quinta-feira, 23 de outubro de 2025

NÃO VÁ, JÚLIO!

 

Júlio O. Barbosa - Arquivo da família 

  Seo Júlio Barbosa, pescador antigo da praia do Félix, nos deixou, navega agora em outras águas.

  Na primeira década deste século, eu e a família preferíamos a praia do Félix como diversão principal, ficando no sossego do canto direito, onde desce um riozinho. As crianças adoravam aquele pedaço. Era comum eu encontrar o seo Júlio reinando por ali, fazendo uns acertos no rancho das canoas, saindo ou chegando da pescaria, mas sempre tendo um tempo para prosear. Tristeza por quem não passou por essa vivência, não ter conhecido esse honrado caiçara que nasceu, cresceu e morreu na praia que tem como padroeiro São José.

  Foi escutando o seo Júlio que eu soube da luta dos caiçaras autênticos contra aqueles que queriam lhe tomar o lugar dos ranchos das canoas, acabar de vez com o jundu daquela praia. Também aproveito para engrandecer a Maria Isabel (filha do saudoso João de Souza e da dona Maria) e outras mulheres que se fazem parceiras de seus companheiros na preservação da natureza e da dignidade do povo caiçara. Ela, Nilton e o sogro não me deixam esquecer de estar sempre vigilante, de ter a mansidão da pomba, mas a astúcia da serpente. Lembre-se do seo Júlio na próxima vez que você for na referida praia, saiba que o que está preservado ali deve muito à luta desse roceiro-pescador que agora rema em outros mares, onde não há lajes traiçoeiras, nem ressacas, nem nada. Não vá nos deixar órfãos de seu ânimo,  seo Júlio! 

    Vá em paz, seo Júlio! Em cada remada nesse outro rumo, pense em nós que precisamos ter forças contra as ressacas de maldades que assolam o mundo, destroem o litoral e perseguem a diversidade cultural deste Brasil.

  O mano Mingo escreveu a seguinte prosa desse valoroso homem que continuará em nossas memórias e alimentando as nossas lutas e celebrações:


   "Deus do céu já falou comigo. Foi em uma madrugada quando estava arrastando a canoa para pôr no mar. Ele disse nos meus ouvidos: 'Júlio, não vá pescar!'. Olhei para os lados, pensei que era imaginação e continuei o que estava fazendo e de novo ouvi: 'Júlio, não vá pescar!'. Parei, senti o vento, espiei o mar, estava quase tudo tranquilo e pela terceira vez escutei o mesmo conselho: 'Júlio, não vá pescar!'. Muito teimoso eu fui. Veio uma primeira onda imensa, vinda de não sei onde, rolou minha canoa, me pinchou na areia. Depois vieram outras e começou o açoite do mar ressacado. Pedi perdão a Deus por não ouvir os seus conselhos. Quase morri afogado".

Em tempo: No rancho da família Barbosa está a grande canoa do Nilton/Isabel reformada por meu pai. Ele a chamava de canoa dos mil pedaços.



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