terça-feira, 24 de junho de 2025

A DIDÁTICA DO TIO DÁRIO

Vê o M na parte inferior? - Arquivo JRS 


   Era bem cedo quando eu fui à praia com meu pai para ver as canoas chegando de visitar os tresmalhos. Ah, faz muito tempo isto! Eu gostava muito de ver a tranquila movimentação e admirar os pescados que se ajuntavam nos balaios e fundos das canoas. Também adorava contemplar os desenhos que o sobe e desce das marés deixava no lagamar: eram "árvores" que não se repetiam. Foi naquelas areias molhadas que eu aprendi as primeiras letras: meu pai escrevia e eu copiava ao lado. 

   Tio Dário Barreto tinha uma canoa preta, grande, que dava muito trabalho para dois remadores, mas ela com ela que ele se lançava o mar quase todo dia. Ele era sossegado, falava devagar... Desconfio que nunca teve pressa para nada. Dormi. Numa dessas manhãs, vendo eu ali fazendo os rabiscos na areia, ele ficou contente, disse que foi assim que seu pai também havia lhe ensinado a ler e a escrever. "Naquele tempo não havia escola por perto, menino. Nem sei como o meu pai foi alfabetizado, lia de tudo que aparecesse. Vou agora lhe mostrar como eu fui ensinado pelo meu finado pai". O tio Dário, naquele dia distante, me apareceu num sonho. Pegou uma vareta maior e começou a desenhar. Primeiro foi uma casa reforçada nos traços do telhado: "Aqui na cumeeira está a letra A. Ela aparece na palavra casa duas vezes". E escreveu CASA. A seguir desenhou uma concha: "A costa dela é a letra C, tais vendo? Olha ela aqui no começo da nossa palavra". Depois ele suspendeu um verme do mar, inerte ali perto, depositou perto da palavra casa e deu uma ajeitada com a vara de modo que cobriu o traço do S. "Pronto. tá feito! Foi assim que eu fui aprendendo. Ainda hoje, ao olhar cada coisa, eu primeiro enxergo letras. Faz assim que, logo logo, você vai estar escrevendo e lendo". Em outros dias ele fez outros desenhos com a mesma intenção de me ensinar.  Contei o sonho ao papai. Ele gostou e seguiu o exemplo, a didática daquele caiçara que tantos causos contava na praia da Fortaleza. 

   Não é que ele, mesmo no sonho, estava certo?! Acho que foi daquele dia em diante que peguei o hábito de desenhar no chão e em qualquer lugar que fosse possível deixar uns traços, umas garatujas. Eu era "um perigo" com qualquer pedaço de carvão em  mãos, dizia a mamãe.

      

sábado, 14 de junho de 2025

A BUSCA DE CADA UM

 

Uma ponte no caminho - Arquivo JRS

  Tempos atrás eu me encontrei com o amigo Ni, parceiro de resistência nesse tempo todo, força amiga nas comunidades caiçaras. Dele é a narrativa a seguir:

  "Sabe o Tadeu, aquele pião que apareceu por aqui na década de 1970, que chegou a trabalhar conosco em várias obras? Pois é, ele foi lá em casa pedir ajuda. Tá lá, me auxilia em algumas coisas. Agora já é idoso, mais do que nós, mas não se libertou do vício da pinga. Tenho muita dó. O pessoal me critica por eu lhe dar abrigo, manter ele ali, mas você acha que eu tenho coração para colocar porta afora um ser humano como eu? Se nem cachorro eu sou capaz de desprezar, imagine um filho de Deus! Lhe arranjei um quartinho, comprei colchão novo. Ele come da nossa comida, convive com a gente. Nada sei do seu passado, dos seus familiares. Só sei que veio da cidade de Lorena em busca de trabalho na construção civil, em 1975. E aqui ficou. Desde esse tempo creio que nunca deixou Ubatuba, sempre vivendo pelas obras, em barracos pelas áreas impróprias que foram sendo deixadas aos pobres trabalhadores, às famílias que vieram de terras distantes na esperança de melhores condições de sobrevivência. 

