Domingos, num domingo desses, na Sete Fontes (Arquivo SolangeBeuttemmüller ) |
Já
faz muito tempo que o Orlando “Doquinha” nos deixou. Na verdade, naquele tempo eu
era um adolescente que acompanhava meu pai no trabalho de carpinteiro e a outros tantos momentos que julgava interessante, tais como: apreciar o José Cireneu pintando suas
paisagens, escutar Antônio “Sapato Branco” contando as aventuras vividas pelos
canteiros de obras por tantos cantos do Brasil, ver o coitado do Luizinho “Diabo
Loiro” se desdobrando no pandeiro para acompanhar o “Doquinha” ao violão,
cavaquinho ou na sanfona. Tempo bom na Praia do Perequê-mirim!
O
“Doquinha” era cego. “Eu perdi a visão
com menos de dois anos. Foi uma pressão na vista, assim contaram os meus pais”.
Seu talento musical era impressionante,
capaz de me encantar por horas a fio. Ele era muito estimado por papai, mamãe e
por meus irmãos. Por isso frequentava muito a nossa humilde casa. Papai
brincava: “A casa é pobre, mas recebe o
nobre”.
Esse músico
caiçara, natural da Praia do Saco da Ribeira, quinze anos mais velho do que eu,
impressionava qualquer ouvinte, fazia coisas inimagináveis: tocava apoiando
instrumentos nas costas, dedilhando em cima de um balcão, por cima da capa dos instrumentos
etc. Vivia da música e do acolhimento das pessoas. Era acolhido um tempo na
casa de um, depois na casa de outro... mas o seu lugar preferido era a casa da
Mariazinha, do Angelino Barreto, cujos filhos o acompanhavam por todos os
lugares. Gente querida mesmo!
O
“Doquinha” também era muito querido pelos primeiros turistas, apreciadores da
boa música e dos bons tocadores. Além disso, ele pescava, ajudava nos pitirões
(mutirões). Outra coisa marcante:
conhecia as cédulas pelo tato! “Aqui está um ‘Tiradentes’, cinco mil cruzeiros. Esta é um ‘Santos Dumont’,
dez mil cruzeiros. Esta outra é um ‘Tamandaré’ de um mil cruzeiros”.
O
Orlando “Doquinha” tinha um irmão pescador: O Domingos, que agora desfruta mais
de seu lugar, na Praia das Sete Fontes. Aposentou-se como piloto do Instituto
Oceanográfico (Base Norte – USP), mas continua pescando. É dele que ouvi a
seguinte história:
Escuta, Zé, vou te contar uma situação que
eu e o meu mano Doquinha vivemos, no tempo em que morávamos em Santos. Nossos
pais ainda eram vivos. Eu vivia da pesca profissional. Vivia embarcado no barco
em que o Sílvio, da Praia das Taquaras, era o mestre. Quando estava em terra,
sempre acompanhava o mano em suas andanças. Sempre toquei pandeiro. Ele vivia
disso, de tocar pelos bares e praças, recebendo contribuições das pessoas. Era o
trabalho dele. Todo mundo sempre pagava para ouvir suas cantorias, seus
instrumentos. E tocava muito bem! Você sabe disso. Numa ocasião, aproveitando a
dispensa pelo mestre nos dias da Cheia, fomos – eu e o Doca – até a capital
paulista para comprar uma violão novo. Lembro-me bem até hoje: era a Casa Del
Vecchio, onde um jovem com sotaque para italiano nos recebeu: “Sejam bem vindos
à nossa casa. Eu sou da terceira geração. Meu avô veio da Sicília e aqui se
estabeleceu no ramo dos instrumentos musicais”. Aquilo nos deixou muito à
vontade. O Doca logo estava dedilhando os instrumentos, escolhendo o que melhor
som tivesse. Não demorou muito para se engraçar com um lindo violão. Pagamos e
seguimos pela Rua Santa Efigênia. Paramos num restaurante, antes de seguirmos
para a rodoviária e rumar para Santos. A intenção era comer alguma coisa porque
já estava na hora do almoço. Nisso, enquanto a comida não vinha, o mano começou
a dedilhar o Brasileirinho, por cima da capa do violão. Logo um cidadão, bem
vestido, de terno e gravata, chegou admirado. “Você é cego e está tocando assim
por cima da capa?” aí eu expliquei a nossa história. Em seguida, ele e outros
estavam em roda à nossa volta. Era uma música atrás da outra. Comemos e bebemos
sem pagar nada. Não nos deixaram pagar! Dali a pouco, o mesmo cidadão, que se
dizia advogado, “correu o chapéu” com o argumento: “vocês estão gostando das
músicas? Então contribuam, pois os rapazes vivem disso”. Na hora interferi: “Eu
não. É só o meu irmão que vive de seu talento. Eu sou pescador, somente nas
folgas é que o acompanho. É uma diversão para mim”. O doutor rebateu: “não tem
que explicar nada: vocês estão tocando e nós estamos gostando. Até o espanhol,
dono do restaurante está adorando. Olha só quanta gente se juntou aqui! É justo
que sejam recompensados por isso”. E olha, Zé, antes de sairmos dali, passaram
mais uma vez coletando dinheiro. Era muito... notas de muito valor! Era muito
mesmo. No final, nos levaram até a rodoviária porque disseram que era perigoso
ficar andando pelas ruas da capital com tanto dinheiro. Eu o o Doca já
estávamos quase bêbados. Nem me lembro como embarcamos e descemos em Santos. Chegando
em nossa casa, a minha mãe ficou espantada com tanto dinheiro. Aí contamos toda
a história.
Infelizmente,
depois de casado, morando numa cidade do Vale do Paraíba, o querido Orlando “Doquinha”
foi atropelado. Já era o começo da década de 1980. Grande talento! Grande perda
entre os artistas caiçaras!
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