segunda-feira, 9 de setembro de 2024

FRATERNIDADE DA MORTE



Arte em casa - Arquivo JRS
 
    Estava no meio da semana, fim do meu primeiro período de trabalho. Dali sairia correndo dali para embarcar num ônibus e me dirigir a outra escola distante mais de hora, mas antes perdia um tempo a fim de arrumar as minhas coisas no armário (em outros tempos chamado de escaninho) e me despedir dos colegas. Na sala dos professores alguns tagarelavam com entusiasmo. Não tinha como eu não me atentar ao assunto: “A policia deu um jeito naquele bando de desocupados, naqueles moradores de rua que ocupavam a varanda daquela casa abandonada na orla da praia”. A professora mais empolgada, que até parecia dançar de alegria enquanto falava, era a que lecionava Língua Portuguesa e Literatura. Que tamanha desumanidade! “Agora eles que se virem, procurem outro lugar, voltem para as suas cidades, para a terra onde nasceram. Tenho quase certeza de que aquele risco horrível no meu carro foi obra de algum desses vagabundos. Vocês notaram que é tudo gente nova? Não poderiam estar trabalhando em vez de viverem pedindo esmola  por aí?”. Eu, percebendo que ainda tinha uns minutos antes de me retirar, fiz me parecer alheio, mas continuei escutando e atento naquele meio, buscando ver ali algum rosto inconformado com o nível da falação reinante, tipo fraternidade da morte. Apenas dois olhos azuis, do colega da Geografia, se revelariam a mim como se dissessem que nem valia a pena comentar esse baixíssimo estágio civilizatório, essas mentes reduzidas e obstruídas por motivos tão mesquinhos. “Deixa pra lá, Zé”.

   Tendo chegado a minha hora, fui porta afora para me dirigir ao ponto de ônibus. Ao passar pelo estacionamento fui prestando atenção para enxergar o risco no veículo da tal professora. Quase nem se via, podia ser arte de aluno dali mesmo. Mas uma coisa prendeu a minha atenção: no vidro traseiro estava fixado uma chamativa imagem do Sagrado Coração de Jesus. “Ah! É católica! Olha só de onde vem!”. Na hora me recordei de ter lido que, na Espanha do ditador Franco, os carros de combates do Exército levavam estampadas a mesma imagem. E não vimos, dias desses, muitos que se dizem cristãos fazendo gesto de “arminha” para mostrar que estavam do lado de determinado político escroto, avesso às classes populares, eleito presidente da nossa república? Gente assim, você haverá de concordar, tem um só grito em mente: Viva a morte! (Dos pobres em seus infernos, pois os ricos já têm os seus céus vivendo na Terra). É isto: trata-se de guerra santa contra os despossuídos e contra aquelas pessoas que se revoltam ao sistema vigente, privilegiador de pouquísssimos.

   Se estivesse acompanhando a minha reflexão, certamente eu escutaria da professora crente em Deus: “Mas é uma guerra santa mesmo!”. Pois é. A história está cheia de outros momentos onde os ditos senhores do poder perfilaram rebeldes e pobres e recorreram aos “olés”  de metralhadoras para acompanharem olés desumanos sustentados até mesmo, por exemplo, no Congresso brasileiro por uma denominada Bancada da Bíblia. “Mas é uma guerra santa mesmo!”. Cadê mais adesivos, mais frases religiosas para os carros? (Ironia, viu?). Como pode ser normalizado o desejo de crueldades, de se alegrar com mutilações de corpos e mentes para ganhar dinheiro e poder? Que consolo há nisto?     Ah, Sagrados Corações! Quantas "Faixas de Gaza" ao meu redor!? Eu e minha atenção doentiamente aguda que dou às coisas no meu dia a dia! Não é por aí, nesse caminho tão largo, que a minha gente deveria rumar. Não é por aí mesmo!

 

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