   O Tadeu, assim como tantos outros, me faz refletir sobre a noção de individualidade (que eu considero a manifestação do pensamento que vai se apurando no decorrer da vida). Se o coitado não se libertou desse vício tão antigo, é porque o seu pensamento precisa dele por alguma razão. Depois, tem o corpo que sente a necessidade de determinados elementos que estão presentes na cachaça, né? Mas, pergunto sempre ao pessoal lá de casa, por que o pensamento tem necessidade do vício? Concluo sempre que trata-se de autorrealização. A nossa cabeça comanda o corpo, quer lhe satisfazer para também se realizar. O nosso pensamento sonha desde a infância. E tais sonhos seguem a gente até a velhice, querem se realizar. Nós até nos conformamos em muitos aspectos para contornar os nossos sonhos, mas nem todos são assim, não conseguem isso. Um vício pode ser a solução para quem não admite renunciar aos apelos dos sonhos. Acredito que o Tadeu ilustra essa minha crença. No fundo, somos a realidade, mas estamos buscando a realidade. É o eu querendo conhecer o eu, ansiando pela realização. O Tadeu, coitado, é um dos tantos exemplos de gente que passam a vida inteira nessa angústia. A sociedade não colabora. Ainda mais agora, neste tempo de ideologia egoísta tão forte a ponto de fomentar ódio aos mais pobres, às minorias sociais. Por isso tento ajudá-lo, tornar o fardo dele mais leve. Um dia se libertará. Tenho esperança".

    Eu continuo admirando esse amigo com seu grande coração acolhedor. É um exemplo de alguém que continua regando os laços comunitários que nos trouxeram até aqui e seguem sendo a nossa força. Pessoas assim são pontes em nossos caminhos.


quarta-feira, 11 de junho de 2025

AH, VACINA!

 

Eu e mamãe - Arquivo Ana


  Dias atrás eu fui me vacinar porque acredito na ciência, no empenho de profissionais pelo mundo todo em descobrir fórmulas que previnam doenças ou ao menos as amenize. Ao chegar no posto de saúde, uma competente atendente olhou a minha caderneta de vacinação e exclamou: "Uau, o senhor tem tomado todas as vacinas! Parabéns!". No que eu respondi: "Aprendi com a minha mãe. Foi ela que nos mostrou esse caminho. Lá em casa tem outro documento desse mais antigo, foi completado há muito tempo. Ainda bem, né?".

  A minha saudosa mãe, desde os primeiros anos na praia do Sapé, nos levava ao local de vacinação, no canto da Maranduba, nos mantinha em dia com as aplicações ofertadas pelo setor municipal de saúde e higiene pública daquela época. Mais tarde, na escola primária, também havia campanhas de vacinação. Eu e meus irmãos nunca perdíamos uma, nunca faltávamos à escola para escapar de vacina alguma.

  Vacina como prevenção à gripe a cada ano, vacina contra covid a cada seis meses etc. Ano que vem terei que tomar uma antitetânica. Outras mais podem aparecer. Estou preparado para recebê-las! E pensar que tivemos um ser na presidência neste país que negou a ciência e as vacinas! Além de não levar em frente nenhuma campanha à população, ainda convenceu muita gente, sobretudo pobres, a abandonarem esse hábito que me acompanha desde a infância. Pior: deixou uma herança maldita de políticos que querem desobrigar as vacinações em crianças. Aonde vamos parar? Conheci pessoas que sucumbiram por falta de vacinas. Sei que muitas doenças estão sob controle graças a elas. Minha finada tia Apolônia sofreu a vida toda por poliomielite, teve paralisia infantil porque no seu tempo não era oferecida vacinação contra esse mal.

  Muitas vezes uma pessoa que caiu nessa ideologia nefasta, de não querer vacina, ao ficar doente vai correndo ou será levado às pressas para um hospital público, resultando em gastos infinitamente  maiores do que uma simples dose de vacina. A minha mãe estava certa. Sabia que o nosso socorro estava além das ervas que era usado em casa e na comunidade caiçara daquele tempo, assim como estava certa em querer que estudássemos. Em outras palavras, ela era convicta que o conhecimento liberta.  Ao meu colega tapado, que nega a vacina, perguntei: "Você se arrisca em comer carne bovina, suína etc., que não tem controle sanitário, não recebe medicamentos e nem é vacinado?". Ah, vida de gado!  

