante. Contou da extração, das benfeitorias realizadas tendo em vista a produção. Disse que a morte bem dizer pegou o tio Bernardino trabalhando enquanto preparava palmitos em conserva. “Ali ficava o fogão, onde ele estava envidrando os palmitos”.
    Ao reparar na casa desolada, pois o meu primo só permanece no local enquanto trabalha durante o dia, notei alguma decoração que permanece por ali, como se o casal ainda pudesse voltar à vida. Em especial, uma fotografia com quase todos os filhos, parece nos dar as boas vindas. Ao vê-la pensei no nhonhôs Almiro e João Barreto. Fizeram parte da minha infância nas praias Brava e Fortaleza. 
    Nesta época do ano, quando as laranjas estão querendo amadurecer, passa pela memória os quintais desses nossos patriarcas, onde as gostosas mexericas pareciam se oferecer aos gulosos netos. A acolhedora casa da tia Maria, neta de escravos  - dos Inocêncio, da Ilha do Mar Virado  - e descendentes de árabes lusitanos por parte dos Mesquita, sabendo de nossa gulodice, tratava logo de oferecer um monte de coisas gostosas da sua aconchegante cozinha. Ao final, depois de brincar bastante com os primos e primas, vendo a mamãe se despedindo no fim daquelas distantes tardes, a gente perguntava sempre com muita ansiedade de uma próxima oportunidade. “Quando a gente vai voltar aqui de novo?”.

domingo, 9 de março de 2014

ONDE FOI O EVALDO?

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O mano Mingo, como muita gente, sente a falta do amigo BADO, um caiçara da Picinguaba que tanto talento tem. Disso para a poesia foi um pulo.

Cadê Evaldo, o bardo,
que canta a história verídica e inventada
dos caiçaras de Ubatuba?
Há quem o tenha visto
ponteando viola em noite estrelada,
outros o viram com o pé na estrada,
ou, então, que está enfurnado no sertão
tomando lição de canto com os sabiás.
Sumiu Evaldo, de apelido Bado,
que na porta de casa deixou só uma nota:
fui aprender a linguagem dos pássaros,
só volto poliglota.

Parece que foi ontem que assisti à linda encenação de Terra dos Papagaios, com o BADO. Depois...depois...É melhor ler o texto do Júlio Mendes:
"Eu percebi nas canções do Bado uma forma poética simples, mas de grande beleza e profundidade pra quem tem, um pequeno que seja, conhecimento da cultura caiçara e sentimento por essa terra. As letras e canções do Bado me tocaram no sentimento e na alma, então eu, dentro do meu universo, passei a compor músicas da mesma forma. Das notinhas musicais que vovô Lindolfo me ensinou em minha pré adolescência, deu para musicar alguns simples poemas. Foi para mim um grande aprendizado o convívio com o Bado Todão naqueles dois anos de Pirão Geral, foi dali que despertei para a música regional".

quinta-feira, 6 de março de 2014

AOS NOVOS UBATUBENSES (IV)

  


          Hoje é aniversário do blog (coisasdecaicara.blogspot.com).  São três anos de vida. Ao todo, são 733 textos publicados com o objetivo de dar a conhecer a cultura caiçara nesse pedaço de chão por nome de Ubatuba. Por ele passaram das 49 mil visitas.  Além dos seguidores e dos demais leitores, também ocorrem registros provenientes de outros países. Eis os números de acessos em fevereiro último: Brasil 1350,Estados Unidos 764, China 389, Alemanha 83, Reino Unido 21, Rússia 17, Índia 17, Canadá 11 e por aí vai. Não é legal isso?
         O desenho de aniversário resume o que resultou da convivência entre a serra e o mar, num chão de características tão singulares. 


Agora concluo sobre os descendentes de franceses aqui encontrados em 1949. O texto auxiliar foi publicado na revista O Cruzeiro, em 19 de fevereiro de 1949, cujos autores traçaram os desdobramentos da ruína que se abateu à cidade após o período cafeeiro, na segunda metade do século XIX.



“Outra pessoa que nos causou impressão foi a cinquentenária Maria Vitória Jean,cujos avós, franceses-suiços, se chamavam Michel Cottés e Marie Antoniette Perroud, naturais do cantão de Fribourg, chegados no Brasil em 1863“. Essa mulher é a quem se deu o nome de uma das ruas principais da cidade, que serve  como acesso ao trevo da rodovia (BR-101- Rio-Santos). Porém, na ocasião da matéria, é revelador da sua penúria: “Não reune nenhuma característica que possa revelar a sua estirpe nobre. É uma mulher rude, a face rugosa com apenas um dente no maxilar superior. Ela mesma faz a sua lavoura, que é pequena, apenas para consumo de sua casa, onde mora com um rapaz que tomou para criar”. No momento de fazer as fotografias, a nobre caiçara “deu um pulo da cadeira e perguntou se não iríamos fazer campanha para expulsá-los (os franceses) do Brasil”. 


