sexta-feira, 25 de outubro de 2024

SE LEMBRA?

 

Arte ďa Mônica

Enfiando as mãos nas locas,

Levantando capim do barranco,

Enxotando tudo para o balaio.

Entre as pedras roliças,

Dos rios onde todos se serviam,

Vivíamos parte da vida.

Era muito bom ser criança.

Vez ou outra um susto,

Você saía correndo:

Cobra e mussum se confundiam.

Diferente era algum domingo,

Quando uma perua rural trazia de tudo.

Seo Valter e as novidades, vendia até fiado.

Eu adorava guaraná de garrafa!

"Pode dar uma tubaína para o menino".

Vovô Armiro e seus agrados.

Comércio ocasional aguardado na praia.

Nós, crianças, "abelhas no bagaço da cana".

Só as broncas nos faziam espiar o chão.

Você se lembra, meu irmão?


domingo, 20 de outubro de 2024

O DESAFIO DA HUMANIDADE

 
Aranha na teia - Arte da Mônica 


"Entre a riqueza e o saber, as pessoas não pensam muito, ficam com a riqueza ". 

    Dias desses, escutando três crianças negras cantando e tocando um samba popular, me achei refletindo acerca da diversidade de povos, de culturas e etnias que fazem o nosso país, tal como uma teia de aranha.  Eu sou parte desta teia chamada Brasil. Dentre tudo isso, os afrodescendentes são o que mais me impressionam. Em cada rosto, em cada traço aparente que revela sua origem (o continente africano), eu reconheço e admiro a história de resistência que é carregada nesses últimos séculos de sofrimentos. Quantas histórias esses grupos africanos e seus descendentes já viveram no território caiçara? Muitas! Nos fizemos caiçaras graças a eles também! 

    Para ilustrar o valor da memória de resistência,  eis um trecho do Capitão Mouro,  de Georges Bourdoukan:

    - Vocês vão ver o que acontece com aquele que tentar fugir ou desrespeitar o seu senhor.
    A um sinal seu trouxeram um escravo com as mãos acorrentadas para trás.  Estava com a letra F gravada na testa e sem uma das orelhas.
    - O que significa a letra F? - perguntou Saifudin.
    - Fugitivo - respondeu Ben Suleiman. - Quando eles recapturam, gravam a letra F com ferro em brasa. Quando foge pela segunda vez, cortam uma das orelhas.

   Continuei lendo e curtindo os pequenos artistas que certamente já  escutaram de seus pais essas tristes histórias. Pode ser que presenciem ou ouvirão coisas piores porque parece que estamos regredindo demais nos últimos tempos. Um exemplo: eu estava na rodoviária da cidade de Aparecida aguardando a chegada de um ônibus. De repente, um jovem negro, funcionário dali mesmo, falava mal de seus semelhantes. Pensei na hora: "Sei onde está a raiz deste ódio ".

   Somos humanos, mas somos primeiramente animais. Precisamos, continuadamente, cultivar a humanidade para não retornaremos à barbárie. Aquele e tantos outros comentários de ódio não se dirigem a quem imprime sofrimentos às minorias sociais, a quem se aproveita dos mais fracos da sociedade. Aquele comentário está no mesmo principio de quem deseja apedrejar, cortar orelhas etc. Aquele comentário é de quem não deseja o melhor para seu próprio povo cuja raiz cultural é sobrevivente das naus tumbeiras. Aquele comentário é de quem não reconhece o direito dos quilombolas resistentes, dos direitos trabalhistas alcançados com tantas lutas, dos direitos a uma vida digna para todo mundo. Não consegue enxergar que a sua própria existência é sinônimo de resistência pelos séculos. 
 
           Todas   as   minorias   sociais   continuam   sendo   caluniadas, escorraçadas e perseguidos por quem    troca o  saber, a  humanidade, pela riqueza. Triste fim de mundo! 

  Para encerrar  - e não esquecer que a nossa humanidade se cultiva - uma frase do muro:   "Façam silêncio enquanto as crianças dormem, não quando morrem sob bombas".
   

sábado, 5 de outubro de 2024

DESLEMBRAR

 

Olhando o céu- Arte da querida Gal 

    Qualquer um de nós sabe que vai morrer e deixar serviço por fazer. Certa vez, lendo Baú de Badulaques, de Rubem Alves, comecei a me comprometer em se libertar de tantas coisas que fui guardando, fazendo peso na minha existência, tal como camadas de tintas que, ao longo dos anos, foi escondendo a beleza da madeira, apagando a sua essência que se manifestava em cheiros, cores, veias... Agora, deslembrar é tarefa da nossa cabeça. Coisa dificílima! 

