quarta-feira, 20 de abril de 2016

CANTORIA NA CAPITAL

Domingos, num domingo desses, na Sete Fontes (Arquivo SolangeBeuttemmüller )


               Já faz muito tempo que o Orlando “Doquinha” nos deixou. Na verdade, naquele tempo eu era um adolescente que acompanhava meu pai no trabalho de carpinteiro e a outros tantos momentos que julgava interessante, tais como: apreciar o José Cireneu pintando suas paisagens, escutar Antônio “Sapato Branco” contando as aventuras vividas pelos canteiros de obras por tantos cantos do Brasil, ver o coitado do Luizinho “Diabo Loiro” se desdobrando no pandeiro para acompanhar o “Doquinha” ao violão, cavaquinho ou na sanfona. Tempo bom na Praia do Perequê-mirim!

               O “Doquinha” era cego. “Eu perdi a visão com menos de dois anos. Foi uma pressão na vista, assim contaram os meus pais”.  Seu talento musical era impressionante, capaz de me encantar por horas a fio. Ele era muito estimado por papai, mamãe e por meus irmãos. Por isso frequentava muito a nossa humilde casa. Papai brincava: “A casa é pobre, mas recebe o nobre”.

               Esse músico caiçara, natural da Praia do Saco da Ribeira, quinze anos mais velho do que eu, impressionava qualquer ouvinte, fazia coisas inimagináveis: tocava apoiando instrumentos nas costas, dedilhando em cima de um balcão, por cima da capa dos instrumentos etc. Vivia da música e do acolhimento das pessoas. Era acolhido um tempo na casa de um, depois na casa de outro... mas o seu lugar preferido era a casa da Mariazinha, do Angelino Barreto, cujos filhos o acompanhavam por todos os lugares. Gente querida mesmo!

               O “Doquinha” também era muito querido pelos primeiros turistas, apreciadores da boa música e dos bons tocadores. Além disso, ele pescava, ajudava nos  pitirões (mutirões).  Outra coisa marcante: conhecia as cédulas pelo tato! “Aqui está um ‘Tiradentes’,  cinco mil cruzeiros. Esta é um ‘Santos Dumont’, dez mil cruzeiros. Esta outra é um ‘Tamandaré’ de um mil cruzeiros”.

               O Orlando “Doquinha” tinha um irmão pescador: O Domingos, que agora desfruta mais de seu lugar, na Praia das Sete Fontes. Aposentou-se como piloto do Instituto Oceanográfico (Base Norte – USP), mas continua pescando. É dele que ouvi a seguinte história:

               Escuta, Zé, vou te contar uma situação que eu e o meu mano Doquinha vivemos, no tempo em que morávamos em Santos. Nossos pais ainda eram vivos. Eu vivia da pesca profissional. Vivia embarcado no barco em que o Sílvio, da Praia das Taquaras, era o mestre. Quando estava em terra, sempre acompanhava o mano em suas andanças. Sempre toquei pandeiro. Ele vivia disso, de tocar pelos bares e praças, recebendo contribuições das pessoas. Era o trabalho dele. Todo mundo sempre pagava para ouvir suas cantorias, seus instrumentos. E tocava muito bem! Você sabe disso. Numa ocasião, aproveitando a dispensa pelo mestre nos dias da Cheia, fomos – eu e o Doca – até a capital paulista para comprar uma violão novo. Lembro-me bem até hoje: era a Casa Del Vecchio, onde um jovem com sotaque para italiano nos recebeu: “Sejam bem vindos à nossa casa. Eu sou da terceira geração. Meu avô veio da Sicília e aqui se estabeleceu no ramo dos instrumentos musicais”. Aquilo nos deixou muito à vontade. O Doca logo estava dedilhando os instrumentos, escolhendo o que melhor som tivesse. Não demorou muito para se engraçar com um lindo violão. Pagamos e seguimos pela Rua Santa Efigênia. Paramos num restaurante, antes de seguirmos para a rodoviária e rumar para Santos. A intenção era comer alguma coisa porque já estava na hora do almoço. Nisso, enquanto a comida não vinha, o mano começou a dedilhar o Brasileirinho, por cima da capa do violão. Logo um cidadão, bem vestido, de terno e gravata, chegou admirado. “Você é cego e está tocando assim por cima da capa?” aí eu expliquei a nossa história. Em seguida, ele e outros estavam em roda à nossa volta. Era uma música atrás da outra. Comemos e bebemos sem pagar nada. Não nos deixaram pagar! Dali a pouco, o mesmo cidadão, que se dizia advogado, “correu o chapéu” com o argumento: “vocês estão gostando das músicas? Então contribuam, pois os rapazes vivem disso”. Na hora interferi: “Eu não. É só o meu irmão que vive de seu talento. Eu sou pescador, somente nas folgas é que o acompanho. É uma diversão para mim”. O doutor rebateu: “não tem que explicar nada: vocês estão tocando e nós estamos gostando. Até o espanhol, dono do restaurante está adorando. Olha só quanta gente se juntou aqui! É justo que sejam recompensados por isso”. E olha, Zé, antes de sairmos dali, passaram mais uma vez coletando dinheiro. Era muito... notas de muito valor! Era muito mesmo. No final, nos levaram até a rodoviária porque disseram que era perigoso ficar andando pelas ruas da capital com tanto dinheiro. Eu o o Doca já estávamos quase bêbados. Nem me lembro como embarcamos e descemos em Santos. Chegando em nossa casa, a minha mãe ficou espantada com tanto dinheiro. Aí contamos toda a história.


               Infelizmente, depois de casado, morando numa cidade do Vale do Paraíba, o querido Orlando “Doquinha” foi atropelado. Já era o começo da década de 1980. Grande talento! Grande perda entre os artistas caiçaras!


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