Na roça do Seo Genésio, há anos. (Arquivo JRS) |
Casa caiçara no Camburi (Arquivo B.Santiago) |
Sempre é importante apresentar questões, fazer perguntas, rever rotas e procurar melhores caminhos.
"DO ‘TEMPO DOS ANTIGOS’ AO ‘TEMPO DE HOJE’, O CAIÇARA DE CAMBURI ENTRE A TERRA E O MAR".
Quando teve um gestor caiçara ou quilombola dessa instituição
chamada PESM? E mesmo que um dia tivesse, seria para cumprir o que o Governo
acha que é melhor. Melhor para quem? Não me importa que gestores
"importados" caiam, enquanto "técnicos acadêmicos" estiverem
à frente dessas instituições artificiais, com uma falsa participação das
comunidades, pois não decidem nada, apenas podem opinar sobre seu próprio
território! Enquanto retalham e dividem a terra entre grandes construtoras
usando um Zoneamento ridículo e nas mãos de empresários, enquanto esse turismo
de massa confuso e descontrolado desaba todo fim de ano e feriado sobre a Mata
Atlântica destruindo e poluindo... Não reconheço nenhum PESM, não reconheço
sequer o Governo que o encampa e quer vendê-lo, continuarei andando pelas
trilhas que sempre andei, seja na beira da praia, onde magnatas colocam cercas
ou no pico do corcovado, onde nunca pedi autorização e nem o farei.
"DO ‘TEMPO DOS ANTIGOS’ AO ‘TEMPO DE HOJE’, O CAIÇARA DE
CAMBURI ENTRE A TERRA E O Mar".
"As propriedades particulares acabaram com cerca de 95% da
Mata Atlântica do estado de São Paulo. Em mãos de quem estavam os outros 5% que
foram preservados? Grande parte estava no território de populações tradicionais
espalhados pelo estado. Assim, quando percebeu o que havia feito com a Mata
Atlântica, o homem urbano-industrial "olhou" para os outros 5% e
decidiu, por intermédio do estado, preservá-lo. Parte desses 5% estava
localizado no litoral norte do estado de São Paulo, e foi para lá que em 1977,
o homem urbano-industrial depositou seu olhar e criou o Parque Estadual da
Serra do Mar. Entretanto, pouco antes de decidir preservá-lo, o Poder Público
havia proposto um modelo desenvolvimentista para essa área, construindo uma
estrada que visava adequá-la para ser mais bem explorada pelo turismo, ao mesmo
tempo que interligava duas metrópoles brasileiras. No inicio da década de 1970,
o Governo Federal construiu a BR-101, intercruzando um dos poucos remanescentes
contínuos de Mata Atlântica do país, tendo por propósito, "desenvolvê-la";
no final da mesma década, o Governo Estadual resolve que ela deve ser
"preservada contra quaisquer ações que a desvirtuem".
Entre o "fogo cruzado" de ações tão díspares, esteve o caiçara de
Camburi. Nem no projeto desenvolvimentista, nem no conservacionista, os
caiçaras foram os sujeitos a serem privilegiados: a estrada foi construída para
privilegiar o turismo, a ser desenvolvido, é claro, por grandes empresários e
não pelos moradores locais (para eles restariam os trabalhos de caseiros,
garçons, empregadas domésticas, jardineiros...); o parque foi decretado para
conservar a natureza, onde o homem urbano-industrial poderia desfrutar seu
lazer e realizar pesquisas ou, ainda, para que suas gerações futuras também
pudessem também desfrutá-la. Quanto aos caiçaras, nem mesmo suas gerações
presentes estiveram no foco das preocupações do Poder Público, seja ele o
federal, seja o estadual.
Nos 5% de Mata atlântica sobreviventes à destruição pelo modo de vida
urbano-industrial, o Governo Federal construiu uma estrada visando desenvolver
a região (o que consequentemente degradaria os recursos naturais). Logo depois
“chega” o Governo Estadual para acusar os habitantes dessa área de serem
predadores da natureza e, mais, para dizer que eles não podiam mais ser
lavradores. Não restam dúvidas que para realizar a agricultura itinerante o
caiçara causa desmatamento de uma área. No entanto, se esses grupos não
estivessem habitando esse lugar, provavelmente, não haveria aí a quantidade de
mata existente. Com seu modo de vida, bem menos predatório, eles vêm
conservando aquele meio natural, através dos tempos, pois seu modo de ser não
permitiu que eles acabassem com o que lhes garante a existência. A ameaça maior
não provém da roça itinerante, mas da estrada construída pelo próprio Governo,
que trouxe e continua trazendo pessoas de fora, interessadas em comprar terras
para construir suas casas e pousadas.
