quinta-feira, 1 de junho de 2023

SOLIDARIEDADE ACUADA

 


Sebastiana e suas netas - Arquivo Museu Caiçara de Ubatuba


     Dias atrás, bem no centro da cidade, me deparei com um adolescente que há tempos não via. Na verdade, quase não o reconheci porque era uma criança “uns dias desses”. Assim que me viu, me cumprimentou com um bonito sorriso naquele rosto negro. Logo perguntei dos estudos. “Estou fazendo o terceiro ano do ensino médio agora”. Eu quis saber dos planos para o futuro. “Aí vou trabalhar para viver. Fazer faculdade tá muito caro”. Então eu aproveitei para tentar estimular a continuar estudando, comentei das alternativas: ENEM, PROUNI, ETEC etc. Todas iniciativas do governo federal, de um tempo onde se deu mais atenção às populações marginalizadas, marcas de um governante depois substituído por outro que buscou acabar com todos esses programas populares. Foi aí que ele se revelou como um jovem reacionário, formado pelas mensagens enganadoras das redes sociais, defendendo o caloteiro genocida etc.  Me assustei: "Como é possível um jovem estudante negro alienado assim?" A primeira dedução que fiz: "Este rapaz não está estudando como deveria ou está sendo manipulado por uma educação que não quer libertar, não está promovendo a autonomia do pensamento nos estudantes". A minha primeira vontade foi de perguntar: “Você já estudou o processo de escravização que resultou no Brasil, na cultura que temos, na sociedade desigual que até retira de você a possibilidade de avançar nos estudos?”. Ele ficou parado. Então eu continuei: “Vou lhe contar apenas uma situação real, ocorrida com nossos parentes na Caçandoca. É história que ouvi de meus avós e de mais gente nascida naquele lugar, hoje considerado área de quilombo graças a um governante que você está contra. Quilombo você já sabe o que que é, né? Presta atenção então: é a história da Pedra da Janta. Há anos eu fui conhecê-la; fica entre a área onde nasceu o meu avô Estevan Félix e onde era a posse do tio Silvário. O primo Antunes estava comigo, me relembrou: ‘Esta é a Pedra da Janta. Tem este nome porque era onde se esparramava o angu para que os negros escravizados pudessem comer’. Naquele momento eu imaginei homens, mulheres e crianças pretas avançando sobre uma comida pastosa, com mãos sujas, afoitas, enchendo bocas. Imaginei a pedra sendo lambida até o último resto. Enxerguei, em seguida, um feitor ordenando a volta ao trabalho sob gritos, xingamentos e até pancadas na gente cativa. A emoção daquela tarde vivida no morro da Caçandoca, onde está a minha raiz por parte dos Félix, a lembrança de tantos parentes caiçaras dali me marcou por muito tempo”.

        Aquele adolescente negro, atento à minha narrativa naquela esquina da cidade, me surpreendeu, me fez recordar da Pedra da Janta e me emocionou. Triste ver alguém do povo negro seguir um caminho reacionário, contra si mesmo. Triste ver uma pessoa jovem não sendo capaz de sonhar seu próprio sonho, de se conformar com a sobrevivência imposta pela minoria da humanidade. Pior é saber que esse ser, podendo ser revolucionário, se cultiva (via algoritmo) como reacionário, capaz de ignorar por opção a existência de tantas pedras da janta, das agruras de seu povo, das nossas raízes arrancadas da Mãe África. Confirma isto: a solidariedade entre os explorados não é assim tão evidente. Muitas vezes a traição se manifestou para garantir melhores condições de vida a indivíduos apenas.  Mas é importante salientar que em muitos lugares esses espoliados, sobretudo descendentes de africanos tornados escravos, fugiram e construíram outras possibilidades para se viver. Muitos desses locais permanecem até hoje. Podemos afirmar que a vontade de viver, de resistir aos opressores, de formar comunidade era muito forte. Estas foram as bases dos territórios remanescentes de quilombos em nosso território; estas foram as razões do povo negro se concentrar na Caçandoca, no Cambury, na Casanga, no sertão da Fazenda da Caixa, na Ilha do Mar Virado e por aí vai.

       Para me despedir (porque não poderia perder a embarcação), perguntei ao rapaz: “E o calote contra a Caixa Econômica Federal? E as joias das Arábias?”. E ele respondeu: “Mas ele já devolveu as joias”. A conclusão fica por conta de quem estiver lendo.


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