terça-feira, 19 de setembro de 2017

LIBERDADE E VIDAS QUE SE FORAM


Quadro no museu, em Ubatuba (Arquivo JRS)

Casa do Carlos Laureano (Arquivo JRS)

               Admiro muito os que se propõem a estudar a história, sobretudo a Nossa História. Mary Del Priore, que escreveu mais de quarenta e cinco livros, é uma das minhas preferidas. Tempos atrás separei um trecho de seu livro Histórias da gente brasileira porque desconfiei que mais gente precisava saber de situações vividas pelos índios brasileiros.

               Em São Paulo, houve indivíduos que tinham a seu serviço cem ou mais flecheiros. Eram “potentados em arcos”, como Valentim de Barros, Diogo Coutinho de Melo, Sebastião Pais de Barros e Pedro Vaz de Barros, que, em 1650, tinha mais de quinhentos índios. Eles desempenhavam qualquer tarefa que branco não queriam executar: portavam cargas nas costas, cuidavam das plantações, remavam no mar e nos rios, caçavam, construíam todo tipo de edificação, de igrejas a fortes ou edifícios públicos, e também, embarcações, e ainda ajudavam a lutar contra outros índios. Desde a década de 1630, entregavam-se à cultura do tabaco durante sete a oito meses por ano, em troca de alimento e de duas a quatro varas de tecido de algodão, o equivalente ao que seria um salário baixo [...]. Uma vara equivalia a um jornal de sete a vinte réis por dia, enquanto que os assalariados brancos recebiam entre 150 a 200 réis. Os índios livres estavam em pior condição do que os escravos, segundo padre Vieira, que, em carta ao rei d. João IV, expressava a sua preocupação: “Que, para que índios tenham tempo de acudir às suas lavouras e famílias [...] nenhum índio possa trabalhar fora de sua aldeia cada ano mais do que quatro meses, os quatro meses os quais não serão juntos de uma vez, senão repartidos em dois”.  E quanto aos pagamentos, que fossem feitos à hora e que nenhum deles servisse de graça a qualquer morador ou às obras do serviço público.
               Pretendia também o jesuíta que os índios recém-aprisionados fossem recebidos com aldeias e roças preparadas para que aí pudessem viver e que só começassem a trabalhar depois de “estarem mui descansados do trabalho do caminho”. E para evitar tensões com os colonos, acrescentava: missionários não poderiam ter índios, livres ou escravos, trabalhando para si em canaviais ou outras lavouras.

               Tal como os africanos, os índios também eram propriedade dos brancos e aparecem como “negros da terra” nos documentos da época.  É isso! Afirma a historiadora: “A cana matou o índio e importou o africano”. Dizia o padre Anchieta que “os portugueses não tem índios amigos que os ajudem porque os destruíram todos”. Ah é!?! Não me diga!!!

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

TINHANGA

Cabeça no bambu (Foto Estevan)


               Dona Laurentina, a minha saudosa mãe, quando parecia não querer perder a paciência com a gente, nos chamava de “cabeça de tinhanga”, significando algo como encrenqueiro, que quer inticar por pouca coisa. Fui buscar a palavra em Moçambique, um país africano de onde tantos foram tirados para serem escravos no Brasil: está no sentido de formar juízo se baseando em crenças, se sustentando em narrativas míticas. Creio que posso afirmar que a mamãe, assim como os caiçaras mais velhos, estava nos chamando de cabeça oca, de quem diz coisas levianas, inconsequentes. “É coisa de gente que está com a cabeça no mundo da Lua”.  Mas também relaciono com Anhanga, um conceito indígena para espírito assustador, visagem, prenúncio de coisa ruim quase sempre ligado aos seres do mato. Por isso que “cabeça de tinhanga” poderia estar se referindo a miranhanga, ou seja, visagem de gente, que deduzo ser sujeito que inferniza, que enche o saco, que torra a paciência. “Assombração na vida da gente” é dizer do meu povo.
               Ah! Esses seres fantásticos! O quanto devemos aos indígenas, aos negros e aos pobres portugueses trazidos como degredados, expelidos da nobre sociedade lusitana a partir do início do século XVI, por ocasião do achamento de Pindorama, do Brasil – a Terra de Santa Cruz!?! Hoje, retomo uma contribuição dos Tamoios ao nosso caldo cultural, ao nosso ser caiçara, falando do Curupira.

               Hans Staden, um alemão que foi prisioneiro em terra Tupinambá, dizia que a noite causava temores aos indígenas, pois as trevas se enchiam de espíritos audaciosos. Assim, qualquer barulho na noite era motivo de inquietação, de nem imaginar sair da proteção da oca. Por isso que era comum acender fogueira junto às redes para estar a salvo dos males. Vamos resumir tais espíritos como guardiões da natureza contra as ações dos homens. O Curupira, por exemplo, era um dos entes mais temidos pelos indígenas. O padre Simão de Vasconcellos o denominou “o espírito dos pensamentos”, que comanda todos os assombros da floresta, pois é o dono das matas cujos segredos conhece e defende. 
             Hoje, quando se exalta a cruz, chamando-a de santa, eu proponho que retomemos o espírito do Curupira e sejamos intiqueiros, "cabeça de tinhanga" em favor da preservação deste meio ambiente saudável deste litoral, desta flora e fauna que se fez em milênios, destes veios de água, deste mar que tantas vidas e poesias nos dá. Sejamos intiqueiros! Não omitamos o Dia da Traição de Yperoig! Isto não é pouca coisa!

