As voltas das folhas (Arquivo JRS) |
Anjo das guarda vai se fazendo nos momentos de descanso. A inspiração são as histórias dos caiçaras, as vidas que me cercam desde o meu lar até meu translado, indo trabalhar, em conduções públicas, apreciando a serra e o mar da nossa região. Um preso político continua preso: a história é cíclica porque os homens são os mesmos.
“Parece que foi ontem aquele susto na
praia”. Assim começa o relato do Maneco. Talvez nem seja este mesmo o seu
nome real. Achei as páginas na mesma gaveta onde o Nenê guardou por tanto tempo
seus rótulos de Ubatubana. Na verdade não é uma gaveta, é uma caixa feita
especialmente para acondicionar com segurança algo que os Chiéus consideravam
um tesouro: o papel retangular (onde uma embarcação aparece puxada numa prainha
enfeitada de matas e costeira), a ser colado manualmente, litro por litro,
identificando a famosa cachaça da cidade, que era distribuída pelos diversos
lugares e distantes. Sucesso de público na década de 1970. Acabei de ler que um
colecionador inglês tem um litro desse tempo: ele a classifica como a segunda
cachaça mais rara do mundo. Deve ser mesmo. Imagine a distância de Ubatuba à
Inglaterra. Se não fosse a internet, desconfio que dificilmente eu saberia
disso. Agora, tendo falecido o estimado Nenê, ouso contar aos outros isto que
tenho em mãos. Este amarelado caderno foi presente dele, por ocasião de uma
visita que lhe fiz há alguns anos, quando tive o prazer de escutar um pouco
mais de histórias e saborear de seu vinho devidamente escondido, modesta reserva
pessoal.
“O jundu da Maranduba era imenso, a gente
enxergava o mar bem lá longe. A casa da Maria Balio, ao lado do Cruzeiro,
ficava sozinha naquele terreno. Tudo ali era mato! Uma mata se estendia até o
Canto da Barra. Era mato fechado mesmo! O nosso campinho era ali. Hoje é tudo
praia, mas antes tinha até um barranco alto. A gente vivia brincando por ali,
naquela mata. Tinha goiaba, araçá, pitanga, manacaru... Tinha muitas espécies
de bichos: tatu, gambá, cotia, tamanduá, preguiça, preá... Os meninos, dentre
eles eu, aproveitavam bem aquele espaço. Numa tarde, lá pela metade, olhando
para baixo, na beira do barranco, estava morto o 'Corondó'. Tinha comido
veneno de formiga – formicida – que comprara na venda do João Pimenta. Descemos
o barranco para ver melhor, se estava morto mesmo. Estava. Seu pouco vômito era
alaranjado. A gente correu para avisar outras pessoas”.
Faz-se necessário explicar: jundu é a mata que
está na beira da praia, surgida nos milhares de anos sob a areia quente que ali
foi sendo depositada, sobretudo pelo mar. É vegetação de resistência. Constitui-se
um espaço de coleta para a sobrevivência dos moradores da beira do mar, da
cultura caiçara.
Nenhum comentário:
Postar um comentário