sábado, 23 de março de 2019

DEFINIÇÕES (II)

Mais um caiçarinha (Arquivo JRS)





E a juventude caiçara marca presença na resistência (Arquivo JRS)

Nesta segunda parte do texto do Roberto Zsoldos, a conclusão é que a gente tem que se reconhecer como caiçara. Depois disso...é só contagiar os semelhantes que somos interdependentes neste meio ambiente, entre a serra e o mar. Sem se posicionar a favor dessa natureza não se justifica a denominação caiçara. Sem ela não existiria esse jeito de ser nosso, tal como defendeu o filósofo Nietzsche: a cultura só pode nascer, crescer, desenvolver-se a partir da vida e das necessidades da vida.
               À medida que  expande-se  a pesquisa para outras regiões, nota-se que é possível traçar algum perfil para o caiçara antigo. Mesmo que ele atenda a necessidades temporais particulares. Normalmente é apresentado como alguém que tirava da natureza o seu sustento, seja da pesca ou da roça. Que sabia lidar com os produtos da natureza como a madeira, qualidade de cipós e ervas  medicinais. Conhecia bem as estações do ano e sua relação com épocas de plantio e pesca. Em geral era católico, praticante ou não. Trabalhava coletivamente em regime de mutirões. Festejava coletivamente também. Tinha boas relações com as outras famílias do território.
               Mas... e atualmente? Com toda sorte de impedimentos legais para fazer novos roçados e desenvolver a pesca artesanal. Sem segurança jurídica sobre o território. Com a fragmentação desse território, seja por grandes empreendimentos imobiliários, estradas e cidades grandes. Com a proibição de retirar madeira para fazer novas canoas e violas. Com a lógica do capitalismo que condena trabalhos coletivos não remunerados como os mutirões. Que também supervaloriza as terras incentivando a especulação imobiliária e deteriorando as relações entre as famílias do território. O que é ser caiçara no atual cenário sócio econômico? É muito difícil encontrar uma definição que agrade a todos.
               Particularmente eu gosto de definir o caiçara como uma cultura que existe dentro de um território definido. Essa cultura está relacionada a características do perfil do caiçara antigo com o qual você deve ter alguma descendência. É a ideia da ancestralidade. Mas isso só não basta. Você deve ter a consciência disso e de alguma forma ser um militante da sua cultura, agindo de forma coletiva em prol da manutenção da mesma. Nesse sentido, respeitando a ancestralidade,  mas diferente de um direito de nascença, acredito que ser caiçara é um processo de reconhecimento sobre si mesmo e a luta dos seus semelhantes.

sexta-feira, 22 de março de 2019

DEFINIÇÕES (I)

Grande Laureana! (Arquivo JRS)



O amigo Roberto Zsoldos, da página suindaras . com. br, postou o seguinte texto endereçado ao meu filho Estevan. Hoje apresento a primeira parte das definições elencadas e refletidas pelo autor. Certamente que servirá a outras reflexões, mas desde já os apontamentos do Roberto estão na minha paisagem. Agradeço pela consideração, pela nossa amizade.


         O texto que escrevi para um projeto que não foi pra frente! Dedico ao pesquisador José Ronaldo, pai do meu amigo  Estevan José.