O velho caiçara de Camburi começa sua explanação falando do que mais respeita –
o ambiente no qual sobrevive e que transcende há centenas de anos, como bem
demonstram as datas das chegadas das famílias ao lugar – para depois ressaltar
o que a estrada fez com ele, “encheu os rios do Camburi de terra”. Enquanto
conversávamos passamos ao lado de um desses rios e ele comentou:
“A moça já pensou que quem construiu esta estrada e matou esse
rio é o mesmo governo que hoje impede nós de plantar? Eu atravessava esse rio
nadando e hoje pra atravessar não molha nem a meia.”
Presenciando os danos ao meio natural onde vive, ocasionados
pela construção da rodovia, como pode o caiçara entender que é o seu modo de
vida o destruidor da natureza? Em alguns momentos durante o convívio em
Camburi, pude perceber a incompreensão de seus moradores: o que significava um
parque, porque ele havia sido criado justamente ali, no lugar deles, em que se
baseavam os “florestais” para dizer o que pode e o que não se pode faz, enfim,
porque estão alijados de decidir sobre suas vidas? Todas essas perguntas se
perdem no vazio, pois caem no buraco da alienação a que estão fadados, se
depender de quem deveria lhes esclarecer.
“O interlocutor quer mais explicações e continua...
“[...] de quem vem essas leis? De o senhor vim e a pessoa tá cortano uma arvre
seca... cortano uma arvre seca pra dona-de-casa fazê um di cume, uma comida
prumas criança porque o dinheiro não tem pra comprá o gás... porque muitas vez
tem fogão a gás mas não tem dinheiro pra comprá o gás. Ele tá cortano umas
arvres seca na mata que a broca, os bicho mata... ele tá cortano umas arvres
pra fazê lenha naquele regime que ele foi nascido e criado, e foi nascido e
criado no campo, na lavoura... Então o sinhor vem, carrega seu facão, carrega
sua foice... prigunto pro sinhor assim: da onde é que vem essas leis? de onde é
que vem essas ordem? Aí ele responde: << Eu recebo essas ordem do meu
superior>>. E eu respondo: <<É, do governo? O sinhor recebe dele?
Então quero dizer pra eles que esse governo precisa é de estudá, ele precisa
estudá. Farta estudo pra ele dentro desse moral>>. Os florestal falaram
assim pra mim: <<Como assim Sr. G.?>> Eu disse:<< É lógico. É
lógico meu velho amigo. Ele [o governo] dá uma lei e nós não pisamos por cima
das lei porque nós somo reconhecedor...nós somo reconhecedor que a floresta, a
raiz da floresta é uma lei que vem lá do fundo... de lá do fundo... eu
reconheço isso. Porque eu chegá aqui e passa a mão na minha foice, no meu
machado e for descurtivá uma nascente de águas eu to prejudicando a mim mesmo e
meus familiares. Porque amanhã ou depois aquela nascente vai secá, vai secá, e
aquilo que eu levo de água, o meu familiar, os novo vão sofrê por minha causa.
Isso tá certo. Mas pricisa que esse seu superior, o seu governo, ele estude
mais um pouco... ele chegue aqui e então ele reparta, tire aquela parte das
cabeça dos morro, das nascente das água e diga: homem do campo, família do
campo, ocê que foro nascido e criado dentro daquele local, então fica a parte
das vargem procês discultivá, procês fazê os plantios, procês plantá o pé
disso, pé daquilo pra dá pros seus filhos... que o senhor possa plantá uma cova
de banana, que o senhor possa plantá uma cova de mandioca pra fazê farinha,
porque nós fomo nascido nisso...”
Essas perguntas também não foram respondidas.”
(TRECHO DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE CANDICE FILIPAK MANSANO:
DO “TEMPO DOS ANTIGOS” AO “ TEMPO DE HOJE”, O CAIÇARA DE CAMBURI ENTRE A TERRA
E O MAR”, 1998, UNICAMP.)
Disponível em : http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/…