  


sexta-feira, 6 de junho de 2025

DESAFIO CULTURAL

 

Rio - Arquivo JRS 

   Escrevi o presente texto para um encontro que deverá ocorrer no bairro da minha infância, o Perequê-mirim, em Ubatuba. Acho louvável o desafio a que se propôs a Vanessa, da família Cabral Barbosa, em resgatar aspectos culturais do nosso querido lugar. A vida comunitária é a nossa base segura, onde os ensinamentos da família se solidificam.  É o rio que sacia a nossa sede. Através do que escrevo, espero ajudar em algo nesse desafio dessa caiçara que se enveredou pelos caminhos da arte, tal como a minha filha e tantas outras pessoas.

   Se queremos vencer a ignorância, busquemos a verdade. É esta que nos liberta.

   Começo assim este texto porque é inegável que a ignorância avança sobre as mentes, sobretudo quando os laços comunitários vão sendo apagados e ideologias individualistas querem tomar e refazer o nosso ser. Assim é com gente, assim  é com o nosso lugar.  Em qualquer caso trata-se de uma perda cultural. 

   Entre 1970 e 1980, o Perequê-mirim abrigou a minha família. Uma praia maravilhosa, com um rio em cada canto e uma lagoa no lado direito. (Faz tempo que uma marina está sobre o local onde até tainhas fisguei um dia); um bairro de vida cultural invejável e com uma equipe de futebol (Esporte Clube Anchieta) respeitada no município. Este time tinha uma sede onde eram promovidos eventos culturais (bailes, espetáculos, campeonato de truco etc.). Hoje, todo aquele espaço do Clube Anchieta se converteu em pontos comerciais e estacionamento para veículos. A moçada daquele tempo, nos fins de tardes, jogava a "pelada" na praia até chegar a escuridão. Em época de carnaval, a molecada maior se fantasiava de mascarados na parte da tarde, num corre-corre distribuía varadas e pregava sustos nos menores pelas ruas. Havia festa junina na escola (que ficava na beira da pista, na esquina oposta à mercearia do Seo Miguel Cabral. Atualmente todo aquele espaço da minha infância está tomado por pontos comerciais). Também nos primeiros anos da década de 1970, o bairro abrigou por anos a Aragon, a companhia que refez a rodovia desde Caraguá até Ubatuba. O antigo local da usina de asfalto e de britas faz tempo que abriga a principal escola do bairro, na área dos Rocha. No sertão está a cratera de onde foi tirada toda pedra a ser britada.

  Defronte a antiga escola, havia uma linda área arborizada, cujo cuidador era um japonês idoso, vizinho do Seo Dito Santo e Dona Vicentinha. (Talvez o Paulinho, da pizzaria, queira falar mais desse personagem singular que até se perfilava no momento do hino nacional e do hasteamento da bandeira uma vez por semana). Nas festas juninas da nossa escola, a grande atração era a dança da quadrilha. Quem comandava os ensaios era o mestre Altamiro, tendo como auxiliar o Dito Carneiro. A quadrilha infantil ficava sob ensaios da Alice e Lúcia, filhas da Dona Ba. Elas moravam na Enseada, no canto direito, onde chegava o Caminho das Três Praias. A festa da capela era no segundo semestre, no dia de Sant'Ana (26/07), com missa, leilão e quadrilha. A rua no entorno era toda enfeitada com arcos de bambus e bandeirinhas coloridas. Carros não circulavam naquelas horas. A zeladora da capela era a Dona Julieta, esposa do Itagino. 

   Outra paixão do bairro era o jogo de malha. Na última vez que o apreciei no bairro, as disputas aconteciam na rua, lateral da capela, onde o chão de areia era ideal para o deslizar das peças achatadas de ferro. (Talvez o Romildo, filho da Dona Aparecida e do Seo Farias, possa comentar desse lazer e dos participantes).