         Falta definição para a palavra caiçara? A dicionarística, com certeza. Já foi de grande avanço a recusa daquele antigo verbete que não ouso reproduzir. Atualmente, o Aurélio, bem mais brando, traz como definição “cerca de bambu” ou até mesmo o vago “caipira do litoral”. Já o Aorélio Domingues, caiçara, militante, fabriqueiro e fandangueiro da Ilha dos Valadares em Paranaguá é categórico em sua definição: Caiçara é quem nasce no território. Para alguns da família Pereira do Ariri em Cananéia, caiçara é quem vive no sítio e para alguns da família Paru, de Ubatuba, caiçara é quem vive do mar. Ao longo da costeira de Paraty há quem o defina como o que faz a sua farinha, ou quem possui sua canoa, e por aí divergem e convergem diversos aspectos e símbolos que são caracteres auto definidores desse povo.
         Ao longo de anos circulando por diversas comunidades do litoral pude observar de perto diversos aspectos e tentativas de auto reconhecimento, o que eu acredito que seja muito positivo na busca por uma definição mais apurada do que é ser caiçara. Também pela primeira vez esse verbete é reconstruído pelos próprios caiçaras, o que por si só, já aponta uma conquista enorme frente ao antigo, que foi imposto de fora para dentro das comunidades.
        Por isso, não devemos estranhar que existam tantas opiniões sobre o assunto. Pois é justamente essa geração que se reconhece como caiçara, motivados pela luta por seus direitos, que esbarra na falta de definição da palavra e a repensa.
        Diferente de um consenso, a palavra caiçara ainda parece estar mais ligada à experiências pessoais do que a um olhar mais amplo sobre o tema. Então, dependendo de onde você está e a quem a pergunta é dirigida, a resposta de “o que é caiçara?” pode mudar. E aqui não cabe dizer resposta certa ou errada, talvez a solução esteja em rever a pergunta.
        “Quando as respostas são muitas a ponto de confundir a sua cabeça, você provavelmente não está perguntando direito.” Foi um dos meus primeiros aprendizados no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, e, à luz disso, procurei balizar minhas pesquisas pelo território caiçara. Temos que entender que as comunidades são dinâmicas mesmo. Que elas estão inseridas em lógicas econômicas e culturais variadas. E que essa realidade está atrelada a um tempo específico. Então se faz necessário entender as historias dessas comunidades e procurar eixos que a transformaram no que ela é hoje para aí sim perguntar para as pessoas o que elas entendem por caiçara. Por exemplo, em uma comunidade que foi cortada pela BR 101, devemos perguntar o que é ser caiçara antes e depois dessa intervenção. Em uma comunidade pesqueira, devemos perguntar o que é ser caiçara antes e depois dos avanços de conservação e distribuição do pescado, em uma comunidade urbana devemos atentar ao antes e depois do avanço das fronteiras da cidade. A partir desse entendimento, teremos dados mais concretos para tentar entender o que foi ser caiçara e também o que é hoje ser caiçara.
            “O peixe encalhava na praia, não tinha valor. A gente tinha que enterrá”. A partir desse relato do Sr. Oliveira, da Brava da Fortaleza, pode-se notar uma mudança de paradigma econômico na região. A partir de uma pergunta mais cuidadosa, na região sul de Ubatuba, notei que a relação demasiadamente presente no imaginário popular sobre o caiçara com o mar foi forjada pela mudança do eixo econômico da região depois da chegada da BR 101 trazendo consigo a possibilidade de escoar a produção pesqueira de forma mais eficiente atendendo a demanda de grandes centros urbanos, tirando assim o caiçara das roças de subsistência e o empregando em massa nas atividades pesqueiras, sobretudo a partir da década de 50. Também esse fato pode ter relação com o sentimento de desvalorização das terras observado nos relatos de vendas de terras do período na região. Afinal, se ele ainda usasse a terra para produzir e tirar o seu sustento, é de se imaginar que a terra lhe seria de grande valor. Portanto, nessa região, a resposta do que é ser caiçara, de uma pessoa com cerca de 70 anos difere significativamente de uma com seus 40. A mais velha identifica no ser-caiçara características de lavrador e caçador de subsistência enquanto a mais nova identifica características ligadas a pesca. A resposta também difere as vezes entre os gêneros, onde as mulheres relacionam o caiçara à produção de artesanatos para atender a demanda turística.
    “O Maneco Armiro danzava tocando rabeca, ele danzava!!”

Não só os modos de relação de trabalho diferem ao longo do tempo. Uma mudança nos costumes, sobretudo aqueles advindos da religiosidade e festividades, também apresentam diferenças significativas na caracterização do caiçara ao longo do tempo na região. A dona Maria e sua prima Melinha, que me deram esse relato, relacionam a definição de caiçara ao gosto por festas devotadas à Santos e danças coletivas (de roda) na região mas que com a chegada “da religião dos crentes essas coisas foram proibidas”.
“De antes a gente saia lá do Corcovado e ia no Bonete dançá o xiba. E no caminho vinha passando nas casas chamando as pessoas. Um dia meu pai tava passando pela estrada e viu duas moças na frente da casa, uma tava despencando banana e a outra tava com uma cuia de farinha na mão, ai ele chamou as moça para ir no baile que ele ia canta um verso pra elas. Ai chegando lá no Bonete fazendo aquela roda de xiba ele cantou assim:
Essas mocinha do portá
Com qualqué coisa se engana
É uma cuia de farinha
Ou um cacho de banana
E caíram na gargalhada… o caiçara gostava de tirar sarro”

quarta-feira, 20 de março de 2019

NA BEIRA DO CAMINHO

Ilha do Tamanduá (Arquivo JRS)


               Eu busco, desde a relativa tranquilidade da madrugada, olhar meu horizonte, questionar, me voltar a detalhes desta paisagem que é a minha vida. A partir dela vislumbro outras paisagens. Assim meu horizonte se amplia e eu avanço.