Outros descendentes nobres desfilaram pela matéria original. “Em uma humilde casinha encontramos o casal Arlindo Soares, um pernambucano de Caruaru, ao lado de uma figura simpática, olhos azuis, cabelos também esbranquiçados, por nome de Virgilina da Silva Prado Bruyer, cujos avós -Jean Bruyer e Antoniette Bruyer - dedicaram-se à arte da olaria em Ubatuba”. “Dos Garroux, pudemos descobrir também uma descendente: D. Clotilde, costureira,que fomos encontrar sentada à mesa, trabalhando em sua ‘Ste. Etienne’, uma famosa máquina francesa”.

Para aceitar a miséria que se abateu à cidade, uma peça teatral foi criada após o fracasso da ferrovia que nos ligaria até a cidade de São Bento do Sapucaí, passando por Taubaté, cruzando o Vale do Paraíba. Resumidamente foi assim:

“Numa concha, colocada ao lado do palco, dormitava um menino, representando a cidade. À certa altura deveria entrar em cena uma locomotiva fazendo grande estridor, arrancando salva da assistência. O menino deveria então, acordar, tomar atitudes vivas e e gritar “Vivas” a Ubatuba. Pretendia-se simbolizar que a cidade se levantava novamente para o progresso, depois dos golpes da abolição da escravatura e do isolamento a que ficara relegada com a Estrada D.Pedro II. Entretando, com a demora do aparecimento da locomotiva, o menino da concha adormeceu de fato e não acordou quando a máquina entrou em cena. Então se arraigou no espírito popular a crendice de que a sentença de morte de Ubatuba já estava lavrada”. E o quadro testemunhado pelos autores da matéria, familiarizados com o ritmo das grandes cidades, obrigados a uma aterrissagem por acaso na quase isolada cidade litorânea, onde a cultura caiçara transbordava, leva ao desfecho da mesma: “E na realidade foi o que aconteceu”.

Hoje, ao passar pela Rua Maria Vitória Jean, reflita nas múltiplas contribuições étnicas que acentuam as características do nosso povo caiçara. Pense nas pessoas que continuam apostando na dignidade de nossa cidade e trabalhando por ela. Melhor ainda: seja uma dessas pessoas.

terça-feira, 4 de março de 2014

AOS NOVOS UBATUBENSES (III)

Os descendentes estão por aí. (Arquivo Olympio Mendonça)

                           Feliz aniversário, Júlio César Mendes!
       
           E continuando no teor da reportagem feita por um acidente...

       “Mas estava escrito que a existência de Ubatuba ficaria na dependência de acontecimentos históricos os mais diversos”. A referência é em relação direta com a Revolta da Armada, logo nos primeiros anos da República, onde os elementos de maior destaque na sociedade ubatubense estavam do outro lado, mais monarquistas, fazendo até festa para o famoso Almirante Alexandrino de Alencar. Enfurecido, o Marechal Floriano, presidente do Brasil, decidiu “cancelar os juros assegurados aos capitalistas que empreendiam a construção da Estrada de Ferro Ubatuba-Taubaté. A companhia inglesa, por sua vez, sem a garantia do governo federal, recusou-se a continuar fornecendo o material”. Tudo foi abandonado, inclusive os túneis que eram iniciados. Por diversos pontos ficaram os trilhos abandonados, as picadas abertas... Quem investiu dinheiro ficou sem nada. Assim escreveram os repórteres em 1949: “Da era de fausto e brilho só restam na Ubatuba acanhada de hoje uns tantos vetustos edifícios senhoriais e os postes de iluminação pública, feitos de trilhos da estrada de ferro que não chegou a ser concluida”.
       Em busca dos descendentes dos franceses que vieram para Ubatuba, a reportagem começa no Itaguá, na casa de um Vigneron Jousselandière: “A habitação tinha um aspecto agradável, cercada de bananeiras, pés de café e canteiros de flores. Na frente, um enorme tronco de árvore estava sendo cavado para ser convertido em embarcação”. Era a moradia do René Vigneron, cujo avô veio para ser um empreendedor nesta cidade tão distante da pátria-mãe. O seu pai, por sua vez, foi o cônsul da França em Ubatuba. Imagine o explendor da cidade para ter o mérito de abrigar um consulado francês! 
     A narrativa segue com Lauro Bourgert que, na época era funcionário do Vladimir de Toledo Piza: “Vinha da roça, com uma foice ao ombro”. O avô, o primeiro Bourget vindo tentar a vida por aqui, foi um importante produtor de fumo. Depois, no centro da cidade, na Farmácia do Filhinho, apresentados aos Giraud, encontraram a beleza europeia se compondo nos traços bem caiçaras. Creio até que sentiram a tentação de nunca mais deixar essa cidade. “Da mesma família dos Giraud é também uma velhinha que vive de tecer esteiras e cestas de taboa, numa casinha coberta de sapê, perto da cidade. Chama-se Amada Filisbina Lopes Giraud. Na sua fisionomia macilenta e rugosa, salientam-se os seus vivos olhos azuis e o nariz reto, denotando a linhagem europeia”. 
     Interessante o método de trabalho dos jornalistas da revista O Cruzeiro: a cada conversa eles foram se aprofundando no tema proposto.