   A cabeça (cérebro, intelecto, memória...) segue selecionando o que pode permanecer, que ainda tem valor existencial. Vai descartando o que merece desaparecer, limpar espaço. É uma varredura mesmo! Creio que é assim a nossa vida, imitando o trabalho do cérebro. É um esforço consciente e também inconsciente porque o corpo tem suas razões autônomas. Desse modo vai se destacando apenas aquilo que nos marcou profundamente, de verdade, que é necessário ainda ao corpo. Tudo aquilo que aconteceu por obrigação, sem amor, desaparecerá. Os empreendimentos realizados por cobiça, pensando em acumular riquezas, serão inúteis ao anoitecer da vida. É esta que, finalmente, resguardamos. Basta de esforço sem precisão! Um projeto de serviço agora, mais do que nunca, é pensando nos meus, na coletividade próxima e no melhor para a humanidade. Sei que muitas das minhas amizades também remam comigo nesta canoa. Agindo assim a consciência se beneficia.

     Agora, no entardecer, meu movimento é pequeno no mundo porque as energias já não são as mesmas. A utopia permanece espiando da linha do horizonte, longe apesar dos muitos passos que demos. A definitiva alegria há de vir: uma mata refeita, produzindo água e garantindo a sobrevivência, dando alimento a nós e aos demais seres; uma família feliz repassando o essencial a cada dia, evitando a pior doença (aquela que reproduz o oposto de amor). O saudoso enfermeiro da minha infância, João “Japão”, irmão da Dona Maria Balio "Baixinha", gente do Sertão do Puruba, que nos atendia na praia do Sapê, disse uma frase que me vem sempre à memória: “Desconfio dessa gente que não acredita mais em benzedura, mas também não aceita a vacinação”. Ela não continua atualizada nesta época de tantas mentiras, das tão faladas e acreditadas fake news, este campo onde o ódio, oposto do amor, se reproduz?

    Tantas coisas...Manhã fria, de chuva ensaiando em vir ao chão... Sigo escrevendo das coisas que ainda não me deslembrei. Quem vai me entender? Creio que a maioria das pessoas nesta possibilidade já está indo do meio-dia para a tarde.

 

 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

GERAÇÃO E CULTURA

 

Tio João  e filha - Arquivo Marlene

Caiçarinhas - Arquivo Trindadeiros

Longe, um piado diferente.

Não, não era de cobra!

Piado fora de tempo, mas de passarinho.

“É aviso, minha gente. Coisa boa não há de ser”.

“Bobagem vossa. Não sabeis que é urutau?”.

“Ah, bom! Então vamos em frente”.

Tio João nos guiava,

Pés miúdos no morro da Fortaleza.

"Vamos chegar na Pedra da Igreja".

De qualquer roça a gente a via.

Pelos caminhos os cheiros:

Sassafrás, ciosa, tarumã...

Tempo que voa.

De volta, já em casa,

A ordem da mamãe:

“Agora banho, tirar esse cheiro de capim melado”.

E logo, economizando no sabonete,

Eu aparecia com cheiro de menino novo.

 

Quem teve essa vida de criança?

Quem viveu assim a infância?

 

terça-feira, 1 de outubro de 2024

ERA SÓ ALEGRIA

 

As crianças - Arte da querida Gal

Que nem passarinho a gente ia chegando.

A escola, casa primeira da tia Martinha, na Fortaleza.

Do morro olhava o único caminho.

Por ali vinha eu e a mana Ana,

De pernas orvalhadas até os joelhos.

Por ali brotava um, brotavam dois, brotavam várias crianças: 

Todas caiçarinhas felizes.

À espera da aula ninguém se atrasava.

Todos queriam brincar antes.

A professora já estava lá,

Saudosa da sua terra

Em terras do Vale do Paraíba.

Correndo a vista por todo espaço

Avistava meninas e meninos

Chegando que nem passarinhos.


Parei aqui. Então completa o mano Mingo:


Quando a escolinha

agrupada do primeiro grau

da praia da Fortaleza

era no sopé do morro,

no meio do bananal,

uma cobra caninana

foi se enrodilhar

entre os caibros do telhado

para aprender o beabá.

Mas acabou sendo expulsa,

tão logo foi notada,

porque não estava inscrita

no livro de chamada.