               Ontem, na caminhada logo cedo, alguém me pilhou [alcançou]. Era o Djalma: “Estou indo para o encontro da caiçarada, na Almada”. Animado como sempre, ainda conversamos um cuí [pouco] de assuntos variados nas coisas nossas, de caiçarada.  Apoitei [parei] no canto da Cocanha; e dali segui outra direção, pois o compromisso do dia me aguardava.
          
     No meu horizonte agora se faz presente o avanço de alguns cobiçosos sobre o jundu da Mococa. Avisto uma fumaça densa que sobe dali. “Em pouco tempo não teremos nada desse jundu”. Passo pelo mangue da Cocanha, aprecio o sol que está suave como a brisa nas boias de mariscos, no norte do ilhote da frente. Mais distante está a ilha do Tamanduá, de onde se espalharam os Quintino. “Meu avô era dono daquela ilha”, dizia o saudoso Aristeu. Boto reparo [presto atenção] na praia: um casal, seguido de dois fotógrafos, fazem poses. Desconfio que eles estão vivendo um momento muito especial. Ele é branco, ela é preta (detalhes da pele que indicam a nossa origem humana nesta Terra). Ao que me parece, ela está grávida. Novo detalhe na minha paisagem: “Cena inimaginável até bem pouco tempo atrás, considerando que até a segunda metade do século XIX os traficantes de escravos usavam este lugar para deixar suas mercadorias humanas, aqueles que restavam da longa travessia atlântica. As ruínas das Galhetas (Tabatinga) estão ali até hoje como testemunhas. Dos poucos sobreviventes ainda se alcançavam consideráveis lucros”.  
        Agora, toda essa gente está no caldo da nossa nação. Neste caldo tem nuances de sabores, tal como os caiçaras. Meu pai nasceu na Caçandoca, minha mãe era da Fortaleza, eu nasci no Sapê: praias e lugares do meu viver. Viva a diversidade cultural! Viva os detalhes que, mesmo na beira do caminho, me enchem os olhos, a mente e o coração!
               Hoje eu avanço em mais um ano de vida. “Quando eu era criança nunca imaginava viver tanto! Achava que se vivesse até os quarenta anos já estava muito bom”. Aqui, presentes no marulhar, no brilho do sol e na brisa leve estão os meus que tanto estimo. São os que mais contemplam  e entendem a minha paisagem e os novos vislumbres conforme vai se dando a caminhada.

quarta-feira, 6 de março de 2019

É ANIVERSÁRIO!


         Com duas obras destas, presentes dos meus filhos, não tem como não começar bem este dia!

Eu (Arte: Maria Eugênia 2019)



Sem título (Arte: Estevan 2019)

    Hoje, 06 de março, é aniversário do blog coisasdecaicara.blogspot.com. Há oito anos estou me esforçando em passar um pouco da nossa cultura caiçara. No momento, a soma é de 1225 postagens. Ou seja, é uma quantidade considerável de textos. Outros números devidamente atualizados neste dia: total de acessos: 273.924. São 166 seguidores. Estou feliz!


               Nesta semana, os acessos estão assim distribuídos: Brasil – 311, Rússia – 23, Estados Unidos – 22, Ucrânia – 9, Indonésia -  6, França – 4, Tailândia – 4, Reino Unido – 3, Portugal – 2, Região desconhecida – 1.


             Os acessos do mês: Brasil – 1434, Estados Unidos – 194, França – 127, Bélgica – 125, Rússia – 36, Portugal – 19, Ucrânia – 13, Reino Unido – 11, Moçambique – 10, Alemanha – 9.

            Fico contente pelos números, mas me alegro mais em imaginar as pessoas de tantos lugares tomando contato com a minha cultura,  sabendo das coisas do meu povo caiçara.

               A cultura caiçara é um caldo cultural, uma mistura de gente que veio de muitos lugares e se adaptou ao meio ambiente daqui. A própria palavra caiçara, de origem tupinambá (os indígenas originários de Yperoig, o primeiro nome da atual cidade de Ubatuba), quer dizer cercado. No caso, nessa cerca natural (tendo o mar de um lado e a serra do outro), se juntaram aos índios todos aqueles que foram chegando a partir do ano 1500. Assim, a nossa herança cultural se assenta no conhecimento, nas expressões dos nativos, dos portugueses, dos negros e dos demais povos que se miscigenaram neste território do litoral brasileiro localizado entre as terras do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Paraná. Este é o chão caiçara!