segunda-feira, 3 de março de 2014

AOS NOVOS UBATUBENSES (II)



          Passando pelas terras da antiga Fazenda Jundiaquara, juntamente com o amigo Elias, relembrei de que os franceses já produziram muito nesse chão ubatubano. Morando na área, em 1980, conheci a Lourdes Robillard de Marigny. Agora, me pergunto o quanto está perdendo o município por não investir no turismo cultural. Disse-me o Velho Rita: "A Jundiaquara foi quem recebeu o primeiro engenho vindo do estrangeiro. Aquela geringonça toda subiu puxado pelo rio Acaraú". É isso mesmo! Esse rio que hoje está morto devido ao esgoto que recebe!

     É recomendável que os caiçaras saibam o máximo de sua história, da formação desse povo que vive entre a serra e o mar. Os migrantes (de Minas Gerais, da Bahia, da capital paulista etc.) e seus filhos também passam a fazer parte da história deste lugar por nome de Ubatuba. Portanto, se querem zelar pelo chão que os sustentam, nada mais lógico que saibam responder sobre a cultura do lugar. É neste propósito que eu recupero um texto antigo de dois repórteres da revista O Cruzeiro, de 1949. Sob o título de Caipiras de sangue azul, no texto de Arlindo Siva com fotos feitas por Roberto Maia, é narrada a saga dos descendentes dos franceses que adotaram Ubatuba no início do século XIX. 

     Tudo começou com uma aterrissagem forçada, em época de muita chuva, por sugestão do Sr. Bom, ao instigar o espírito jornalístico dizendo que havia um veio de matéria interessante: se tratava de “descendentes de famílias ilustres vindas de França no século passado, e que estão por aí plantando fumo, fazendo lavoura de café, ou então, transformados em donos de vendas”.

     Fugindo de guerras no antigo continente ou deixando os revoltosos haitianos na sua independência, os franceses aqui aportaram, compraram grandes extensões de terras e organizaram suas fazendas. “Eram os Vigneron Jousselandière, os Robillard de Marigny, os Giraud, os Faviol,  os Bruyer, os Arnois-Savoy, os Charleaux, os Billiard, os Bourget e os Melany. Houve os que montaram olarias e o que ingressaram na Marinha Imperial. Ubatuba passou por um período de esplendor social e cultural. Construiram-se mansões senhoriais e a cidade teve o seu Ateneu e o seu teatro de luxo. O transporte de mercadorias do sul de Minas e do Vale do Paraiba, até Ubatuba, era feito através de uma estrada de rodagem, toda calçada de lajes [...] Era uma estrada real. A primeira máquina de fabricar tecidos que São Paulo teve foi recebida por Ubatuba e encaminhada para Taubaté”.

     Os autores da reportagem não deixam de citar a decadência da cidade litorânea, que veio por decreto do governo: toda mercadoria só poderia usar o porto de Santos para ser comercializado em outras terras. “Foi quando os franceses fazendeiros, aliados a portugueses comerciantes e lavradores, procuraram reagir, tentando salvar Ubatuba da derrocada. Reuniram os seus capitais, com garantia de juros pelo governo federal, e meteram mão à obra: a construção de uma estrada de ferro ligando Ubatuba a Taubaté. Uma organização inglesa se encarregou de fornecer o material ferroviário, e se começou a perfuração de túneis, as construções de aterros, os cortes das elevações. Tudo fazia crer que a decisão daqueles homens de dinheiro iria restituir a Ubatuba o seu fastígio”.