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

FOI TRAIÇÃO!

        

     
            Em 1563, os padres Anchieta e Nóbrega, após uma estadia confabulando com os senhores de engenhos (líderes políticos do Brasil colonial) na Baixada Santista, partiram numa comitiva, sob o patrocínio de José Adorno, um desses líderes, para negociar a paz com os índios confederados (Confederação dos Tamoios).
         A aldeia de Yperoig que, segundo especialistas, significa “água de tubarões”, localizada onde é a atual cidade de Ubatuba, foi escolhida como território de negociação devido a presença de um cacique por nome de Koakira, considerado amistoso pelos jesuítas.
         O velho Catarino dizia:
         “Neste chão de Ubatuba, logo ali onde era a lagoa (que deu o nome da Barra da Lagoa), era onde os índios tinham as suas ocas. Suas canoas subiam pelo rio e logo ganhavam a lagoa. Yperoig foi escolhido pelos padres e por quem mandava porque era um lugar estratégico, de onde partiam as frotas de canoas e as tropas a pé a partir do Caminho das Antas, onde hoje se conhece como Cachoeira dos Macacos. Desse lugar saía um mundaréu de gente brava que aterrorizava os portugueses!”.

                Depois de uma tomada de fôlego, Catarino retomava a prosa-aula:
         “Entre os líderes confederados, os ânimos variavam: uns lutariam até a morte; outros já estavam cansados. Por isso que a presença dos padres e a disposição de Anchieta em ficar como refém deu-lhes uma esperança. O padre até que gostou da ideia! Afinal, era só ele entre a indialhada pelada, não é mesmo?”. Todos riam do humor do contador de causos.
         Com a desculpa de que as exigências dos índios tinham de ser decididas pelos patrões, uma comitiva se dirigiu à Baixada Santista. Enquanto isso, para sufocar os desejos da carne, entreter as mãos e os olhos, Anchieta foi escrevendo e memorizando poemas nas areias da praia. (Depois de séculos, há muitos anos passados, vi a dona Idalina Graça fazendo o mesmo na praia do Itaguá, bem perto do rancho do Florindo. Segundo ela, eram ensaios para um livro que estava escrevendo).
         Os pontos defendidos pelos confederados não pareciam conter algo tão extraordinário. Queriam a libertação dos prisioneiros que se encontravam no trabalho forçado dos engenhos, o fim da prática de escravização, a entrega dos chefes traidores e que deixassem os Tamoios viver em paz, como verdadeiros donos da terra.

                O acordo de paz, considerado o primeiro do continente americano, foi selado em Yperoig, futura cidade de Ubatuba, em 14 de setembro de 1563, dia  da Exaltação da Santa Cruz.

         Aylton Quintiliano, na obra A guerra dos Tamoios, diz que “a partir de Iperoig, e por muitos meses, houve um período de relativa calma. Aimberê, o bravo cacique de Uruçumirim, auxiliado pelo francês Ernesto, que se tornara um deles ao casar-se com Potira, retornou ao seu grupo, onde hoje é a cidade do Rio de Janeiro. Havia esperança de volta aos bons tempos da produção, das expedições de caça e pesca”.
         Em sua Carta ao Colégio de Coimbra, o padre Manuel da Nóbrega diz: “De tudo o que mais me alegra o espírito é ver por experiência o fruto que se faz nos escravos [índios] dos cristãos, os quais com grande descuido dos seus senhores, viviam gentilicamente em graves pecados. Agora, ouvem missas cada domingo e festa e têm doutrina e pregação na sua língua às tardes”.

         Vou concluindo com a fala do velho  Catarino que nos ensinou num dia distante, no jundu, no barranco da Barra da Lagoa, em frente da pobre, mas honrada casa do velho Dito Camburi:
         “Depois de um ano daquele acordo, quando receberam tropas de Lisboa, sentindo falta de mais índios para o trabalho escravo, a portuguesada acaba com tudo a partir da traição de Yperoig”.

         É por isso que eu não duvido que as coisas aconteceram aproximadamente do jeito descrito na Guerra dos  Tamoios:
         “Ao chegar em Iperoig, para verificar a produção de algodão, Ernesto deparou-se com um quadro que lhe fez correr  lágrimas nos olhos: todas as ocas haviam sido queimadas, vários nativos mortos em meio aos escombros ou pela praia. Alguns poucos que escaparam à fúria sanguinolenta dos brancos, contaram a ele que os portugueses haviam levado centenas de prisioneiros para São Vicente. O velho cacique Coaquira lutara como um bravo e foi um dos primeiros a morrer”.

         Agora, você decide:

         a) Comemora a Exaltação da Santa Cruz porque os Tamoios foram dizimados; ou...

         b) Comemora a data como Traição de Yperoig porque a paz tão exaltada nunca houve.