sexta-feira, 29 de abril de 2016

SEBASTIÃO LOURENÇO, UM GRANDE MESTRE CAIÇARA

Canoa caiçara no Itaguá (Arquivo JRS)

               
"Hoje infelizmente recebo a notícia que meu grande amigo e Mestre Caiçara, o Tião Lourenço, faleceu". Eu digo o mesmo, Peter. Por isso compartilho a sua matéria a respeito desse grande, tímido e habilidoso cidadão da nossa terra. Parabéns pelo texto de sincera homenagem!

O Tião (3/8/1945 - 28/04/2016), gente simples, honrado e trabalhador, eu tive a honra de conhecer na década de 1970, quando a minha família morava no Perequê-mirim. Ele se tecia por ali, assim como o Sabá, o Odócio, o Teteco, o Maneco Antunes, o Fabiano, a Maria Dornelas, o Almeidinha, a Dorcelina, a dona Celeste, o Zé da Nhanhã, o Angelino Roseno e toda a caiçarada de então. Mais tarde, após o casamento da Cida com o Clementinho, tive a honra de ser parte da sua família.


Mais um arquivo vivo da cultura caiçara de Ubatuba nos deixou, uma enorme biblioteca de memórias haliêuticas [arte da pesca] que se perdeu.



Tive o privilégio de conviver como Tião por mais de 10 anos e aprender com ele uma ínfima partezinha de tudo o que ele sabia. Provar o bacupari, aprender a colocar o sobrenício, fazer um alegre, tentar entender o responso, o carvão vivo da fogueira de São João e a pedra de cevá.

Quantas histórias misteriosas de ouro encantado, boi-tá-tá, assombração ele me contava com tanta vivacidade que seria impossível que não fossem verdade.

Tive ainda a sorte de poder registrar em vídeos e áudios muitos destes fragmentos.
Em nosso último encontro, já no hospital, levei-lhe 15 páginas de transcrições retiradas de quase duas horas de gravação: "Dá quase um livro Tião!" lhe falei. (Apenas 2 horas, 15 páginas, quanto não daria 60 anos de sabedoria!?)
Nesse dia pude dar-lhe um forte abraço sem o gosto de despedida, mas de um até breve.
Até breve Tião, muito obrigado por me tornar um ser humano muito melhor do que eu era antes de te conhecer.

FONTE: canoadepau. blogspot.com

quarta-feira, 20 de abril de 2016

CANTORIA NA CAPITAL

Domingos, num domingo desses, na Sete Fontes (Arquivo SolangeBeuttemmüller )


               Já faz muito tempo que o Orlando “Doquinha” nos deixou. Na verdade, naquele tempo eu era um adolescente que acompanhava meu pai no trabalho de carpinteiro e a outros tantos momentos que julgava interessante, tais como: apreciar o José Cireneu pintando suas paisagens, escutar Antônio “Sapato Branco” contando as aventuras vividas pelos canteiros de obras por tantos cantos do Brasil, ver o coitado do Luizinho “Diabo Loiro” se desdobrando no pandeiro para acompanhar o “Doquinha” ao violão, cavaquinho ou na sanfona. Tempo bom na Praia do Perequê-mirim!

               O “Doquinha” era cego. “Eu perdi a visão com menos de dois anos. Foi uma pressão na vista, assim contaram os meus pais”.  Seu talento musical era impressionante, capaz de me encantar por horas a fio. Ele era muito estimado por papai, mamãe e por meus irmãos. Por isso frequentava muito a nossa humilde casa. Papai brincava: “A casa é pobre, mas recebe o nobre”.

               Esse músico caiçara, natural da Praia do Saco da Ribeira, quinze anos mais velho do que eu, impressionava qualquer ouvinte, fazia coisas inimagináveis: tocava apoiando instrumentos nas costas, dedilhando em cima de um balcão, por cima da capa dos instrumentos etc. Vivia da música e do acolhimento das pessoas. Era acolhido um tempo na casa de um, depois na casa de outro... mas o seu lugar preferido era a casa da Mariazinha, do Angelino Barreto, cujos filhos o acompanhavam por todos os lugares. Gente querida mesmo!

               O “Doquinha” também era muito querido pelos primeiros turistas, apreciadores da boa música e dos bons tocadores. Além disso, ele pescava, ajudava nos  pitirões (mutirões).  Outra coisa marcante: conhecia as cédulas pelo tato! “Aqui está um ‘Tiradentes’,  cinco mil cruzeiros. Esta é um ‘Santos Dumont’, dez mil cruzeiros. Esta outra é um ‘Tamandaré’ de um mil cruzeiros”.

