sábado, 25 de outubro de 2025

PATRIMÔNIO CULTURAL

 

Arte em casa - Arquivo JRS 

   Os meus clássicos da literatura vão e vêm, como marés. Agora, por exemplo, estou numa maré Saramago. Além de viajar por outras terras, à mente me apresentam outras reflexões, muitas visões de mundo e novas contribuições ao meu ser. Assim se faz e refaz meu espírito, a minha alma inquieta que inquieta continua, marca da minha/nossa humanidade que começou a se formar ainda no ventre da mãe, passou pela comunidade da infância e pelas escolhas que foram feitas. Feliz da pessoa que pode fazer escolhas!

   Hoje acordei pensando em quem produz arte, sobretudo em quem, na minha terra caiçara, sempre produziu artes para o nosso prazer e reflexões. Em minha memória estão compositores, cantores, tocadores, entalhadores, pintores, tecelãs, ceramistas, fotógrafos, artesão das mais variadas vertentes etc. Infelizmente muitas coisas maravilhosas já desapareceram, não foram arquivadas, nem gravadas, muito menos conservadas em acervos públicos. Preciosas obras de artes surgidas nesse chão caiçara de Ubatuba foram condenadas à morte pela indiferença e pelo desmazelo. Pensei muito nisso certa vez que fui ao museu de arte sacra de Taubaté e vi obras do Mestre Bigode, ubatubano da gema. Levei em consideração um pensamento de Saramago ao fazer itinerário semelhante: "A gente não precisa de imagens sacras para orar aos pés delas, mas precisa de que elas sejam defendidas porque são obras do gênio do homem, beleza criada". Recentemente, no espaço do Teatro Municipal de Ubatuba, houve uma mostra do que foi possível arregimentar das obras desse mestre entalhador. Agora, que tal fazer o mesmo empenho nas obras do Da Motta, do Jacó, do Pio e outros?

   O mesmo rumo destas linhas se aplica ao Museu Caiçara, ao Museu Histórico, às ruínas que muita gente nem sabe da existência, às poucas linhas arquitetônicas e urbanísticas desta Ubatuba que atestam um passado interessante, passível de servir ao turismo cultural. Faça um passeio à deriva pela cidade, pelos logradouros, sinta as mensagens de outros tempos e diga convictamente: "Isto tem de ser preservado; aqui merece guia de turismo para a sensibilização das pessoas!".

   Ainda podemos consertar e acertar muitas coisas. Ainda há tempo para mostrar muitas obras da genialidade humana! As mostras que acontecem vez ou outra devem se intensificar! Podemos acertar... podemos errar!

    Nesta direção, preocupado com o acervo de 14 anos (mais de 2.200 textos até este momento), estou pensando em fazer a escolha de alguns textos para publicação. Para tal desafio estou iniciando uma campanha junto ao público leitor. Espero e agradeço por sugestões na seleção e custeio, via e-mail (ronaldo.jrszero@gmail.com)

   "Há horas felizes, há erros que o não são menos" (Saramago)


sexta-feira, 24 de outubro de 2025

ESCURIDÃO DE RESPEITO

Arte em xilogravura - Pita Paiva 


     Bem cedo me pego pensando na mítica Ilha dos Sumidos, citada na obra Canoa Emborcada, do estimado Santiago "Santi" Bernardes. Eu a tomei como espaço de reflexão de temas que não deveríamos descuidar, de lembranças boas e de gente melhor que não podemos apagar da memória. Ela, na minha concepção, se tornou um desafio e, ao mesmo tempo, um lugar para redescobrir e/ou reforçar a mística do povo que se fez entre roçados, pescarias e festejos; um espaço para nutrir nossos espíritos que teimam em evitar que o nosso território se torne um inferno aos seus moradores e visitantes. Por isso, sempre que eu sentir necessidade e inspiração, recorrerei à Ilha dos Esquecidos para pensarmos juntos e agirmos em conjunto. Agora eu trago a reflexão do muito estimado Jorge Ivam em torno da educação pública:

    A escola pública era apresentada como um meio de os jovens da classe trabalhadora ascenderem socialmente. Poucos conseguiam isso, mas havia essa possibilidade, havia um discurso que o estimulava, agora os currículos oficiais nem disfarçam mais o objetivo de manter as injustiças sociais. Para isso, com o pretexto de que os jovens pobres precisam se empregar mais cedo, a escola alija os alunos dos conhecimentos básicos e empurra-os para o mercado de trabalho, no qual, por falta de formação, terão de se conformar em exercer funções desprestigiadas e, portanto, mal-remuneradas. O resultado é que a desigualdade social só aumenta. Outra consequência dessa educação é o indivíduo que a recebeu não ter a mínima noção de que é vítima de um sistema que o faz acreditar que vive em situação precária porque não tem mérito, ou não é tão inteligente quanto aqueles da classe dominante.

