segunda-feira, 27 de março de 2023

COISAS DE OUTRO TEMPO (?)

 

Mestre Neco- Oficina de cestaria (Arquivo JRS)

     No sábado passado, na casa do Mestre Neco, vivenciamos uma oficina de cestaria com timbopeva retirada da mata durante a semana pelo mesmo. Coisa boa demais! Saberes de outros tempos que se perpetuam em nós, nos nossos, na cidadania caiçara. 


    Qualquer cidadão tem esta denominação exatamente porque quer preservar, sustentar a civilidade. Caso contrário, não faria jus ao conceito. Exercemos a cidadania para evitar o retorno à barbárie. Temos nossos direitos e deveres para garantir o usufruto dos espaços de igualdade, fraternidade e liberdade. Cidadania é exercer poder de intervenção e transformação, aperfeiçoamento da vida em sociedade.  Assim eu fui aprendendo e assim sigo ensinando.

   Mais acentuadamente nos últimos anos, nós brasileiros temos assistido retrocesso no exercício da cidadania. Narrativas incabíveis até então distante da minha mediana vivência passaram a ser corriqueiras. Exemplos: perseguição aos gêneros distintos da dualidade homem-mulher, consideração de inferioridade aos mais pobres, negros, índios, nordestinos etc., legalização da violência (inclusive com armas de fogo patrocinadas pelo Estado) como medida punitiva e de extermínio contra os desfavorecidos e opositores da barbárie, ressurgimento de ideologias de base nazista etc. Enfim, estão por aí as hordas que ameaçam a nossa civilização, o nosso Brasil, o nosso litoral norte paulista.

  O escritor Laurentino Gomes, logo no começo do segundo volume do tema Escravidão, faz questão de relembrar que, em 1697, saiu a notícia do desembarque em Lisboa da primeira “partida de ouro em barra” embarcada no Rio de Janeiro. Quem produz ainda hoje esse ouro extraído do solo pátrio? Quem produziu toda a riqueza da cana-de-açúcar? Quem está na base dessa minúscula parcela de milionários que querem direcionar a nossa cidadania? Mais importante: Quem está sempre produzindo essas riquezas senão a classe trabalhadora?

  É a classe trabalhadora que me interessa nas reflexões sobre a cidadania! O já citado autor escreveu que, “em 1700, os brasileiros, sem contar os indígenas, estão por volta de 300 mil habitantes”. E posta um detalhe: “Uma gangue de piratas, a Irmandade da Costa, aterroriza a região do Caribe”. Agora eu penso: essa gangue se atualizou, deixou o mar, dominou o nosso solo, está ocupando espaços da política, patrocinando ações violentas, investindo em discursos de ódio que se disseminam entre os próprios odiados (leia-se minorias sociais, marginalizados, excluídos da cidadania). Na verdade, pouca gente domina mais de duas centenas de milhões de brasileiros.

      Na semana passada, estudando a partir dos conceitos de alteridade (reconhecimento e o respeito das diferenças entre as pessoas) e empatia (capacidade que uma pessoa tem de sentir e se colocar no lugar de outra pessoa), fui questionado por uma adolescente: “Por que preciso saber disso? Que resultados vai influir na minha vida essas coisas do passado?”. Por indisposição de tempo levei o espanto para casa. Agora questiono: 1- Por que nossos pais, avós etc. vieram de longe para tentar melhorar de vida em Ubatuba? 2- Por que tantos migrantes e até mesmo caiçaras moram em lugares marginalizados, em áreas impróprias?  3- O que leva vocês a assumirem as ideologias da classe dominante que se enriquece cada vez mais e é contra a justiça social? 4- Quais as implicações da alteridade e empatia no exercício da nossa cidadania?

 

    Devemos entender uma coisa: o controle da energia dessas crianças, adolescentes e da juventude interessa demais aos donos do poder! Não encarar de frente muitos conceitos é dar forças a essa gangue (atualizada) que põe pobre contra pobre para limitar/destruir a cidadania, destruir as possibilidades de vida em abundância. É isto: cultivemos uma educação que nos ensine a pensar, que nos libertem das correntes que nos prendem. Já disse alguém: “Ser estudioso (a) é a maior rebeldia contra o sistema”. Alteridade e empatia são valores de todos os tempos!

   

sexta-feira, 24 de março de 2023

ERA CRISTAL

Cristal, a gata - Arquivo JRS
 


     Magali se deteve junto a mim para perguntar sobre a gata Cristal: “Ela não apareceu por aqui? Faz quase uma semana que está desaparecida. O meu filho, coitado, está sofrendo muito. Ele é muito apegado a ela. Estou procurando por toda a vizinhança há dias, mas nenhum sinal ainda”.

   Cristal era uma gatinha muito mansa, daquelas que ao avistar a gente já se deitava para receber umas coçadas na barriga. Em muitas manhãs ela amanhecia no quintal de nossa casa, se aproveitando do grande espaço cimentado onde está o varal de roupas. Maria, minha filha, apegada que é aos bichos, dedicava todo o tempo à bichana. Até fez uns brinquedos para a nossa visitante se distrair. Ainda está dependurado na varanda um pedaço de barbante com tampinhas de garrafas. Cristal provocava risos fazendo estripulias por ali.

  Tentei consolar a Magali, dizendo que talvez estivesse namorando, correndo por outras ruas próximas. “Ela vai aparecer logo. Esses bichos são geniosos, é assim mesmo. Não se desespere, amiga”. Antes de seguir, ela desabafou: “Faz uma semana que o meu pai morreu. A gatinha era a companhia dela enquanto a gente estava fora”. 