               O Orlando “Doquinha” tinha um irmão pescador: O Domingos, que agora desfruta mais de seu lugar, na Praia das Sete Fontes. Aposentou-se como piloto do Instituto Oceanográfico (Base Norte – USP), mas continua pescando. É dele que ouvi a seguinte história:

               Escuta, Zé, vou te contar uma situação que eu e o meu mano Doquinha vivemos, no tempo em que morávamos em Santos. Nossos pais ainda eram vivos. Eu vivia da pesca profissional. Vivia embarcado no barco em que o Sílvio, da Praia das Taquaras, era o mestre. Quando estava em terra, sempre acompanhava o mano em suas andanças. Sempre toquei pandeiro. Ele vivia disso, de tocar pelos bares e praças, recebendo contribuições das pessoas. Era o trabalho dele. Todo mundo sempre pagava para ouvir suas cantorias, seus instrumentos. E tocava muito bem! Você sabe disso. Numa ocasião, aproveitando a dispensa pelo mestre nos dias da Cheia, fomos – eu e o Doca – até a capital paulista para comprar uma violão novo. Lembro-me bem até hoje: era a Casa Del Vecchio, onde um jovem com sotaque para italiano nos recebeu: “Sejam bem vindos à nossa casa. Eu sou da terceira geração. Meu avô veio da Sicília e aqui se estabeleceu no ramo dos instrumentos musicais”. Aquilo nos deixou muito à vontade. O Doca logo estava dedilhando os instrumentos, escolhendo o que melhor som tivesse. Não demorou muito para se engraçar com um lindo violão. Pagamos e seguimos pela Rua Santa Efigênia. Paramos num restaurante, antes de seguirmos para a rodoviária e rumar para Santos. A intenção era comer alguma coisa porque já estava na hora do almoço. Nisso, enquanto a comida não vinha, o mano começou a dedilhar o Brasileirinho, por cima da capa do violão. Logo um cidadão, bem vestido, de terno e gravata, chegou admirado. “Você é cego e está tocando assim por cima da capa?” aí eu expliquei a nossa história. Em seguida, ele e outros estavam em roda à nossa volta. Era uma música atrás da outra. Comemos e bebemos sem pagar nada. Não nos deixaram pagar! Dali a pouco, o mesmo cidadão, que se dizia advogado, “correu o chapéu” com o argumento: “vocês estão gostando das músicas? Então contribuam, pois os rapazes vivem disso”. Na hora interferi: “Eu não. É só o meu irmão que vive de seu talento. Eu sou pescador, somente nas folgas é que o acompanho. É uma diversão para mim”. O doutor rebateu: “não tem que explicar nada: vocês estão tocando e nós estamos gostando. Até o espanhol, dono do restaurante está adorando. Olha só quanta gente se juntou aqui! É justo que sejam recompensados por isso”. E olha, Zé, antes de sairmos dali, passaram mais uma vez coletando dinheiro. Era muito... notas de muito valor! Era muito mesmo. No final, nos levaram até a rodoviária porque disseram que era perigoso ficar andando pelas ruas da capital com tanto dinheiro. Eu o o Doca já estávamos quase bêbados. Nem me lembro como embarcamos e descemos em Santos. Chegando em nossa casa, a minha mãe ficou espantada com tanto dinheiro. Aí contamos toda a história.


               Infelizmente, depois de casado, morando numa cidade do Vale do Paraíba, o querido Orlando “Doquinha” foi atropelado. Já era o começo da década de 1980. Grande talento! Grande perda entre os artistas caiçaras!


sexta-feira, 15 de abril de 2016

NA VERDADE...

                                    

                          Ney Caetano: seja bem-vindo ao blog!
     
                      Comecei a falar tardiamente, quase chegando aos cinco anos. Eu nunca quis saber a razão disso, porque foi assim, o que pode ter acontecido e influenciado o fenômeno. Teve até um frade italiano (José Bertazzo) que, ao nos visitar, tentava me ensinar, me fazer soltar a fala: “Dica Chosé” (Diga José). Na verdade, mesmo depois de estar com uma comunicação razoavelmente boa, nunca fui de falar além do mínimo em casa. Na escola se repetia a mesma coisa, sempre poupava a minha fala. Por isso várias vezes eu tive defensores quando algum inspetor escolar chegava anunciando que “todos os meninos receberão advertência pela bagunça de hoje”.  Sempre era mais de uma voz a retrucar: “O Ronaldo não. Ele sempre está quieto em sua carteira”.