   A cada manhã vários moradores se dirigiam à praia, sobretudo os caiçaras mais velhos, na intenção de olhar o mar e de ver os pescadores chegando de visitar os tresmalhos. Era um prazer ver peixes ainda se debatendo no fundo das canoas ou nos balaios, poder ajudar a puxar as embarcações sobre rolos até a beira do jundu. Uma vez por ano, cantando nas casas e na capela, passava o pessoal da Bandeira do Divino. Quem não queria ver e ouvir esse traço da religiosidade popular?

   Os cultivos no bairro ficavam por conta de banana e mandioca. A família Hyasa tinha a sua área de cultivo (pimenta do reino, beringela, giló etc.) quase no pé do morro, outrora propriedade do Seo Miguel Cabral, onde enormes jabuticabeiras nos proporcionavam prazer graças à bondade dessa família nipônica. (Ainda espero escrever a história desse saudoso samurai, do Seo Hyasa). Em meados da década de 1970, chegaram os Yamada, cuja área de plantação arrendada do Seo Afonso, era depois da ponte, no caminho do sertão, nas proximidades da escola Florentina. Pelo que me lembro, somente um caiçara se dedicava totalmente às verduras e bananas: era o Seo Dito Coimbra, morador do Sertãozinho, onde mais tarde também foi morar o Miguel, filho da Dona Maria Clarinda. Qual será a denominação daquele lugar atualmente?

  Agora, em relação aos espaços de cinema no bairro, deixo a palavra para o meu irmão Domingos, para o filho da Dona Maura e Seo Aristides e outros dos presentes, cujos filmes deixaram suas marcas. Infelizmente, por motivos pessoais, não pude estar presente, rever o estimado pessoal e conhecer gente nova Forte abraço, minha gente! Parabéns à Vanessa pela iniciativa! Até.

       

        

terça-feira, 3 de junho de 2025

CÉU ESTRELADO

 


Força neste dia! - Arquivo JRS 

Noite - Arquivo JRS 


    Querida mana Ana: 

    Eu me acomodo no banco de madeira do terreiro para olhar o céu estrelado, aproveitar que ainda não faz muito frio. Sempre que faço isso me vem à lembrança a paixão da querida sobrinha, da sua filha Joseana. Há um ano ela partiu, deixando apenas o céu estrelado como referência. Pascal, o pensador, escreveu que "o coração tem razões que a própria razão desconhece". A vida-luta de cada dia era dela.

     A nossa querida nos deixou no silêncio triste, mas ouvimos sempre suas falas, suas angústias, suas conquistas e seus desafios incompletos. Em minha família, na sobrinhada espalhada, nos andarilhos que vagam pelas estradas e no tanto de gente que segue enfrentando o grande oceano com suas infindáveis vagas, eu enxergo a Joseana. É por isso que digo: A Jô permanece entre nós porque o seu carinho, o seu empenho, as suas angústias, as suas alegrias são as mesmas de toda gente que deseja um mundo melhor, uma sociedade mais justa, um espaço de boas risadas como ela gostava. 

     Olho o céu. Lua e estrelas oferecem luz para todos. A nossa querida das tatuagens, passando em nossas vidas, também deu a sua luminosidade. As estrelas seguem sendo parte da sua luz neste céu imenso que contemplo sempre. O que eu desejava a ela, eu continuo desejando a todo mundo: paz e bem.

     Foi buscando a paz que ela fez o seu caminho. Foi perseguindo o bem que ela usou o seu ser. Paz é fácil de entender. Bem é algo mais complicado, mas a nossa Jô, uma das nossas fofuras queridas, se pautava no bem como enfrentamento das injustiças (por isso era intransigente), como tentar ajudar quem precisava (por isso perguntava sempre), como conviver bem com o nosso entorno (por isso adorava festas).  Ela notava,  comentava as hipocrisias e enfrentava as situações adversas com a cara limpa porque perseguia a felicidade, pois sabia que ela é a razão do nosso ser. À felicidade é que somos talhados. 

