sábado, 28 de setembro de 2024

ESPAÇO DE BRINCAR

 

Mariposa - Arquivo JRS 

Água podre, choca, brejo:

"Não pise ai, menino. Dá cobreiro"

Mas quem escutava?

Podia ter sapo, bicho gosmento...

Certamente tinha de tudo.

"Menino é assim mesmo,

Não escuta a gente".

Era assim a vida

De criança que, do mato,

Avistava o mar.

Todo espaço era de brincar.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

NÃO HÁ OUTRA TERRA

 

Floresta em chamas - Arquivo JRS 


   Antoine de Saint-Exupéry, no livro O pequeno príncipe, escreveu o seguinte: “E se eu, por minha vez, conheço uma flor única, que só existe no meu planeta, e que um belo dia um carneirinho pode liquidar num só golpe, sem avaliar o que faz, isso não tem importância?”. Pode ser que seja uma frase bem simples, mas a aproveitarei para uma reduzida reflexão nesses dias de acidentes criminosos, de matas imensas ardendo em chamas.

   Sem dúvida que quem é apaixonado pela natureza já está em sintonia comigo, sabe que somos interdependentes neste planeta (acabei de ver as formigas limpando os brotos de uma laranjeira cheia de pulgões, garantindo os frutos futuros). Muita gente entende perfeitamente que não existe outra Terra. Ou seja, não jogamos nada fora, tudo causa alguma reação a todo momento em todos os lugares. Os cientistas mais comprometidos com a vida, com o meio ambiente e com as questões sociais, continuam estudando as relações entre desertificação, queimadas, poluição atmosférica, esgoto não tratado, destruição de ecossistemas, poluição de rios e mares etc. O meu povo caiçara, até antes do advento do turismo, estava em maior sintonia com a natureza, sabia ler os sinais que os ares, os animais e os demais seres emitiam. Essa minha gente, agora minoria cultural em seu próprio território, deveria se manter apaixonada pelas mesmas causas que eu, também deveria saber que há muito mais do que um carneirinho pondo em risco uma flor única. Uma mata, formada há milênios, abriga um valor inestimável em seres vivos, muitos dos quais nem foram conhecidos. Então é lógico essa aceitação de que fogo e extermínios são necessários? É natural enxergar o mar bonito, mas saber que as correntes de esgotos estão lavando pessoas que se divertem? E o que imaginamos vendo os pescadores oferecendo os produtos do seu trabalho conseguidos em tal ambiente?

  “Ah, tudo é política!”, dirão muitos. E é mesmo! As  áreas de preservação só existem (e resistem!) porque pessoas e entidades pautam suas razões nessas causas. A agricultura familiar, que fornece 70% da nossa alimentação, só está sendo resgatada porque surgiram políticas nesta intenção, contrariando os latifundiários deste país. A nossa cultura ganha suspiros de alívio porque algumas pessoas, lideranças comunitárias, cidadãs deste chão (território caiçara geral) não arriam o bastão e seguem em frente. Talvez só estejam pouco atentos aos aspectos políticos, de engajamento na estrutura para modificá-la e/ou aperfeiçoá-la. É isto: precisamos urgentemente conhecer as intenções dos seguimentos políticos, propor mudanças, ser sujeitos de um tempo que, ao que parece, pode estar no fim. Nossas lideranças podem fazer a diferença a partir da política local.

  Qualidade das águas, mata preservada, desenvolvimento sustentável, respeito à diversidade cultural  etc.: tudo é questão de política. Eis a definição dada a ela pelos gregos: a arte de viver na cidade, em coletividade.         Enfim, não é um carneirinho que pode ameaçar a vida de uma flor, da natureza e da humanidade, mas nós mesmos. Tudo depende da nossa alienação ou do nosso engajamento. Os poderosos e os que cultivam a ambição de serem ricos assumem as suas causas e nos prejudicam. Resta a nós definir e agir politicamente pelas nossas. Não há outro planeta Terra. Isso tudo não tem importância? 

Em tempo:   "Somos a única espécie que conspira para a própria extinção " (Miguel Nicolelis)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

MÁRTIRES

 

Escadaria - Arquivo JRS 


      Em uma maravilhosa crônica dedicada à memória de Giordano Bruno, o talentoso escritor lusitano José Saramago nos relembra:
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“Desde a infância que os educadores nos falam dos mártires, dão-nos exemplos de civismo e moral à custa deles, mas não nos dizem quanto foi doloroso o martírio, a tortura. Tudo fica no abstrato, filtrado, como se olhássemos a cena, em Roma [local do martírio de Giordano Bruno], através de grossas paredes de vidro que abafassem os sons, e as imagens perdessem a violência do gesto por refracção. E então podemos dizer, tranquilamente, uns aos outros, que Giordano Bruno foi queimado. Se gritou, não ouvimos. E  se não ouvimos, onde está a dor? Mas gritou, meus amigos. E continua  a gritar”.

   Os gritos de Giordano Bruno, de Joana D’Arc, de Dorothy Stang, de Padre Josimo, de Dom Oscar Romero, de Margarida Alves, do indígena Galdino, do operário Santo Dias, do Chico Mendes e de tantos outros mártires continuam nas perseguições aos grupos originários, aos afrodescendentes, aos pobres das periferias, do litoral e dos sertões do imenso território brasileiro. Os martírios prosseguem porque continua existindo gente inconformada com as injustiças. Mártires continuam existindo no mesmo vigor de outros tempos. E por que não se fazer viva memória do grande campo de mártires que é a Faixa de Gaza há mais de sessenta anos, dos muitos campos de refugiados que vivem da solidariedade internacional e dos povos que resistem aos bloqueios econômicos impostos por países ricos? 