               
               Confesso que nunca me preocupei numa seleção, nem mesmo provisória, de fatos e causos. Tudo vem muito espontaneamente a partir de um olhar sobre uma fotografia, escutando um comentário, recordando os lugares e as amizades, dando atenção às contribuições dos amigos etc.  São partes da minha vivência, estão na minha raiz, formam o meu alicerce cultural.

                 Eu tenho de agradecer primeiramente à minha família que é grande incentivadora. Devo muito também aos amigos que vão acessando, lendo as postagens, deixando seus comentários e até enviando textos. 

               Neste ano, voltei a pensar em escolher algumas das postagens, solicitar uns trabalhos de artistas e publicar um livro, mas custa caro tal empreitada. E, confesso, ainda não estou podendo encarar isso. É por isso que estou aceitando contribuições espontâneas dos leitores.  Quem sabe tenhamos um livro de fato. Desde já agradeço pela acolhida do apelo. Caso haja interesse, favor entrar em contato no e-mail: ronaldo.jrszero@gmail.com

               Será um inestimável presente de aniversário!

sábado, 2 de março de 2019

GENTE DOS RAÉ

Eu e Joana (Arquivo Lu)
Grande Joana Célia! (Arquivo  André)



            Assim que eu cheguei na secretaria da escola, o primo Zé Roberto me mostrou uma fotografia: “Conhece, né? Acabou de falecer por causa da dengue hemorrágica”. “Nossa! É a Joana Célia, filha do Zé Raé! Não acredito!”.

            Joana Célia Tavares, caiçara do canto da Lagoinha (onde hoje é o Recanto da Lagoinha, moravam quatro famílias originárias), nossa conhecida desde o tempo em que a vovó Martinha morava no Sapê, era uma pessoa muito agradável, sempre disposta a uma boa prosa sobre as coisas de caiçara. “Papai fazia balaio, desses que você faz, mas usava taquara e cipó”. Seu pai, Zé Raé, vendia peixe por ali mesmo, entre Lagoinha, Pontal, Porto do Eixo e Sapê. Depois de muito tempo, eu a reencontrei na escola, quando voltou a estudar no CEEJA- Massaguaçu. Em 15 de dezembro de 2017 essa estimada pessoa concluiu o Ensino Médio. Que prazer ter a alegria em fazer parte dessa  etapa da vida de alguém que, desde que eu me lembro, sempre trabalhou muito, serviu à comunidade (ultimamente era agente na pastoral da criança na igreja católica). Por mais de vinte e cinco anos viajou desde a praia da Lagoinha para trabalhar em casa de família no Saco da Ribeira. Chegava sempre cansada na escola. Após um dia puxado de trabalho ainda encontrava forças para desenvolver o seu aprendizado. “Estou cansada, Zé. Tem dia que até penso em parar de estudar porque já não sou tão nova assim. Só que eu sinto falta dos estudos quando estou nas minhas tarefas, na igreja. Eu não vou desistir não”. E a Joana não desistiu.

            Eu me lembro de uma prosa assim entre nós: “Você conheceu o tio Chico Raé?”. “Lógico!  Ele morava na Estufa; era casado com a Mercedes, da Praia Dura. Depois de viúva, ela se casou de novo e mora até hoje na Sete Fontes”. “Eu sei. De vez em quando me encontro com ela no Saco da Ribeira”. “Joana, o seu tio Chico Raé andava sempre bem arrumado, em sapatos impecáveis. Estava sempre com óculos escuros por causa da sensibilidade à luz. Foi ele quem me explicou sobre os antigos Raé, gente que se dizia ter vindo da Suiça para compor uma colônia no Itaguá, na Fazenda Jundiaquara”.

            Mais tarde, lendo um documento, achei a preciosa informação um dia dada pelo Chico. No relato de um cônsul suíço, designado para verificar as condições dos patrícios atraídos para o trabalho no Brasil colonial, apareceu uma revelação: de todas as localidades visitadas, apenas em Ubatuba ele foi obrigado a dar razão ao fazendeiro, pois os imigrantes preferiram o ritmo caiçara, escapando da lida determinada pelo proprietário. Resumindo: eles perceberam logo o que era melhor. E assim, os Raé e outros suíços se acaiçararam, deram suas contribuições no nosso caldo caiçara. Partiu a guerreira Joana, gente dos Raé! Ela e o pequeno Arthur,  vítima da meningite, seguem juntos.