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Sebastiana e suas netas - Arquivo Museu Caiçara de Ubatuba |
Dias atrás, bem no centro da cidade, me
deparei com um adolescente que há tempos não via. Na verdade, quase não o
reconheci porque era uma criança “uns dias desses”. Assim que me viu, me
cumprimentou com um bonito sorriso naquele rosto negro. Logo perguntei dos
estudos. “Estou fazendo o terceiro ano do
ensino médio agora”. Eu quis saber dos planos para o futuro. “Aí vou trabalhar para viver. Fazer
faculdade tá muito caro”. Então eu aproveitei para tentar estimular a
continuar estudando, comentei das alternativas: ENEM, PROUNI, ETEC etc. Todas
iniciativas do governo federal, de um tempo onde se deu mais atenção às
populações marginalizadas, marcas de um governante depois substituído por outro
que buscou acabar com todos esses programas populares. Foi aí que ele se
revelou como um jovem reacionário, formado pelas mensagens enganadoras das
redes sociais, defendendo o caloteiro genocida etc. Me assustei: "Como é possível um jovem estudante
negro alienado assim?" A primeira dedução que fiz: "Este rapaz não está estudando
como deveria ou está sendo manipulado por uma educação que não quer libertar,
não está promovendo a autonomia do pensamento nos estudantes". A minha primeira
vontade foi de perguntar: “Você já
estudou o processo de escravização que resultou no Brasil, na cultura que
temos, na sociedade desigual que até retira de você a possibilidade de avançar
nos estudos?”. Ele ficou parado. Então eu continuei: “Vou lhe contar apenas uma situação real, ocorrida com nossos parentes
na Caçandoca. É história que ouvi de meus avós e de mais gente nascida naquele
lugar, hoje considerado área de quilombo graças a um governante que você está
contra. Quilombo você já sabe o que que é, né? Presta atenção então: é a
história da Pedra da Janta. Há anos eu fui conhecê-la; fica entre a área onde
nasceu o meu avô Estevan Félix e onde era a posse do tio Silvário. O primo
Antunes estava comigo, me relembrou: ‘Esta é a Pedra da Janta. Tem este nome
porque era onde se esparramava o angu para que os negros escravizados pudessem
comer’. Naquele momento eu imaginei homens, mulheres e crianças pretas
avançando sobre uma comida pastosa, com mãos sujas, afoitas, enchendo bocas.
Imaginei a pedra sendo lambida até o último resto. Enxerguei, em seguida, um
feitor ordenando a volta ao trabalho sob gritos, xingamentos e até pancadas na
gente cativa. A emoção daquela tarde vivida no morro da Caçandoca, onde está a
minha raiz por parte dos Félix, a lembrança de tantos parentes caiçaras dali me
marcou por muito tempo”.
Aquele adolescente negro, atento à
minha narrativa naquela esquina da cidade, me surpreendeu, me fez recordar da
Pedra da Janta e me emocionou. Triste ver alguém do povo negro seguir um
caminho reacionário, contra si mesmo. Triste ver uma pessoa jovem não sendo
capaz de sonhar seu próprio sonho, de se conformar com a sobrevivência imposta
pela minoria da humanidade. Pior é saber que esse ser, podendo ser revolucionário,
se cultiva (via algoritmo) como reacionário, capaz de ignorar por opção a existência de tantas
pedras da janta, das agruras de seu povo, das nossas raízes arrancadas da Mãe
África. Confirma isto: a solidariedade entre os explorados não é assim tão
evidente. Muitas vezes a traição se manifestou para garantir melhores condições
de vida a indivíduos apenas. Mas é
importante salientar que em muitos lugares esses espoliados, sobretudo
descendentes de africanos tornados escravos, fugiram e construíram outras
possibilidades para se viver. Muitos desses locais permanecem até hoje. Podemos
afirmar que a vontade de viver, de resistir aos opressores, de formar comunidade
era muito forte. Estas foram as bases dos territórios remanescentes de
quilombos em nosso território; estas foram as razões do povo negro se
concentrar na Caçandoca, no Cambury, na Casanga, no sertão da Fazenda da Caixa,
na Ilha do Mar Virado e por aí vai.
Para me despedir (porque não poderia
perder a embarcação), perguntei ao rapaz: “E
o calote contra a Caixa Econômica Federal? E as joias das Arábias?”. E ele
respondeu: “Mas ele já devolveu as joias”.
A conclusão fica por conta de quem estiver lendo.
Realidade apavorante, Zé!
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