     A sua filha via demais, Ana, captava muitas coisas, ousava além das próprias forças... Neste sentido escreveu o velho Nietzsche: "Quem vê demais, acaba não cabendo em lugar nenhum". E ela não coube nesta realidade porque o seu sonho era muito maior, tal como este céu estrelado visto desse banquinho plantado no nosso terreiro. O coração dela, assento da consciência, se decidiu pelo mais difícil. Em nós restou o grito de muita gente representada pela sua viagem no caminho das estrelas. Olhando estas, eu vejo a sua passagem entre nós, o seu presente que nos coube. Estava certa a sua amiga Karen quando escreveu que "ela nunca esquecia de presentear quem amava". A luz que irradia do céu estrelado é o seu presente para nós. Ela viajou, seguiu a razão dela. Mais que isto ainda não consigo fazer, pois consolar continua sendo um aprendizado difícil. Em memória dela, continuemos a cultivar o nosso amor-saudade. Beijos e abraços nossos, querida Ana.

Em tempo: de dia, do mesmo banco, eu aguardo a tinticuia (manacá da serra) da nossa Fufa florir. De noite, olho as estrelas. A memória não esquece aquilo que o coração ama. 


sábado, 31 de maio de 2025

A SÉTIMA ARTE

 

Lá longe o mar - Arquivo JRS 

    Vanessa Cabral era uma criança nas minhas lembranças da década de 1970, no Perequê-mirim. Eu a via muitas vezes passeando, sempre bem arrumadinha, com roupas bonitas,  de mãos dadas com a mãe nos arredores ou brincando na praia, bem em frente da casa dos avós (Seo Pedro Cabral e Dona Ana). Passou o tempo, vieram as redes sociais, Vanessa cresceu; estabelecemos contato porque ela também se interessa por coisas de caiçara, pela história da nossa terra. Assim como eu, ela acredita que manter a viva memória do nosso povo ajuda na resistência e na preservação do nosso lugar, da nossa cultura. Está na área da Arte a filha da Nely Cabral? Que bom! Concordo com o velho Nietzsche que disse o seguinte: "Temos a arte para não morrer da verdade". Dias desses ela me perguntou a respeito do cine clube que funcionou nos fundos do Bar e Bilhar do seu tio Aristides Cabral. Eu não pude lhe ajudar em nada, mas lhe contei que outro tio, Miguel Cabral, possibilitou a muita gente assistir filmes no espaço que lhe pertencia, onde mais tarde existiu o Bar Orly, do Severino e da Nilséia Nascimento. (Neste estabelecimento eu fui registrado dos 14 aos 18 anos, época que me mudei para o bairro da Estufa depois de ter morado por 11 anos no Perequê-mirim).

   Miguel tinha uma sortida mercearia num dos acessos àquela maravilhosa praia, na esquina oposta à escola do bairro. Na verdade, a área dele era bem grande, abrangia várias casas. A outra mercearia do bairro estava localizada no outro acesso para a praia: era do Aristides, seu irmão. (Seo Jorge Coelho foi arrendatário mais tarde. Recém chegado do Estado do Rio de Janeiro, era sogro da pasteleira dona Margarida e pai do Jairo. Se estabelecera um tempo antes como açougueiro num espaço alugado, ao lado da mercearia do Miguel. Prosperou tendo o filho como parceiro). Não havia bares naquele tempo, na década de 1970. Somente o Tião Caçuroba tinha uma barraca no terreno do Almeida (depois Perequim), onde a freguesia principal era aos domingos, nos dias de jogo no campo, na área atual do supermercado do Pai. Logo esse outro ponto comercial do Miguel, do lado de cima da pista, localizado entre as propriedades do Almeida  e do doutor Sidnei, se tornou uma referência, sobretudo aos bebedores. Havia um salão grande, além do espaço do balcão e das mesinhas. Era ali que, por um tempo, assistíamos aos filmes. Quem tinha o maquinário era o senhor Valter, de Taubaté. Também era tarefa dele esticar um grande pano branco na parede para servir de tela e organizar cadeiras e bancos de madeira. Os filmes vinham em latas redondas e achatadas. Mazzaropi, Zé do Caixão, todos os ídolos do faroeste americano entraram em nossas vidas graças a esse espaço proporcionados pelos Miguel Cabral, o Seo Miguel. 