   Eu não sabia que o pai dela tinha falecido. “Nossa! Meus sentimentos, amiga”. Seo Maciel veio de uma cidade mineira para se tratar em Ubatuba. Passava por uma depressão profunda, queria ser curado. Durante o dia ele ficava sozinho, pois o neto ia para a escola e os pais trabalhavam. Apenas no final da tarde ele convivia com todos. Portanto, a companhia efetiva dele era o gatinha Cristal. Naquele momento eu me lembrei de uma história similar antiga, de caiçara, ocorrida na praia do Sapê, onde eu nasci. O Bié, primo do Tonico, passou por uma desilusão amorosa e não resistiu, não conseguiu superar, se findou ali no jundu, perto de onde morávamos. Um cipó e um barranco lhe valeu naquele desespero. Pobre Bié.

  Bié tinha um cachorro que atendia por Duque. Os dois eram bem apegados. Quando eu vejo muitos andarilhos com seus cães, a maneira como se dão bem, a preocupação e a fidelidade etc.,  me recordo da história do Bié, de como é comovente a relação entre um animal de estimação e seu dono, um fazendo companhia ao outro, repartindo comida, se protegendo e outras coisas mais. Sabe o que aconteceu após o sepultamento do Bié? O Duque se postou ao lado da sepultura, no morro da Maranduba. E de lá nunca mais saiu. O Velho Salomão, pai do Élcio, morador mais próximo do cemitério, nunca deixou de levar comida ao fiel animal nos anos que ele viveu guardando a sepultura do dono. Ele até fez uma cobertura de palha para servir de proteção contra chuva e sol. Papai garantia: “Ele aturou quase cinco anos depois da partida do falecido. Era comum escutar sempre os seus uivos nas noites, como se estivesse com saudade do Bié. Numa manhã, quando o Salomão estava de partida para buscar o tresmalho, ao passar no caminho rente às sepulturas, ele percebeu que o Duque estava imóvel, nem percebeu os seus passos. Estava morto. Voltou para casa naquele mesmo instante, acordou a criançada e a esposa. Todos choraram durante o sepultamento daquele animal. Sua cova foi bem ao lado do túmulo do estimado dono”. Décadas se passaram, mas ainda hoje tem gente que sempre rememora essa história. E foi isto que eu contei à Magali. Eu acredito que a gata dela se retirou do convívio daquela casa porque não suportou a ausência do Seo Maciel. Pode ser que tenha ido embora, foi viver no mato. É isto: animal tem sentimentos. Passado mais de mês, soube que a gatinha não apareceu. Era Cristal.

  


sexta-feira, 17 de março de 2023

CANOA EMBORCADA

 

Olhando o mar - Arte: Estevan

    Canoa Emborcada é o novo livro de Santiago Bernardes. Está pronto? Não! Está chegando! Aqui segue umas linhas inspiradas no mar, na mata, nas vivências e nas lutas das Comunidades Tradicionais do nosso chão caiçara, do nosso litoral norte de São Paulo. Parabéns, irmão!

 

  

Remo esculpido - Autor: Mestre Bigode


     O pescador colocou o balaio no ombro, olhou uma última vez para a canoa Corre Mundo e caminhou para casa como sempre fazia, mas levava algo além dos poucos peixes no ombro, parecia um peso maior além do peso do balaio, mas um peso por dentro, fatigando o ser, angustiando e anuviando o pensar. Não sabia definir essa sensação estranha, como se tivesse um bolo de farinha seca enroscado da garganta. Chegou em casa, colocou o balaio no chão, preparou a bancada de limpar peixe, do lado de fora e puxou de um gole de água da garrafa para ver se desembolava a garganta e num segundo foi como se sentisse gosto de água salgada, como se bebesse da água do mar, igual a um dia na infância quando pulou da canoa do pai voltando para a praia achando que já dava pé e afundou engolindo um bocado de mar. Mas não desesperou, na terra onde se aprende a nadar antes de se aprender a andar criança é peixe, tantas vezes já mergulhara naquelas águas, mas teve uma sensação diferente dessa vez, como se o tempo embaixo d’água fosse outro, mais lento, ou até mesmo ausente, debaixo d’água tudo era mais claro, mais bonito, mais azul, mais vivo, abriu os olhos e viu o casco da canoa por baixo, os remos movendo-se como em câmera lenta,  o fundo de areia, peixes passando e olhando-o curiosamente, com o gole de mar na barriga sentiu-se pequeno dentro do mar e o mar imenso dentro dele. Deu um giro e subiu à tona, agarrando-se à borda da canoa. Os pescadores riam. Aquele gosto de mar engolido sem querer voltou no instante do gole d’água da garrafa pouco antes de limpar os peixes.  Um segundo na vida pode ser uma eternidade, ainda mais se for no mar, onde os naufrágios rondam os homens que remam como as tintureiras que espreitam o tombo da canoa para comer tudo que veem pela frente, pescadores há que perderam mão, braço, perna na boca do monstro e que foram inteiros devorados.

  Contam-se histórias do antigo presídio de uma ilha onde uma ponta da costeira se aproximava da ponta do continente formando um boqueirão de uns quinhentos metros, ali antigamente o espia ficava a avistar os cardumes. Quando expulsaram os nativos da ilha para construírem o presídio passaram a cevar as tintureiras com restos de carnes para que criassem o hábito de rondar sempre por ali e assim se algum preso se aventurasse a tentar fugir a nado para a costa viraria comida de tubarão. Mas um dia estourou uma rebelião e um soldado se jogou naquelas águas para pedir ajuda em terra, conseguiu atravessar ileso e virou lenda.