sexta-feira, 24 de março de 2023

ERA CRISTAL

Cristal, a gata - Arquivo JRS
 


     Magali se deteve junto a mim para perguntar sobre a gata Cristal: “Ela não apareceu por aqui? Faz quase uma semana que está desaparecida. O meu filho, coitado, está sofrendo muito. Ele é muito apegado a ela. Estou procurando por toda a vizinhança há dias, mas nenhum sinal ainda”.

   Cristal era uma gatinha muito mansa, daquelas que ao avistar a gente já se deitava para receber umas coçadas na barriga. Em muitas manhãs ela amanhecia no quintal de nossa casa, se aproveitando do grande espaço cimentado onde está o varal de roupas. Maria, minha filha, apegada que é aos bichos, dedicava todo o tempo à bichana. Até fez uns brinquedos para a nossa visitante se distrair. Ainda está dependurado na varanda um pedaço de barbante com tampinhas de garrafas. Cristal provocava risos fazendo estripulias por ali.

  Tentei consolar a Magali, dizendo que talvez estivesse namorando, correndo por outras ruas próximas. “Ela vai aparecer logo. Esses bichos são geniosos, é assim mesmo. Não se desespere, amiga”. Antes de seguir, ela desabafou: “Faz uma semana que o meu pai morreu. A gatinha era a companhia dela enquanto a gente estava fora”. 

   Eu não sabia que o pai dela tinha falecido. “Nossa! Meus sentimentos, amiga”. Seo Maciel veio de uma cidade mineira para se tratar em Ubatuba. Passava por uma depressão profunda, queria ser curado. Durante o dia ele ficava sozinho, pois o neto ia para a escola e os pais trabalhavam. Apenas no final da tarde ele convivia com todos. Portanto, a companhia efetiva dele era o gatinha Cristal. Naquele momento eu me lembrei de uma história similar antiga, de caiçara, ocorrida na praia do Sapê, onde eu nasci. O Bié, primo do Tonico, passou por uma desilusão amorosa e não resistiu, não conseguiu superar, se findou ali no jundu, perto de onde morávamos. Um cipó e um barranco lhe valeu naquele desespero. Pobre Bié.

  Bié tinha um cachorro que atendia por Duque. Os dois eram bem apegados. Quando eu vejo muitos andarilhos com seus cães, a maneira como se dão bem, a preocupação e a fidelidade etc.,  me recordo da história do Bié, de como é comovente a relação entre um animal de estimação e seu dono, um fazendo companhia ao outro, repartindo comida, se protegendo e outras coisas mais. Sabe o que aconteceu após o sepultamento do Bié? O Duque se postou ao lado da sepultura, no morro da Maranduba. E de lá nunca mais saiu. O Velho Salomão, pai do Élcio, morador mais próximo do cemitério, nunca deixou de levar comida ao fiel animal nos anos que ele viveu guardando a sepultura do dono. Ele até fez uma cobertura de palha para servir de proteção contra chuva e sol. Papai garantia: “Ele aturou quase cinco anos depois da partida do falecido. Era comum escutar sempre os seus uivos nas noites, como se estivesse com saudade do Bié. Numa manhã, quando o Salomão estava de partida para buscar o tresmalho, ao passar no caminho rente às sepulturas, ele percebeu que o Duque estava imóvel, nem percebeu os seus passos. Estava morto. Voltou para casa naquele mesmo instante, acordou a criançada e a esposa. Todos choraram durante o sepultamento daquele animal. Sua cova foi bem ao lado do túmulo do estimado dono”. Décadas se passaram, mas ainda hoje tem gente que sempre rememora essa história. E foi isto que eu contei à Magali. Eu acredito que a gata dela se retirou do convívio daquela casa porque não suportou a ausência do Seo Maciel. Pode ser que tenha ido embora, foi viver no mato. É isto: animal tem sentimentos. Passado mais de mês, soube que a gatinha não apareceu. Era Cristal.

  


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