    O resultado, as consequências de tal modelo tende a agravar com a tendência conservadora de implantação de escolas cívico-militares, onde a ideologia de defesa dos privilégios de uma mínima parcela da população (sob a denominação de "patriotismo") é marca histórica das instituições  militares (que desejam manter-se na mamata). Uma elite terá sempre a necessidade de gente disposta a dar a própria vida, a tal disposição de "morrer pela Pátria e viver sem razão" cantada pelo poeta. Somando todos esses aspectos, das tendências curriculares ao neofascismo da extrema-direita, essa onda que ameaça inundar as praias com muitas imundícies, prevejo uma escuridão de respeito caso não tomemos posição contrária, se consolidando como força popular.


quinta-feira, 23 de outubro de 2025

NÃO VÁ, JÚLIO!

 

Júlio O. Barbosa - Arquivo da família 

  Seo Júlio Barbosa, pescador antigo da praia do Félix, nos deixou, navega agora em outras águas.

  Na primeira década deste século, eu e a família preferíamos a praia do Félix como diversão principal, ficando no sossego do canto direito, onde desce um riozinho. As crianças adoravam aquele pedaço. Era comum eu encontrar o seo Júlio reinando por ali, fazendo uns acertos no rancho das canoas, saindo ou chegando da pescaria, mas sempre tendo um tempo para prosear. Tristeza por quem não passou por essa vivência, não ter conhecido esse honrado caiçara que nasceu, cresceu e morreu na praia que tem como padroeiro São José.

  Foi escutando o seo Júlio que eu soube da luta dos caiçaras autênticos contra aqueles que queriam lhe tomar o lugar dos ranchos das canoas, acabar de vez com o jundu daquela praia. Também aproveito para engrandecer a Maria Isabel (filha do saudoso João de Souza e da dona Maria) e outras mulheres que se fazem parceiras de seus companheiros na preservação da natureza e da dignidade do povo caiçara. Ela, Nilton e o sogro não me deixam esquecer de estar sempre vigilante, de ter a mansidão da pomba, mas a astúcia da serpente. Lembre-se do seo Júlio na próxima vez que você for na referida praia, saiba que o que está preservado ali deve muito à luta desse roceiro-pescador que agora rema em outros mares, onde não há lajes traiçoeiras, nem ressacas, nem nada. Não vá nos deixar órfãos de seu ânimo,  seo Júlio! 

    Vá em paz, seo Júlio! Em cada remada nesse outro rumo, pense em nós que precisamos ter forças contra as ressacas de maldades que assolam o mundo, destroem o litoral e perseguem a diversidade cultural deste Brasil.

  O mano Mingo escreveu a seguinte prosa desse valoroso homem que continuará em nossas memórias e alimentando as nossas lutas e celebrações:


   "Deus do céu já falou comigo. Foi em uma madrugada quando estava arrastando a canoa para pôr no mar. Ele disse nos meus ouvidos: 'Júlio, não vá pescar!'. Olhei para os lados, pensei que era imaginação e continuei o que estava fazendo e de novo ouvi: 'Júlio, não vá pescar!'. Parei, senti o vento, espiei o mar, estava quase tudo tranquilo e pela terceira vez escutei o mesmo conselho: 'Júlio, não vá pescar!'. Muito teimoso eu fui. Veio uma primeira onda imensa, vinda de não sei onde, rolou minha canoa, me pinchou na areia. Depois vieram outras e começou o açoite do mar ressacado. Pedi perdão a Deus por não ouvir os seus conselhos. Quase morri afogado".