  Gente que se “edifica” nas vidas do mártires clássicos está produzindo mártires, sobretudo nesta época de endeusamento das armas de fogos, de queimadas para expandir pastos e monocultura, de grandes empresários bancando candidatos que lhes serão subservientes para saciar a sede intensa de exploração dos recursos ambientais e de seus semelhantes, dos humanos mais fragilizados. Não nos esqueçamos que ainda tem um grande número de sem-noção neste país que pretende privatizar as praias, acabar com as conquistadas leis trabalhistas, tornar o ensino militarizado etc. Também em Ubatuba tem gente assim (limitada cognitivamente ou desviada moralmente)!

   Os gritos dos martirizados continuam, irão nos acompanhar a vida toda e continuarão após nossas mortes.

  Grande utopia é que todos sejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento. Que todos os mártires nos sustentem neste ideal; que seus exemplos sirvam de degraus a todos que querem um mundo melhor.


quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A VACA

 

Florzinhas - Arquivo JRS 

                 Saramago contou uma história interessante a respeito de uma vaca que precisou lutar doze dias contra lobos ferozes defendendo a própria vida e a do vitelo que se alimentava de seu leite. Ao final foi encontrada e salva pelos homens da aldeia. Agora o final triste: ela acabou sendo morta pelos próprios salvadores, talvez pelo dono, porque ela aprendera a se defender. Ninguém podia agora dominá-la. Foram incapazes de perceber que, tendo aprendido a lutar, aquele conformado animal não poderia parar nunca mais. Que lição! Ela lhe serve de chave para alguma reflexão interessante?

 



    

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

FRATERNIDADE DA MORTE



Arte em casa - Arquivo JRS
 
    Estava no meio da semana, fim do meu primeiro período de trabalho. Dali sairia correndo dali para embarcar num ônibus e me dirigir a outra escola distante mais de hora, mas antes perdia um tempo a fim de arrumar as minhas coisas no armário (em outros tempos chamado de escaninho) e me despedir dos colegas. Na sala dos professores alguns tagarelavam com entusiasmo. Não tinha como eu não me atentar ao assunto: “A policia deu um jeito naquele bando de desocupados, naqueles moradores de rua que ocupavam a varanda daquela casa abandonada na orla da praia”. A professora mais empolgada, que até parecia dançar de alegria enquanto falava, era a que lecionava Língua Portuguesa e Literatura. Que tamanha desumanidade! “Agora eles que se virem, procurem outro lugar, voltem para as suas cidades, para a terra onde nasceram. Tenho quase certeza de que aquele risco horrível no meu carro foi obra de algum desses vagabundos. Vocês notaram que é tudo gente nova? Não poderiam estar trabalhando em vez de viverem pedindo esmola  por aí?”. Eu, percebendo que ainda tinha uns minutos antes de me retirar, fiz me parecer alheio, mas continuei escutando e atento naquele meio, buscando ver ali algum rosto inconformado com o nível da falação reinante, tipo fraternidade da morte. Apenas dois olhos azuis, do colega da Geografia, se revelariam a mim como se dissessem que nem valia a pena comentar esse baixíssimo estágio civilizatório, essas mentes reduzidas e obstruídas por motivos tão mesquinhos. “Deixa pra lá, Zé”.

   Tendo chegado a minha hora, fui porta afora para me dirigir ao ponto de ônibus. Ao passar pelo estacionamento fui prestando atenção para enxergar o risco no veículo da tal professora. Quase nem se via, podia ser arte de aluno dali mesmo. Mas uma coisa prendeu a minha atenção: no vidro traseiro estava fixado uma chamativa imagem do Sagrado Coração de Jesus. “Ah! É católica! Olha só de onde vem!”. Na hora me recordei de ter lido que, na Espanha do ditador Franco, os carros de combates do Exército levavam estampadas a mesma imagem. E não vimos, dias desses, muitos que se dizem cristãos fazendo gesto de “arminha” para mostrar que estavam do lado de determinado político escroto, avesso às classes populares, eleito presidente da nossa república? Gente assim, você haverá de concordar, tem um só grito em mente: Viva a morte! (Dos pobres em seus infernos, pois os ricos já têm os seus céus vivendo na Terra). É isto: trata-se de guerra santa contra os despossuídos e contra aquelas pessoas que se revoltam ao sistema vigente, privilegiador de pouquísssimos.

   Se estivesse acompanhando a minha reflexão, certamente eu escutaria da professora crente em Deus: “Mas é uma guerra santa mesmo!”. Pois é. A história está cheia de outros momentos onde os ditos senhores do poder perfilaram rebeldes e pobres e recorreram aos “olés”  de metralhadoras para acompanharem olés desumanos sustentados até mesmo, por exemplo, no Congresso brasileiro por uma denominada Bancada da Bíblia. “Mas é uma guerra santa mesmo!”. Cadê mais adesivos, mais frases religiosas para os carros? (Ironia, viu?). Como pode ser normalizado o desejo de crueldades, de se alegrar com mutilações de corpos e mentes para ganhar dinheiro e poder? Que consolo há nisto?     Ah, Sagrados Corações! Quantas "Faixas de Gaza" ao meu redor!? Eu e minha atenção doentiamente aguda que dou às coisas no meu dia a dia! Não é por aí, nesse caminho tão largo, que a minha gente deveria rumar. Não é por aí mesmo!