    Dias atrás, conversando com o mano Domingos, fiquei surpreso: "Claro que eu me lembro do cinema do Aristides! Eu fui assistir muitos filmes lá! Você não ia porque já trabalhava no Severino e estudava à noite na cidade, no Deolindo. Era legal. Quem fazia a projeção era um homem que chamavam de Boiadeiro". Então eu deduzi que esse senhor era o pai do meu colega Silvio. Por um tempo eles moraram na Enseada, quase na subida do morro do Maciel, não muito longe  do Veiga. Só não tenho certeza de que era ele mesmo quem projetava os filmes. Talvez alguém mais antigo no bairro possa ajudar a Vanessa nesse resgate. Resumindo: o único cinema da cidade era o Cine Iperoig, mas era muito difícil sair dos bairros para desfrutar dos prazeres da sétima arte. Então, os irmãos Miguel e Aristides nos proporcionaram conhecer artistas, estilos e viver aventuras através das projeções em seus singelos espaços. Viva o cinema!

 


domingo, 11 de maio de 2025

CHÃO DO MUNDO

 

  

Uma rosa - Arquivo JRS 

    O velho Ronisvaldo, reacionário toda vida, ainda não de todo velho, mas aposentado, resolveu-se pelo casamento. Começou a pintar os cabelos, não deixou crescer barba e bigode para não mostrar os fios brancos. (Não tem como escapar das malhas do tempo, né? Porque a idade só cresce - para todo mundo!). Lhe disseram que em igrejas é mais fácil conseguir um namoro, arranjar casamento. Por este caminho foi o velho Ronisvaldo. E apareceu mesmo uma moça, aparentemente de boa família, mas com um pai beberrão devido aos traumas da caserna. (Eu desconfio que ele teve de participar de coisas horríveis, tipo tortura). Religiosa fanática, a moça cujas raízes vinham da região  nordestina, aceitou a parada, foram morar juntos. Depois se casaram porque, na igreja, começaram a surgir uns comentários maldosos. Se mudaram, alugaram casa à beira mar. Que felicidade! O velho, orgulhoso da vida, arranhou a poupança e proporcionou uma viagem em lua de mel. Na volta até comprou um carro novo. No início quis regular o uso para a esposa, mas com o passar do tempo não teve jeito porque ela, bem mais nova do que ele, queria rodar, ver as novidades, ter a autonomia que o pai nunca permitiu. E ele? Ah! Já estava cansado, confirmando a verdade de que o corpo se vai bem mais rápido que a cabeça.

    Passaram-se anos. Até tinha me esquecido dos pombos reacionários que um dia quiseram me diminuir porque se achavam melhores que o meu povo, "essa caiçarada atrasada que nem merecia estar perto do maravilhoso mar".  Eu soube tempo depois que o velho tinha morrido. Pensei na hora: "Bom para a esposa. Ainda deve ter um resto de poupança do finado muquirana".

      Na semana passada, enquanto eu estava cuidando de umas plantas na beira do caminho, divisei duas mulheres que portavam uns galhos secos (lenha) e seguiam conversando alto, como se estivessem perto de uma ruidosa cachoeira. Você acredita que uma delas era a viúva desta história? Ah! Que mundo pequeno! As duas companheiras estavam a prosear:

- A Maria perdeu as duas novilhas que levou para o sítio. A primeira sumiu, depois levou outra que também desapareceu.

- Pode ser que tenham sido roubadas ou comidas por onça.

- Será que onde ela tem o sítio existe onça?

- Lógico que tem! A Carminha, que foi uma vez lá, disse que escorregou num barranco e lá embaixo viu muitas pegadas de onça. Esconjurou: "Nunca mais volto naquele lugar, nem que me pague".

- E se foram roubadas porque alguém estava querendo comer?

Nesse momento a dita viúva suspirou:

- Acho que até eu comeria com satisfação uma novilha feito churrasco.

  As duas continuaram a falação caminho afora enquanto eu pensava e repetia o surrado chavão: "Como este mundo é pequeno!".