Em tempo: No rancho da família Barbosa está a grande canoa do Nilton/Isabel reformada por meu pai. Ele a chamava de canoa dos mil pedaços.



quarta-feira, 22 de outubro de 2025

BADO, O BARDO

Bardo da aldeia - Imagem internet


  Quando digo bardo, penso nos desenhos da revista Asterix. Nas historinhas da aldeia gaulesa, o bardo era músico, poeta, um conclamador e contador de histórias nos moldes dos pasquins de antigamente em Ubatuba. O amigo Bado Todão se encaixa bem na definição, nesse perfil: faz teatro, compõe música, escreve significativos textos... Enfim, viaja em universos diversos. Dias desses, esse bardo ubatubano me deu a ótima notícia:

  "O Sérgio e a esposa estão oferecendo um espaço na loja FOTO KIKUTI para que possamos expor nossos livros".

   Também o mano Guinho reenviou a mensagem do Sérgio: 

"Estou te convidando para participar do espaço literário criado aqui na loja KIKUTI para autores locais. Já estão chegando alguns exemplares. O espaço não tem custo e nem comissão sobre as vendas, Se você tiver alguma publicação ou souber de algum amigo ou parente, por favor pode chegar".

      Louvável a iniciativa deles, do Sérgio e esposa, talvez seja alguma das reverberações da primeira edição do Pirão das Letras, o evento literário que recentemente envolveu muita gente em Ubatuba e foi um sustento às nossas almas. Parabéns ao casal que trás essa possibilidade, essa oportunização de outros olhares sobre nossas heranças culturais e os talentos neste chão caiçara! Gratidão demais do fundo do meu ser!

Em tempo: Eu conheci o senhor Kikuti quando, para se matricular na quinta série (primeiro ano do ginásio), tive de providenciar algumas fotos 3x4. Ele era o fotógrafo. Tempos depois fiquei sabendo, por intermédio de um caiçara antigo, que esse descendente nipônico tinha um imenso bananal no Morro da Pipoca, no pé da serra: "Bastante gente trabalhava no bananal do Kikuti. Eu era novo de tudo. Naquele tempo, desde a Marafunda até o pé da serra era só plantação de bananas. A decadência veio depois da enchente em Caraguá (porque ficou sem estrada para escoar a produção e eram poucos os barcos que transportavam esse tipo de carga".


terça-feira, 21 de outubro de 2025

CORAÇÃO NAS BRUMAS

 


Rua dos Góis - Arquivo Roberto Ferrero

   Das brumas, dessa cerração no mar, vêm coisas da memória que nunca imaginei brotar um dia. Dias desses, estando a me recordar de bons momentos antes da adolescência, quando a diversão era o motor principal da vida, com morros, praias, caminhos e mar à disposição, pensei num relato do tio Dadinho (Dario Góis), pai do Diminhas e tio do João e irmandade, todos companheiros, em outros tempos, de travessuras e aventuras no pedaço de chão entre Perequê-mirim, Santa Rita e Enseada. Éramos bem felizes e sabíamos!

   Tio Dadinho, assim como o irmão Dito Góis, habitavam nas proximidades da Pedra Branca, zona intermediária da praia da Enseada. A mãe deles, a já bem idosa Dona Maria, recebia todos os cuidados da nora Dita (esposa do Dario Góis). Já faz tempo que a rua onde moravam recebeu o nome da família: Rua dos Góis. Ali por perto, nas cercanias da rodovia, residiam outras amizades: Vera, Nenê, Helena, Dinho, Jair, Teté, Basílio, Nestor, Celi, Celeste, Vanil, Zizo, Tereza e Fernando...

   Mas qual relato me fez recordar do tio Dadinho e dessa gente dos Góis, sobretudo do Seo Dito Góis e da Dona Preciosa? Explico: eu queria entender de onde vinha esse nome, essa descendência, essa família Góis. O relato do pai do Dimas, aparecendo em fragmentos na minha memória é este:

  "A minha gente antiga veio de Portugal. Mamãe contava que até existe um cidadezinha em terras portuguesas com o nome de Góis. Foi de onde, desde os primórdios de 1500, os Góis se fizeram presentes na história do Brasil. Peró de Góis foi famoso naquele tempo. Mais tarde, junto com a família real, em 1808, mais Góis vieram para cá, morar neste chão. Tinha gente da nobreza entre os Góis, dizia a mamãe. Dessa última turma é quem vem o parente mais próximo resolvido a ser fazendeiro em terras brasileiras. Sabeis a razão do finalzinho da praia, indo no caminho do Paru, ter o nome de prainha do Canto do Góis? É porque ali um nosso parente tinha um engenho de pinga e plantava mais coisas por aquele morro todo. Com o passar do tempo esse meu parente empobreceu, tudo se arruinou e deu nessa caiçarada que somos. Os descendentes viraram esses Góis que estão hoje em dia por aí, inclusive eu e o Ditinho." 