                      “Não é de falar quase, mas reina muito!”, dizia a mamãe. Uma coisa é certa: eu andava muito. "Esse menino é um bate-pernas de marca maior!". E como andava! E brincava por todos os lugares! E ia para o trabalho sempre empolgado, ansiando para aprender, para descobrir novas coisas e para prestar bem atenção nas falas das pessoas.

                      Numa ocasião, depois que o tio João falava importunado pelo meu silêncio, vovó Eugênia interferiu: “Deixa o menino em paz, João. Repare bem: será que  essa  gente que tanto fala consegue enxergar além do nevoeiro das palavras, do que está dizendo?”. Tenho a impressão que apenas depois disso comecei dar mais atenção às palavras. Exemplo: Por que caneca tem o nome de caneca? Por que o Artelino Flor  foi registrado com o nome de Artelino Flor? Também notei que algumas palavras são “desastradas”, geram interpretações diferentes. “Ah se a Maria visse! Metia a boca que acabava!”. No caso, tratava-se de uma estripulia sem igual. Sorte que a Maria, a dona da casa não se fazia presente, senão teria  xingado todo mundo.  Quer saber qual foi a arte? Alguém, aproveitando-se da escuridão, defecou  em cima de uma galinha que chocava ovos num balaio.

                      E o que dizer da nossa habitual pressa em dizer algo, em suprimir letras ou até mesmo palavras? Quando aparecia alguém “todo prosa na fala”, querendo detalhar demais, a mesma avó tinha um dizer: “Quem se demora em palavra por palavra é porque não quer dizer toda a verdade”.

                      Não sei, mas hoje, ao relembrar de comentários assim, tenho a impressão que a intenção da vovó era desenvolver uma força interior em nós, querendo que gente achasse/fizesse uma direção de sentido à vida. Acho que era isso. Bem poderia ser mesmo.

                      Várias vezes, em vez de palavra ela recomendava ação: “Faça primeiro, Zezinho. Faça com vontade para não deixar mal entendido”. Deve ser por isso que encontro tanta dificuldade entre pensamento e linguagem. Para mim é um exercício custoso trazer algo de nível mais profundo para um ordenamento de palavras que se tornem mensagens bem claras. Elas somem quando eu mais preciso. No fundo, permanece aquele sentimento que as palavras se dissolvem na natureza, tal como um ser que desaparece nas profundezas. “Era uma arraia pintada. Eu vi, tava boiada, mas afundou... afundou... até desaparecer de vez na escuridão da fundura”.

terça-feira, 12 de abril de 2016

A NOSSA MARIA


              
A nossa Maria na nova etapa, em Juiz de Fora (Arquivo JRS)
            As crianças nascem, crescem... tal como os passarinhos, aprendem a voar. As nossas também vão seguindo essa dinâmica da vida. Agora chegou a vez da Maria, da nossa querida Maria Eugênia. Ela já está iniciando o seu curso superior; começaram as aulas no Instituto de Artes e Design, na Universidade Federal de Juiz de Fora.  Estivemos por lá, acertamos o lugar de moradia, contactamos os amigos, fizemos novas amizades, sentimos o ambiente empolgante do meio acadêmico, a energia da juventude universitária. Ou seja, essa caiçarada nova vai se espalhando, dando seus toques diferenciais, deixando suas marcas em outros universos culturais. Muito bom tudo isso! Ouso dizer que a área das artes é parte de um talento natural dos Félix, ou seja, a nossa herança por parte do Vô Estevan, caiçara da Caçandoca. A Maria Eugênia, o Estevan, o meu primo Mário e seu filho, a prima Arlete, o Tio Dito, o Tio Aristides, a priminha Giovana e outros estão por aí confirmando isso.

               Comemorando cinco anos do blog, também comemoramos o prosseguimento nos estudos da nossa filha e da sobrinhada querida. É mais um motivo para continuar sonhando e lutando.  Essa responsabilidade pelos seres humanos que ofertamos ao mundo, nos torna co-participantes da criação. Ao mesmo tempo, essa nova geração vai nos tornando outros novos seres, vai nos renovando. O mesmo eu digo da minha esposa engajada nessa tarefa, nessa missão.


