sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

TRONCO DE CANOA

 

Arte do Gildásio Jardim (no instagram)

      Conforme quadro acima e resenha abaixo, dois artistas (Jorge e Gildásio) apresentam aspectos da nossa cultura, dos povos das praias. Gratidão a ambos por estarem atentos às riquezas que brotam em tanta gente. Parabéns ao Adilson Zambaldi por esse talento! 

   Estou te mandando a resenha que fiz de  Tronco de Canoa, de Adilson Zambaldi. Hoje ele e eu estávamos conversando quando lhe perguntei se ele conhecia seu blog. Ele não conhecia, mas ficou interessado e disse que adoraria que minha resenha  fosse publicado nele. Então peço a você que considere a pertinência de publicá-la ou não. Um forte abraço


À guisa de resenha do livro Tronco de Canoa

    Adilson Zambaldi percorreu as praias de Ubatuba uma a uma. Dessa empreitada poderia resultar um dossiê ambiental, um guia para turistas ou outro registro de caráter utilitário, porém de tal peregrinação, o que surgiu foi um livro delicioso e muito original intitulado Tronco de Canoa. Tão original que deixa o leitor sem parâmetros para classificá-lo num determinado gênero discursivo. A gente tem a mania de querer colocar a obra de um artista em um determinado quadrado e fica perplexo quando depara com uma criação que foge aos moldes comuns de classificação. 

    Minha reação diante desse livro de Zambaldi foi de estranheza. Abri-o pensando que ia encontrar nele textos em versos.  Folheei-o e me veio a ideia imediata de que se tratava de minicontos, porém a não ser um ou outro texto como Praia da Taquara, que considero um miniconto trágico, a maioria não pertence a esse gênero textual. Na ânsia de classificar, acabei observando que, nesse livro, podemos encontrar também, em sentido lato, poemas em prosa, comentários, relatos, conselhos, dicas.  

    O gênero textual de uma obra literária, no entanto, é de interesse meramente didático sobretudo para a academia, que só há poucas décadas descobriu a teoria de Bakhtin. Para o leitor, o que importa é a fruição que a leitura proporciona, e nesse quesito, Tronco de Canoa é plenamente satisfatório. Para provar que o leitor emerge das páginas dessa obra recompensado, pincei dela algumas frases altamente expressivas, seja pela beleza estilística, seja pelo humor:

“Surfar não me levou a lugar nenhum.” (Praia Brava do Camburi)

“Sessenta quilos de agressividade amordaçados.” (Praia da Picinguaba)

“Crustáceos atracados em calcanhares desatentos." (Praia do Engenho)

“A gente é do tipo que agoniza junto.” (Praia do Estaleiro do Padre) 

“Dos convidados mais ilustres, um naufragado de smoking caminha sem jeito pela areia.” (Praia do Ubatumirim). 

“Conchas são escudos rompidos, escorando calcanhares.” (Praia das Conchas)

“De porto em porto, de colo em colo, a passividade se faz em rugas.”  (Praia da Fortaleza) 

    Além de fruir a linguagem artisticamente elaborada, o leitor, com certeza, sentirá prazer preenchendo com sua inteligência lacunas deixadas de propósito em certos diálogos concisos que compõem essa coletânea.  

    O leitor ubatubense, em especial, terá sua memória estimulada ao deparar com alusões a acontecimentos que se deram em nosso município como, por exemplo, a morte de um surfista de Guarujá na praia da Sununga, ou a dificuldade da prefeitura para se livrar da baleia morta, cujo odor afugentou, por semanas, os frequentadores da Praia Grande. 

    Eu poderia destacar ainda muitos outros aspectos interessantes desse livro, mas, para não me alongar mais, vou citar apenas a crítica velada à presença de turistas na nossa cidade, embutida no trocadilho “Paz de Iperoig acaba com a chegada do verão.” (Praia do Cruzeiro) e a reflexão antitética que alude ao presídio da Ilha Anchieta: “Viver trancafiado num lugar paradisíaco também pode ser uma experiência infernal.”   (Praia do Perequê-mirim). 

    Comecei a leitura desse livro estranhando-o e, mesmo conhecendo a tese de Chklovsky de que o efeito de estranhamento é uma das características da arte, duvidei da qualidade dessa obra.  Ao a chegar à última página, porém, concluí que minha dúvida era infundada.  Comecei estranhando-a e terminei entranhando-a, como no slogan criado para a Coca-Cola por Fernando Pessoa. Com isso, quero dizer que a leitura de Tronco de Canoa é tão prazerosa quanto um dia de sol numa praia. 


Jorge Ivam Ferreira   21/12/2024

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

FRAJOLA NA CAVERNA

 

Jonas na barriga da baleia - Mosaico em Aparecida 

    Dito cortava pedras, meu pai era carpinteiro. Eram caiçaras e amigos de profissão, de bar, de pescaria e de diversão. Em casa de ambos a prole era grande, impensável nos dias de hoje. “Frajola”, o caçula do Dito, foi quem mais conviveu comigo. Ele deveria saber que nossos pais eram, da maneira deles, resistentes à ditadura militar. Prova disso eram  as poucas reuniões de bairro para discutir os problemas que precisavam ser às escondidas em meados da década de 1970. Eles se faziam presentes. 