   Ah! Como eu gostaria de saber mais dos bens da nossa terra! É neste rumo que o meu coração é chamado.




segunda-feira, 20 de outubro de 2025

HÁ PONTE?

 

Caiçara no Camaroeiro - Arquivo Louzada


    Sim, há ponte, mas não há toda memória. Sei que foi o João Firmino quem a construiu. Era para passar gente, animal de carga de vez em quando. Agora passa carros leves e pesados caminhões. Ia da praia ao mato fechado, era o caminho para o Morro da Quina. Agora dá volta, chega no outro lado depois de cruzar o Araribá. Aquele rio vinha da vargem enriquecida com águas do Ingá e ganhava o outro grande já no mangue, não tão perto da casa da tia Brandina, no jundu da Maranduba, onde caiçaras antigos caçavam guenzo para se alimentar de forma diversificada. Viajante nenhum esquecerá o café amargo com peixe seco da saudosa hospitalidade. Titia era assim. Tempo depois, quando lotearam tudo, ela se viu obrigada a deixar aquele seu pedaço de chão próximo do rio que dava infinitas voltas. (Desde o início da década de 1960 está reto). Só ficou uma mangueira estimada que até hoje está lá bem próxima da atual rodovia. Nunca deu frutos;  só é testemunha do tempo. Mas de qual tempo? Da infância, no tempo da escravidão restante, na fazenda da Caçandoca? Da simplicidade no jundu, quase no Sapê? Do Sertão do Meio que a acolheu até o último suspiro?

  

   Agora a bruma já se levantou, mas o tempo continua incerto. Os tempos são outros! As esfarrapadas névoas levam lembranças das liberdades douradas. Há um silêncio acima de toda perturbação. O mar de peixes se torna mar sujo de tudo. Contra isto pouca gente luta apesar da imensa indignação. O viajante vai-se embora, mas sua figura continua sentado na beira da estrada, olhando o horizonte que separa o mar do céu. Sapê: aqui foi a primeira porta do paraíso. A ponte do João Firmino, neste dia de azul aguado, ainda resiste e existe na memória fraca. O céu tá limpo e lindo! Aquele canteiro cultivado com dedicação demonstra a grandeza da alma, do trabalho transformador dessa gente que se fez povoado à sombra do porto da Santa  Cruz e segue fazendo pontes universais. Tio Dito, tio Neco, Aquilau (que um dia me deu sementes de especula), Marcos, Tina, Claudinha, Giovana, Mônica, Maria Cruz, Rosa do Décio, Nié, madrinha Chica...Toda gente deste chão caiçara, deste sangue roceiro e pescador que esta terra gerou está na figura sentada na beira da estrada, na lembrança que não viajou. Depois da ponte, o viajante teve um arrepio. Pensou: depois do tudo vem o nada, mas qual será o futuro desse tudo? Há ponte?


domingo, 19 de outubro de 2025

ARRASTANDO

Canoas do pai - Arquivo JRS



 

Tio Chico, animado bem cedo,

quis saber da vovó:

Como começa o dia, mamãe?

Arrastando, meu filho.

Pensou: hoje tá ruim o seu humor.


Depois baixou a canoa no rolo,

se muniu de remo, puçá e balaio;

armou o traquete para reparar bem em tudo,

viu os tons de terra e de mato

e os azuis do mar: maior amor.


Depois do Ilhote do Pontal desceu o arrasto do puçá.

Água clara, águas a leste...

Longe um nevoeiro ameaça avançar,

lembranças do parceiro Hilário

quando a Aurora, da Sete Fontes,  transbordou.


Já faz tempo, agora têm filhos, netos, bisnetos...

A cerração chegou junto com a puxada:

o ensacador estava abarrotado.

Gosta de nada ver, mas remar na sorte...

Titio aportou, tava certo no rumo que tomou.