               O meu pai dizia que seu avô, o Velho Fabiano, natural da Praia do Pulso, num tempo em que nem rodovias existiam em Ubatuba, apesar de ser iletrado, dizia: 

        “Vocês viverão ainda muitas coisas neste mundo. Haverá estradas em todas as direções. Esse negócio de precisar de barco e de canoa para ir mais longe deixará de ser comum.  Muitas escolas serão construídas. As crianças entenderão outros povos e estudarão em outras terras. Mas tudo isso eu não alcançarei”. 

        E aconteceu mesmo! E se depender de mim, vai continuar acontecendo, pois a nova geração, seguindo a lógica da evolução, tem de ser melhor que a anterior, precisa avançar sempre. Não faz sentido passar por este mundo sem deixá-lo melhor do que encontrou.

           E pensar que, de acordo com o Justo Arouca, em abril de 1958 foi instalado o curso ginasial na nossa Ubatuba:

              "Ginásio Capitão Deolindo de Oliveira Santos. Não me recordo que a escola tenha se preocupado em reverenciar seu patrono, ou que comemorasse o dia do seu aniversário. As informações mais consistentes diziam que o Capitão Deolindo foi tio do seu Filhinho da Farmácia e sua graduação teria sido título honorífico que recebera, como honra à jactância pessoal, mas foi Prefeito Municipal. Com seu garbo, o Ginásio "Capitão Deolindo" tornou-se o farol radiante a iluminar o caminho para que a nossa rapaziada ganhasse ânimo e força na trilha segura de um novo tempo. [...] O "Deolindo" era o único curso de 2º grau. Ocupou inicialmente o prédio do Grupo Escolar Dr. Esteves da Silva, situado no final da rua Jordão Homem da Costa, às margens do rio Grande, atrás das instalações do DER [mercado de peixe]".
             
             Neste tempo de alegria pela Maria Eugênia estar enfrentando novos desafios em sua vida, longe da gente, vale a pena homenagear os primeiros caiçaras que concluíram o curso (2º grau), em 1961, no "Capitão Deolindo"

Justo Arouca, Wladinéia Ferreira, Sônia Shimidt, Suely Moreno, Idinéia da Cruz, Hebe da Silva, Raquel de Souza e Anita Nunes.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

DEPOIS DA ESTRADA

Dia de farinhada (Arquivo JRS)

                Admiro as pessoas que têm facilidade para fazer poesias porque, quase sempre, de forma inusitada, dizem em poucas palavras o que longas reflexões deixam a desejar.

                A nossa terra, na nossa cultura caiçara, “tem uns pares de gente assim” que muito nos edificam. Alguns escrevem em seus espaços privativos, tal como os anacoretas em seus retiros. É o caso do estimado José Carlos, o Góis; outros estão no meio da multidão, na labuta que sustenta o cotidiano. O prezado Santiago, conforme vou acompanhando suas atividades, deixa antever de onde brota suas inspirações: da natureza e da vida em comunidade. Agora mesmo, tendo a imagem de seu grupo plantando no morro do Camburi, reflito um desapontamento com parte dessa nova geração do povo do meu lugar.

                Passando um dia na praia do Camburi, dei sorte de encontrar alguns caiçaras para conversar. Prosa é comigo mesmo! Quem me conhece sabe que eu adoro histórias (que é sempre, em qualquer lugar, a vida da comunidade). Algumas mulheres e apenas um homem que trabalhavam por ali assim narraram:

                “Hoje é dia de mutirão na comunidade. Já é dia fixo; todos sabem. A gente carpe os caminhos, aterra buracos, arruma cercas, cuida da cemitério, planta árvores e flores. É o nosso lugar, a gente vive aqui, né? Tem que ser um lugar bom. Pode ser mais bonito ainda. Mas somos sempre nós, estas mesmas pessoas que você tá vendo. Mas o nosso lugar tem bastante gente. Tem sempre alguém que sempre inventa alguma coisa para fazer na cidade, para deixar de comparecer neste nosso compromisso marcado em reunião da comunidade.


                 Nenhum jovem participa, mas eles sabem que é para eles mesmos, pra todos nós que nascemos e moramos aqui. Parece que sentem vergonha de serem pobres, de serem deste lugar. E tem mais: pensa que  eles sabem pescar, trabalhar na roça, fazer farinha?!? Essa geração nova não quer saber de nada disso. Morrendo os mais velhos, se acaba tudo. Se acaba o nosso jeito caiçara de viver, de aproveitar da vida. Essa gente nova quer se parecer com o pessoal de fora, com os turistas. Essa coisa foi chegando depois que passou a estrada”.