Canoas do Mestre Neco - Arquivo JRS |
Mais uma mostra do quem vem por aí no livro do estimado Santiago. Nas palavras dele, "a canoa tá quase no fim da saga". O trecho de hoje está repleto de pistas para reflexão e ação. Resgatar história sepultada pelo tapete de petróleo é o grande desafio final. Agradeço muito por cada parte que vai se juntando na CANOA EMBORCADA.
O pescador luta com o mar. Mas não guerreia com ele. Não caberia. O mar não é inimigo do existir. É caminho do alimento. E, quando encrespa, está apenas fazendo seu trabalho. Como o homem faz o dele quando lança suas redes ao imprevisível. E tudo é pescaria. De vida, de tempo, de sobrevivências e proezas. Os que retornam contam as suas, o mar silencia, escuta o curto e efêmero respirar dos homens às suas margens e os vê temerosos nas areias quando um vento se levanta mais brusco e intenso. O mar abarca todas as esperas, reveste de corais todas as palavras naufragadas, e apenas tolera a presença humana sobre seu dorso d’água, indiferente. Num gesto poderia arrebata-la aos ventos, como um animal chacoalhando o pelo para espanar a poeira ou a molhadura da chuva.
Nessa peleja o homem é diminuto. Chama de
sorte, de reza, de destreza o seu saber entrar e sair do mar. Às vezes também
batiza sua sobrevivência de milagre. E acende velas. Faz dança para São
Gonçalo, invocado nos momentos tormentosos nas águas. Junto com todos os outros
santos conhecidos e imaginados pela fé do povo. A viola evoca os feitos, paga
as promessas, enleia o peito e conta cantando os volteios que o mundo dá, com
as gentes enganchadas nos cabelos do tempo que vão embranquecendo como franjas
de onda na beira da areia. Até que um dia tudo é vento: gente, espuma,
violeiro. E novos pescadores vão adentrando o mar. E suas lendas. E suas
pelejas.
E desde de que o mar de gente existe o homem
peleja também com ele mesmo. Nessas velhas praias, tacapes e flechas que se
enfrentavam, um dia cruzaram com a pólvora. Canoas lançaram-se contra
caravelas. Pau e pedra contra ferro. Bíblia contra pajé. Desde de que existe
gente existe peleja. E a peleja é sempre por terra. Terra em cujas entranhas
correm veios de minérios cobiçados, rios subterrâneos, mistérios. Onde um quer
fincar chão o outro já mora, onde um quer cultivar a espera, o outro quer
agora. Onde o antepassado de um dorme, o outro quer cobrir de cidade. Uns com
remos e enxadas, outros com canetas e armas.
Os homens do mar acostumados com as pelejas
das águas, dos peixes, dos ventos e das horas, estranham os desrumos dos
acontecimentos trazidos pelos homens de outras terras. A desarrumação dos conhecimentos.
São mundos. Distantes tanto quanto diversos. Os olhos envidraçados das cidades
olham do alto de prédios as verdes distancias esparramadas e expandem seus
braços de concreto por cima dos ermos, dos campos, das matas que as estradas
vão abrindo com os dentes de aço das escavadeiras. No caminho, a casa de barro
do caipira, tão irmã em construção da casa do caiçara da praia, é esmagada pela
marcha resoluta das máquinas. É preciso religar o litoral ao interior, as
velhas trilhas de tropeiros por onde descia o café do Vale do Paraíba são
alargadas e asfaltadas, debaixo do tapete de petróleo endurecido muita história
sepultada.
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