Lá longe...nove anos atrás: Genésio, Estevan e eu (Arquivo JRS) |
No dia 1º de abril de 2007, eu, Jairo e Estevan amanhecemos cedo na casa do Seo Genésio. Que domingo maravilhoso! Fomos à roça, tomamos um delicioso café com mandioca preparado pela Dona Irene e depois emendamos na prosa, cujo início foi: "O meu pai dizia que eu não vi nada. Eu já vi alguma coisas, mas o meu pai dizia que eu não vi nada. E é verdade! E vocês que estão vivendo hoje, começam logo a ver e a turma dá risada".
O amigo Santiago, em suas páginas, avança na alma caiçara, sobretudo quando mostra esse valoroso caiçara do Cambury. Valeu, irmão!
Do mutirão do tempo
(Para seu Genésio, para Cambury, para a Terra)
Do alto de sua varanda branca, um olhar de quase noventa anos observa em
silêncio os últimos
reflexos dos raios de sol se esgueirando lentamente por detrás do mar de morros
verdes... Dedos encurvados pelo tempo e pela lida, na roça, no mar, no viver
que não se vive mais, mas lembra... Um rosto como que entalhado na madeira,
como as antigas canoas. O sal e o sol das rugas, quase um século de ser!! A
lucidez não apenas dos que viveram muito, mas dos que vivem muito ainda,
dentro, de tudo aquilo que viu e lembra como a chama viva de um lampião!
Do alto de um olhar de quase noventa anos, suave,
longínquo e profundo como as tocas dos meros, como o mar aberto, um pensamento
flutua na tarde azul e quem saberá para onde vai, de onde vem, nesse oceano de
histórias e lembranças marcadas na pele e na alma!!
Como chegar às ilhas quando não se navega mais?!
Como não ser ilha, cercado de tempo por todos os lados?!Como extrair da terra o
que as mãos não mais alcançam ?! O olhar vagueia no vento que derruba as
últimas flores de jambo da tarde! Sútil tapete rosa de pétalas onde pés
descalços descansam da longa jornada! Uma mochila estradeira como travesseiro!
Onde voa a memória quando o sono espreita as
sobrancelhas cansadas?! Para onde andariam esses pés se retomassem o vigor da
juventude solta por estas matas e praias?!
Mas o tempo... apenas cumpre seu papel na
existência de tudo! O tempo é só mais um caminhante no mundo!
Da varanda branca e calma um olhar de quase noventa
anos vê crianças correndo nas trilhas abaixo, penduradas nas árvores, pulando
no rio, vê a si mesmo nessas crianças e sabe coisas junto com elas que só sabe
quem vive no coração da vida!! Mas não há tristeza, mesmo com as coisas que se
foram e não voltam mais! Assim são feitas as coisas, assim somos feitos nós,
para passarmos, para deixar de ser...
O que há é um tipo de serenidade! E uma profundidade!
Às vezes mais densa, como um mar mexido, às vezes como um navegar tranquilo,
mas, nenhum mistério, apenas a vida vivida em sua plenitude! Lembranças remam
na mente fluída... O velho gosto e cheiro do café de cana, do peixe assado, as
lidas, as lutas, as luas, o lar... os camaradas, o fandango, a rabeca, a noite,
o cantar e o contar, com tudo que a noite têm de estrelas e de lendas!
E o mutirão!
Mutirão... os antigos caiçaras o faziam na época da
roçada, no preparo do terreno, plantio, colheita...Tanto os caiçaras quanto os
quilombolas herdaram a coivara, o rústico sistema de plantio, dos índios
nativos, que há séculos não caminham mais por este chão, mas são muitos por
debaixo dele!!
Plantamos nossas sementes sobre a memória do chão!
Nascerão lembranças renovadas pelas chuvas?!
Do tradicional plantio da mandioca, da
batata-doce... poucos continuam, "as roças são altas, as leis... o
cansaço... os jovens tem outros saberes e interesses, as pessoas mudam como as
marés, sabe".
Sabemos, ou apenas pensamos que sabemos...
" Nunca mais vi um mutirão caiçara, eles já se
foram, estão no mesmo lugar onde está o tempo que os apagou."
Mas do pouco que sabemos vamos seguindo e tentando
fazer alguma coisa, que se não pode ser igual ao de antigamente, nem precisa,
pode ser sincera também, como antigamente.
E o tempo da sinceridade é sempre o tempo em que se
está!
Mas... do alto das cabeças dos morros um barulho
longe de enxadas e facões voa no vento que caminha sobre os telhados rústicos e
esbarra nas barrancas do rio remexendo de leve as águas! Vozes e ferramentas
cantando a canção da terra trabalhada! Parece até que o tempo andou para trás e
reencontrou um antigo momento acontecendo... Mas o tempo não volta, ele apenas
nos mostra o quanto podemos aprender com os que vieram antes, caminhando,
regando a terra com o próprio suor, cultivando, plantando e colhendo o dia de
hoje para os de hoje e para que os que vierem amanhã possam plantar o dia deles
nesse endereço chão!!
As trilhas vazias do quilombo e da praia escutam
dentro do silêncio de uma tarde nublada de um sábado solto no universo, a
canção lenta e ritmada das ferramentas aprendendo com a terra! Em algum morro
alto e distante, mãos e pés vão se calejando e plantando mudas e sementes,
sementes que são feitas da mesma substância que moldou todos os seres! Mãos que
vieram de várias partes do mundo e se encontraram aqui, para o gesto de
aproximação, o toque, o pulsar do chão, o trabalho em união!
E enquanto o mundo parece parado na amplidão da
paisagem serena do mar... do alto de uma varanda simples, de paredes brancas,
um olhar de quase um século escuta essa canção, e fecha os olhos e a vê, como
se ela viesse diretamente de suas veias, de seus músculos envelhecidos e
cansados. E leve como uma pétala de flor de jambo, um sorriso serenado abençoa
a tarde. Ele sabe... A sua semente brotou! E, olhos semiabertos, em silêncio
profundo, medita em paz na grande noite que um dia abraça a humanidade!
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