    “Frajola” começou a frequentar grupo de jovens da igreja católica, mas logo desistiu. De repente, com a chegada de uma igreja missionária, criada por um pastor português vindo de Angola, onde a revolução proclamou a independência daquele país, o meu amigo de anos virou “evangélico”. Veio com papos estranhos, defendendo os militares que detinham o poder no nosso país, que essa era a vontade de Deus, que deveríamos nos conformar e fazer de tudo para merecer o céu etc. Será que era essa a mensagem do líder evadido? Foi o  que bastou para eu me afastar, não querer essa influência. O pastor enriqueceu em poucos anos, trocou de esposa.

      Meu pai e o estimado Dito são falecidos. Não sei se o pastor ainda está por este mundo. Dias desses avistei o “Frajola” na rodoviária. Aparentemente está bem, mas não enriqueceu. Se aproximou de mim, deu um sorriso sem graça e disse uns agrados vazios. Eu apenas respondi: “Seguimos na luta”. Ele me perguntou: “E a política?”. Aí eu expliquei que tudo é política, inclusive a decisão de colocar lixeiras nas vias públicas, limpar o mato das calçadas da cidade, cuidar da  saúde, da educação, do esgoto, da água etc. Ele pretendeu  entrar no assunto sobre ditadura, defendendo os terroristas que assaltaram Brasília e depredaram tudo. Na hora cortei o rumo do falso patriota com apenas uma frase: “Pode parar. Vai estudar e aprender a fazer reflexões sérias. Tenha como exemplo mínimo os nossos antigos que, mesmo sem estudo e com poucas reflexões, não se perderam demais no mar da vida, nem apoiaram ditadores”. Ele se afastou porque não lhe dei mais atenção. Depois refleti: desde aquele tempo, na nossa juventude, ele  está recebendo só mensagens reacionárias (da igreja, da imprensa e das redes sociais da atualidade). Como poderia ser diferente o seu pensamento? Vai morrer reacionário mesmo! Vai achar normal todas as coisas erradas visíveis na nossa cidade, na realidade brasileira. O coitado vai ficar na caverna e matar quem lhe disser que há outras possibilidades de vida além dessa destruição abrangente patrocinada por milionários e seus aliados miseráveis (incluindo gente do nosso povo que agora vive nos fundões, pelas grimpas dos morros etc.). Termino esta com uma frase de Malcom X: “Se você não for cuidadoso, a imprensa fará você odiar os oprimidos e amar os opressores”. Pois é, né? Só que, atualmente, a maioria das igrejas parece ser a principal força nessa direção. Triste demais.


domingo, 19 de janeiro de 2025

CHEIROS E SAUDADES

   

Arte do Gildásio Jardim - (instagram gildasiojardim)

  Me acomodo no banco da praça. O cheiro mais próximo vem de uma roseira que tem a aparência de ser bem antiga a julgar pela grossura do tronco. Me detenho no perfume discreto entre o verde vicejante, todo preservado por alguém sensível que a sabe da nossa necessidade de espaços assim, sobretudo nos centros urbanos, entre o corre-corre inevitável.

   O perfume vindo da roseira me desperta para outros cheiros, faz lembrar do livro O perfume, escrito há décadas por Patrick Süskind. Pronto! Outros cheiros e outros tempos vão se fazendo presentes! O suor de quem não vê a hora de chegar em algum lugar para se banhar, o cachorro companheiro que não se importa em deitar e rolar no odor do capim melado onde provavelmente caça lebres, a criança lambuzada e deixando pelo caminho o adocicado de seu pirulito, a  adolescente se dirigindo à escola transpirando um perfume de boutique, dessas marcas que custam mais, o senhor e a senhora bem vestidos com suas roupas simples e sapatos bem cuidados, talvez indo à igreja, deixando um rastro de perfume que me faz recordar do jasmineiro no terreiro da vovó Eugênia, um trabalhador, meu companheiro de obra, usando um desodorante barato, que assustava a gente ao reagir com o suor, o vô Estevan trazendo da praia o cheiro da maresia etc. São cheiros diversos, sinais da nossa natureza, da nossa humanidade.

   Essa diversidade de cheiros sempre acaba me remetendo à saudosa Odócia, caiçara da Ponta Aguda que tinha um olfato apurado, sentia de longe os cheiros e suas origens. Numa ocasião, retornando de mariscar com ela eu notei que, além de prestar atenção, se detinha nos cheiros e pedia a minha atenção a eles: “Tais sentindo, Zé? Vem de lá de cima, do tarumã florido”. “Este outro é de ciosa, daquele charquinho logo ali”. “Lá atrás, aquele cheiro enjoativo, era de guanxuma molhada”. Assim eu era educado por ela em diversos cheiros, nos perfumes que estavam pelos caminhos do chão caiçara. De repente um cheiro diferente e o comentário dela: “Ah! Este é da comadre Dirce! Ela, no mês passado, foi comprar um corte de fazenda na cidade e aproveitou para adquirir um perfume bacana. É este mesmo! A danada passou por aqui não faz muito tempo. Não é bom mesmo?! Quase que dá para comparar ele com o cheiro bom de limão-do-mato, né?”. Chegando em casa, a mariscada seguia para o caldeirão no fogão que estalava lenha. Tudo coisas da nossa humanidade!

