Tinticuia - Fufa querida - Arquivo JRS |
Querida irmã:
Quando éramos crianças, estando ouvindo histórias que nossos avós contavam rente ao mar, a palavra encantado aparecia sempre. Como num apagar de luz a moça virava fada, o sapo se tornava príncipe, o peixe se transformava em ouro, a sereia saía do mar como mulher etc. Se encantar é se vestir com outra vida, ter nova aparência, causar impacto nos arredores, tal como uma borboleta deixando o casulo. Assim, tenho certeza de que a nossa saudosa menina-moça, leitora maravilhosa que foi, diria às nossas memórias retidas no coração a mesma frase de Guimarães Rosa: “Minha gente, eu me encantei”. Em seguida, completaria nossas saudades com uma resposta de Rubem Alves ao ser perguntado aonde iria depois da morte: “Eu vou para o mesmo lugar de onde vim há milhões de anos [...] Onde é o Tudo de Todo, o lugar de origem de todas as origens”.
Pois é. Foi assim como poderia ter sido de outro jeito. A querida Jô mostrou que era senhora de sua vida. Ela acolheu o momento que o corpo e a alma desejaram partir. Foi a forma dela levar a libertação avante. A sua canoa agora navega num mar infinito, onde estrelas brilhantes preenchem a escuridão. Daqui do morro dos ventos uivantes, onde a minha embarcação está fundeada, eu contemplo o céu maravilhoso e não me canso de recordar os tantos momentos que remamos juntos da nossa querida. Sinto que tudo ao redor acompanha o balanço das ondas em nossas trajetórias. Sei que mesmo fundeadas em qualquer porto, as proas das embarcações sobem e descem, olham para o horizonte hipnótico que paira sobre todo mar, tal como fazíamos da nossa casinha no morro da Fortaleza. É ele que transporta uma criança crescida que se despediu de nós e se encantou, está de volta às origens. Em nossos baús deixou suas máquinas, panos diversos, sapatos, livros, imagens e gestos marcantes.
Passei boa parte do dia olhando as fotografias de outros tempos. Agora, depois do sol brilhar muito, fez-se noite. Dou uma saída no terreiro para uma breve apreciação do céu estrelado. Estou no Céu Estrelado sentindo em cada uma dessas estrelas a mesma paixão que se mostrava à Jôse. A elas ela retorna. A mim me desafia a ver sombras neste regresso. Escreveu Saramago que “é dado ter nas mãos sóbrias a felicidade, em um momento dá-la ou retirá-la, como se acredita a Deus a vida”. É certo, minha mana, que a memória não esquece aquilo que o coração ama. Aqui seguimos pensando em você e em todas as pessoas que amaram a nossa querida Joseana, lhe desejando muita força sempre. No terreiro, uma jovem tinticuia (manacá-da-serra) foi plantada em nome dela, uma das nossas Fufas. Beijos e abraços nossos. Até.
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