segunda-feira, 8 de maio de 2023

CANOA EMBORCADA (III)

 

Canoas do Mestre Neco - Arquivo JRS

      Mais uma mostra do quem vem por aí no livro do estimado Santiago. Nas palavras dele, "a canoa tá quase no fim da saga".  O trecho de hoje está repleto de pistas para reflexão e ação. Resgatar história sepultada pelo tapete de petróleo é o grande desafio final. Agradeço muito por cada parte que vai se juntando na CANOA EMBORCADA.


     O pescador luta com o mar. Mas não guerreia com ele. Não caberia. O mar não é inimigo do existir. É caminho do alimento. E, quando encrespa, está apenas fazendo seu trabalho. Como o homem faz o dele quando lança suas redes ao imprevisível. E tudo é pescaria. De vida, de tempo, de sobrevivências e proezas. Os que retornam contam as suas, o mar silencia, escuta o curto e efêmero respirar dos homens às suas margens e os vê temerosos nas areias quando um vento se levanta mais brusco e intenso. O mar abarca todas as esperas, reveste de corais todas as palavras naufragadas, e apenas tolera a presença humana sobre seu dorso d’água, indiferente. Num gesto poderia arrebata-la aos ventos, como um animal chacoalhando o pelo para espanar a poeira ou a molhadura da chuva.

    Nessa peleja o homem é diminuto. Chama de sorte, de reza, de destreza o seu saber entrar e sair do mar. Às vezes também batiza sua sobrevivência de milagre. E acende velas. Faz dança para São Gonçalo, invocado nos momentos tormentosos nas águas. Junto com todos os outros santos conhecidos e imaginados pela fé do povo. A viola evoca os feitos, paga as promessas, enleia o peito e conta cantando os volteios que o mundo dá, com as gentes enganchadas nos cabelos do tempo que vão embranquecendo como franjas de onda na beira da areia. Até que um dia tudo é vento: gente, espuma, violeiro. E novos pescadores vão adentrando o mar. E suas lendas. E suas pelejas.

    E desde de que o mar de gente existe o homem peleja também com ele mesmo. Nessas velhas praias, tacapes e flechas que se enfrentavam, um dia cruzaram com a pólvora. Canoas lançaram-se contra caravelas. Pau e pedra contra ferro. Bíblia contra pajé. Desde de que existe gente existe peleja. E a peleja é sempre por terra. Terra em cujas entranhas correm veios de minérios cobiçados, rios subterrâneos, mistérios. Onde um quer fincar chão o outro já mora, onde um quer cultivar a espera, o outro quer agora. Onde o antepassado de um dorme, o outro quer cobrir de cidade. Uns com remos e enxadas, outros com canetas e armas.

   Os homens do mar acostumados com as pelejas das águas, dos peixes, dos ventos e das horas, estranham os desrumos dos acontecimentos trazidos pelos homens de outras terras. A desarrumação dos conhecimentos. São mundos. Distantes tanto quanto diversos. Os olhos envidraçados das cidades olham do alto de prédios as verdes distancias esparramadas e expandem seus braços de concreto por cima dos ermos, dos campos, das matas que as estradas vão abrindo com os dentes de aço das escavadeiras. No caminho, a casa de barro do caipira, tão irmã em construção da casa do caiçara da praia, é esmagada pela marcha resoluta das máquinas. É preciso religar o litoral ao interior, as velhas trilhas de tropeiros por onde descia o café do Vale do Paraíba são alargadas e asfaltadas, debaixo do tapete de petróleo endurecido muita história sepultada.

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