    Que saudade da Odócia, do Aristeu, do Gregório, da  Filhinha, a dona Paulina e de tanta gente boa que morava na Ponta Aguda! Quantas boas lembranças! Que saudade dessas coisas de caiçara!  

 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

O QUE O CORAÇÃO AMA...

Entardecer - Arquivo JRS 


         Alguém escreveu que aquilo que o coração ama, a memória não esquece. Verdade mesmo!

       Eu perambulava pelos corredores da universidade, na companhia da minha saudosa sobrinha. Por ali encontrei várias pessoas conhecidas, inclusive uma família indígena de Ubatuba. Nos detivemos um tempo assistindo a uma partida de voleibol na quadra, onde a cada espaço de tempo, havia um “tomate”, um jogador “tomate”. Não entendi o significado, mas também não me esforcei nisso porque havia mais coisas por fazer, espaços para conhecer. Por fim, fomos ao restaurante universitário. A nossa querida Jô estava radiante.  Acordei.

      Momentos desses, com pessoas bem queridas, constantemente preenchem meus pensamentos, se fazem presentes em meus sonhos. Assim vou navegando na vida, querendo buscar a criança que se perdeu no adulto. Minha Gal, minha Má, meu Estevan, minha Joseana, minha irmandade e sobrinhada... As minhas queridas Anna, Olga, afilhadas/afilhados e  tanta gente boa navega neste meu mar de lembranças, de saudades, em horizontes que se alargaram nestes tantos anos. Cada uma dessas pessoas estimadas alimenta uma utopia soberana, se compõe  no cativante caminho das estrelas. É isto! Vou ficando por aqui com as palavras de Mário Quintana: “Se as coisas são inatingíveis, ora... não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminhos se não fora a presença distante das estrelas”.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

POR ENQUANTO

 

Beleza no céu  - Arquivo JRS 

   Mais um ano que começa.  Por enquanto eu olho o tempo e me preocupo com gente nossa ainda apoiando discursos de ódio de gente transvestida de patriota, mas que na verdade está cheia de cobiça e maldades, almejando se apoderar do esforço alheio, entregar as riquezas do Brasil ao estrangeiro.

    Como podemos mudar essas mentalidades dos que querem o sucesso dos ricos e o pior dos mundos aos pobres e ao meio ambiente? Acham o máximo a ostentação às custas de quem trabalha na insegurança das leis trabalhistas, dos piores transportes, das péssimas condições de moradia, das ameaças nos campos, das perseguições às minorias, do racismo, da negação à autonomia dos povos, da escola, do ensino e da saúde em precarização, dos campos agrícolas envenenados, das matas devastadas, dos mares e rios perdendo vidas, da privatização da água que bebemos e da energia que consumimos, de incêndios criminosos que destroem florestas, animais e povos nativos, de mineração em terras indígenas que devastam tudo e arrasam lugares inigualáveis, da insegurança à juventude, das mídias forjando a submissão das mentes, negando a autonomia do pensamento etc. Aonde vai parar tudo isso? Por outro lado, me sustento em exemplos de gente lutando contra as injustiças, alimentando os mais necessitados, mostrando solidariedade de verdade às causas de quem é injustiçado, porta doenças no corpos e mente. Desejo muita força a essa gente! São profetas e profetisas de uma civilização que se degenera.

    Só há uma multidão desamparada porque corações endureceram, aceitaram as piores coisas como naturais dizendo que “esta é a vontade de Deus”. São alienados que partem para desmerecer pessoas fragilizadas, de origens humildes; que historicamente sempre foram exploradas e perseguidas. Ou, ao contrário, usam um discurso emocional a fim de cooptar mentes, ganhar votos e adeptos até mesmo para serem descartados após suas conquistas espúrias, tipo golpe de estado, fim da democracia e dos direitos ambientais, humanos etc. Pior ainda é quando tem gente nossa pedindo a pena de morte, ajudando nas barbáries que brotaram de planejamentos de uma minoria neste planeta! Quando eu imaginaria privatização das praias? Quando eu vou aceitar a existência de latifúndios maiores do que muitos países? Quando eu vou achar normal usar a tecnologia e os conhecimentos desenvolvidos pela humanidade para excluir a maioria da população? Jamais caiba isso em meu ser!

   Mais um ano que começa. Por enquanto eu olho o tempo e penso nos meus desejando que não sejam contaminados pela ideologia reacionária, egoísta, contrária à partilha. Não é este mundo de maldades que devo aceitar. Aos meus e às futuras gerações eu apenas desejo o melhor dos mundos e espero fazer a minha parte, deixar a minha melhor contribuição. É isto por enquanto. Abraços e cheiros a vocês nas palavras de Guimarães Rosa:  "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde,  um descanso na loucura".