Um toco da velha árvore - Arte: Estevan |
Um
pescador vivia tranquilo, anos 70, 80...tinha seu rancho na praia, guardava sua
canoa, suas redes. Aí veio a lei e a força fez com ele o que a força sempre
faz, proibiu sua pesca, começo dos anos 90. Ele vendeu sua canoa, seus petrechos. O filho perguntou porque não
iam pescar mais. "A lei é como uma
rede de pesca, pega os peixes pequenos, mas os grandes pulam ou rasgam a rede.
Os peixes pequenos somos nós".
Ele ficou construindo casas, grandes casas em
condomínios, de turistas, trocou o remo pela enxada e cimento. Construiu muitas
casas, mas nunca conseguiu construir a sua. Morava de caseiro, um dia o dono
vendeu a casa com ele dentro, saiu sem indenização ou compensação alguma. Conseguiu outra
casinha, um quarto, para seguir de caseiro. Passaram mais uns anos, ele está
velho, mais de oitenta anos. E veio o dono e pediu a casa também. Não tem para
onde ir aqui, só tem uma mísera aposentadoria. Essa é a história que sempre
acontece e está acontecendo agora!
Escutei do meu amigo o relato acima. E o encerramento
é com esta revelação: “Esse homem é meu
pai”. Ou seja, a via sacra de tantos caiçaras continua. A cruz está mais pesada
desde o advento do turismo, quando as terras da beira mar foram cobiçadas para
empreendimentos imobiliários. Dela enxotaram os ranchos das canoas, as moradias
que respeitavam os jundus, os pequenos roçados
cultivados em rotatividade conforme a herança tupinambá, os caminhos de
servidão, as áreas destinadas aos passarinhos e pequenos animais (gambás, lagartos,
ouriços, cotias, preás etc.), os mangues com sua infinitude de seres e de vegetação
tão caras à nossa alimentação e à feitura de casa no pau a pique... Quem de nós
nunca se alimentou de manacarus, goiabas, araçás, pitangas e mais frutas das
restingas? Quem nunca se encantou com orquídeas, palmas e tantas outras flores
que só se encontravam nesses espaços? Quem nunca recorreu à erva baleeira, ao
saião, ao assa-peixe e outras plantas curativas que nos valiam nas enfermidades?
Quem nunca ouviu histórias de assombração beirando esses lugares sombreados de
outros tempos? Quem não reconhece, a partir do que o meu amigo contou, a assombração
máxima a infernizar o nosso espaço, a cultura caiçara, os últimos roceiros e
pescadores?
Assombração existe sim! Ninguém me contou. Pelas grimpas dos morros, correndo riscos, se virando como pode está o povo empobrecido e tantos caiçaras. Esse idoso que foi extorquido de tudo no decorrer dos anos agora está sem casa. Uma mísera aposentadoria lhe garante apenas a sobrevivência. É... o peixe miúdo vai desaparecendo. Vai se confirmando a profecia do Velho Zacarias da Ponta (da Fortaleza): “Haverá um tempo em que não haverá mais peixes, obrigando os tubarões a se devorarem uns aos outros”. Triste realidade.
Na Antiguidade escreveu o filósofo
Platão: “Boas pessoas não precisam de
leis para obrigá-las a agir responsavelmente, enquanto as pessoas ruins
encontrarão um modo de contornar a as leis”. Eu acrescento: criarão as leis
que lhes convém. Prova disto é o Marco Temporal contra os povos indígenas, a
flexibilização da leis trabalhistas desfavorável à dignidade das pessoas trabalhadoras, as mansões nos antigos roçados da nossa
terra, os empobrecidos catando migalhas para sustentar a vida etc. Enfim... Quem teria um abrigo a esse peixe pequeno que
envelheceu nessa labuta de sustentar a riqueza dos outros?