quarta-feira, 31 de julho de 2024

BANCO DA PRAÇA

 

Barra dos Pescadores - Arquivo JRS

Era um viajante, via-se pela mala que carregava;

Trazia um cansaço no arrastar das pernas.

Estava diante do edifício,

Do bolso puxou um papel, 

Conferiu: era ali o destino.

Trepou uns lances da escada;

Balangou a sineta pela corda.

Esperou...esperou...esperou...

Então a porta é aberta;

Um cachorro quase o derruba.

O melhor vem depois:

Um abraço cheio de beijos.

O cansaço foi-se embora,

Ficou porta afora.


Aquele cidadão nunca saberá 

Que, do banco da praça, alguém o observava,

Torcia pela sua subida,

Em pensamento dizia esta motivação:

Upa, upa, upa...força,  tá chegando.

Agora uma  questão: 

Deixou alguém chorando?


sábado, 27 de julho de 2024

SEO MANÉ APOLINÁRIO

 

Amanhecer - Arquivo Clóvis 

    Quando criança, nas ocasiões em que fui à cidade com o  vovô  Zé Armiro, eu ficava muito feliz. Além de tantas novidades, eu também ganhava guloseimas (que não imaginava vivendo na praia da Fortaleza, onde só tinha as vendas do Cáindo e do Jorge, além do tio Maneco Mesquita); via pessoas diferentes, casas com vidraças e bastante carros. Quase sempre a gente passava numa loja de tecidos. “A sua avó encomendou um corte de fazenda azul, de preferência tergal que não precisa passar e seca mais depressa. Vamos procurar na Casa Anchieta, depois na Macedônia ou na Dina. Haveremos de encontrar, em último caso, na alfaiataria do Isaías Mendes, ali perto do Bananinha”.     

    Eu sempre gostei de prestar atenção nas pessoas. Que paraíso são as cidades para isso! Na Ubatuba daquele tempo, por volta de 1970, vivia uma dessas pessoas singulares, amigo do vovô desde os tempos em que viveu em Santos. Era o Seo Mané Apolinário. Eles, nas primeiras décadas do século passado, ainda adolescentes, trabalharam juntos nos bananais daquela região, mais precisamente na localidade denominada de Itapema (hoje cidade de Vicente de Carvalho), na famosa Baixada Santista. Sim, a minha gente também precisou migrar em busca de melhores condições de vida! Nossos parentes viveram em outras terras “comendo o pão que o diabo amassou”, como dizem por aí.

   O Seo Mané sempre me chamou a atenção porque ele usava uma espécie de farda, com quepe e tudo. Quem o visse de longe podia confundir com um policial. Até apito ele trazia ao pescoço. Vovô dizia que ele andava assim porque era funcionário da prefeitura, trabalhava de vigia noturno. Naquele tempo eu não entendia bem porque precisava de gente para olhar, proteger as coisas nas noites, quando o certo era estar todos dormindo. “Mas ele é da polícia, vovô?”. “Não. Ele é guarda noturno. Só que gosta tanto da farda que não larga dela. Desde que a gente trabalhava juntos, naquele tempo lá em Santos, ele sonhava em andar fardado. Creio que, vendo tantos soldados se tecendo por lá, ele se encantou pelas vestimentas, quis ser parecido com os militares. Deu sorte. Depois de voltar para cá arranjou esse emprego de vigia noturno que, pelo visto, parece até precisar usar farda. Aí, então, juntou a fome com a vontade de comer. Veja como ele tá feliz. Agora só anda assim, fardado o tempo todo”.

    Passou o tempo, fui morar mais perto da cidade. As derradeiras imagens que eu guardo do Seo Mané Apolinário continuam com ele fardado, mas em cores desbotadas, costuras feitas à mão em algumas partes e quepe em ruínas, mas se mostrando orgulhoso como “militar”. Engraçado, né?


sexta-feira, 19 de julho de 2024

ADELINO, O FARRISTA

Rosas no morro - Arquivo JRS


      Havia muita gente se ajuntando na beira do mar, pelas pedras da costeira e no cimento do cais. É quase outro dia, outro ano que vai se acabar. Em minutos outro começará. Logo chega o aguardado momento da contagem regressiva: 9...8...7...6...5...4...3...2...1 - Feliz ano novo! (Mas saiba que tal momento se passou há décadas. Só os votos e muitos desejos continuam se repetindo).

  Como toda festa, muitas pessoas se abraçam e se beijam. Beijos estes que, certamente, a maioria, não terá futuro. Fogos alumiam o céu, enchem a escuridão em estouros variados, barcos atroam suas buzinas, partem mar afora pelo meio do nevoeiro. "Quantos marinheiros estarão abraçados às suas sereias?".  Assim pensava Adelino, da praia Grande do Bonete contente por estar entre tantas moças bonitas e jovens no lagamar. “É mulherengo sim”, afirmava a vovó Eugênia. “Gosta de festa, de farra com mulheres. Não perde um carnaval, se enfeita todo e cai na folia”. Sim, ainda era parente nosso, gente do Cedro e de outros pontos que se mudou há muito tempo para a praia vizinha. Era bem difícil de não ver o Adelino animado em todas as ocasiões. Ah, como eu gostava de conversar com ele! Gente boa de prosa estava ali. 

    Mas...voltando ao nosso presente...é tempo de festa porque a vida continua. O que é inútil fica para trás; eu acredito que a mente se abre sempre para o bom que possa vir. Agora, depois de décadas, reconheço a vitalidade daqueles momentos, da gente nova que éramos. Neste momento, vida que segue, é a velhice que toma a frente, levando ao tempo final, quando nem a cabeça e nem as pernas terão energia para festejar. Se aproxima a minha porção última,  bem longe do princípio trazido pelas mãos da parteira, da vovó Martinha, na praia do Sapê. Assim o nosso ser vai deixando de ser. Agora estou a escrever de gente que se foi? É sempre assim na maioria das vezes! Confirma o dizer de que “os vivos se valem dos caminhos dos mortos”. A cada novo momento de escrever penso em minha gente querida. Isto me é hábito a cada espera de alvorecer: lhe desejar um feliz raiar de dia e de realizações. Basta por aqui!

quarta-feira, 17 de julho de 2024

EU ME ENCANTEI

 

Tinticuia - Fufa querida - Arquivo JRS

        Querida irmã:

 Quando éramos crianças, estando ouvindo histórias que nossos avós contavam rente ao mar, a palavra encantado aparecia sempre. Como num apagar de luz a moça virava fada, o sapo se tornava príncipe, o peixe se transformava em ouro, a sereia saía do mar como mulher etc.      Se encantar é se vestir com outra vida, ter nova aparência, causar impacto nos arredores, tal como uma borboleta deixando o casulo. Assim, tenho certeza de que a nossa saudosa menina-moça, leitora maravilhosa que foi, diria às nossas memórias retidas no coração a mesma frase de Guimarães Rosa: “Minha gente, eu me encantei”. Em seguida, completaria nossas saudades com uma resposta de Rubem Alves ao ser perguntado aonde iria depois da morte: “Eu vou para o mesmo lugar de onde vim há milhões de anos [...] Onde é o Tudo de Todo, o lugar de origem de todas as origens”.

          Pois é. Foi assim como poderia ter sido de outro jeito. A querida Jô mostrou que era senhora de sua vida. Ela acolheu o momento que o corpo e a alma desejaram partir. Foi a forma dela levar a libertação avante. A sua canoa agora navega num mar infinito, onde estrelas brilhantes preenchem a escuridão. Daqui do morro dos ventos uivantes, onde a minha embarcação está fundeada, eu contemplo o céu maravilhoso e não me canso de recordar os  tantos momentos que remamos juntos da nossa querida. Sinto que tudo ao redor acompanha o balanço das ondas em nossas trajetórias. Sei que mesmo fundeadas em qualquer porto, as proas das embarcações sobem e descem, olham para o horizonte hipnótico que paira sobre todo mar, tal como fazíamos da nossa casinha no morro da Fortaleza. É ele que transporta uma criança crescida que se despediu de nós e se encantou, está de volta às origens. Em nossos baús deixou suas máquinas, panos diversos, sapatos, livros, imagens e gestos marcantes.

    Passei boa parte do dia olhando as fotografias de outros tempos. Agora, depois do sol brilhar muito, fez-se noite. Dou uma saída no terreiro para uma breve apreciação do céu estrelado. Estou no Céu Estrelado sentindo em cada uma dessas estrelas a mesma paixão que se mostrava à Jôse. A elas ela retorna. A mim me desafia a ver  sombras neste regresso. Escreveu Saramago que “é dado ter nas mãos sóbrias a felicidade, em um momento dá-la ou retirá-la, como se acredita a Deus a vida”. É certo, minha mana, que a memória não esquece aquilo que o coração ama. Aqui seguimos pensando em você e em todas as pessoas que amaram a nossa querida Joseana, lhe desejando muita força sempre. No terreiro, uma jovem tinticuia (manacá-da-serra) foi plantada em nome dela, uma das nossas Fufas. Beijos e abraços nossos. Até.